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As novas regras do crédito consignado e o direito fundamental à previdência social: riscos, vulnerabilidade e superendividamento

A lei 14.181/21, que atualiza o Código de Defesa do Consumidor e dispõe sobre a prevenção e tratamento ao superendividamento, vem sofrendo embates pontuais na sua aplicação.

22/9/2022

Introdução: três iniquidades

Passou a viger em 15 de setembro de 2022 a Instrução Normativa – INSS 137/22  que, alterando parcialmente a IN – INSS 28/08, insere novos limites para descontos destinados aos pagamentos de empréstimos pessoais sobre os benefícios de aposentados e pensionistas do Regime Geral de Previdência Social. Contudo, vale advertir em correntio que a IN-INSS 137/22 também tem outras inovações que desafiam a tutela do consumidor, especialmente daqueles que já se encontram em situação jurídica de superendividamento.

De partida cabe mencionar que a Instrução Normativa reproduz em parte dispositivos da lei 14.431/22, fruto da Medida Provisória 1.106/22. A entrada no mundo jurídico da lei 14.431/22 tem escopo derrogatório, porquanto modifica as leis  10.820/03; 8.213/91; 8.112/90; 13.846/19; 14.284/21 que institui o programa Auxílio Brasil.

Mas também tem escopo constitutivo na medida em que inova na extensão subjetiva daqueles que podem autorizar o desconto em folha de pagamento e na modalidade de concessão de crédito (cartão consignado de benefício).

Aqui é necessário relembrar, ao lado disso, a edição pelo Governo Federal do decreto 11.150 de 27 de julho de 2022 que regulamenta o ‘mínimo existencial’ fixando como parametrização protetiva máxima a ser observada (tanto na concessão do crédito como no tratamento aos superendividados) o insuficiente patamar de 25% sobre o equivalente ao salário mínimo, o que gerou contestação pública de diversas entidades de proteção aos vulneráveis.3

Enfim, as novas regras ‘numa só canetada’ absorvem três fortes eixos de iniquidades.  

Primeira iniquidade: alargamento da margem consignável, encorajamento ao superendividamento e riscos ao direito fundamental à previdência social

A nova margem consignável para aposentados pensionistas e titulares do BPC alcança o limite de 45% (quarenta e cinco por cento) do valor dos benefícios, assim distribuídos: 35% (trinta e cinco por cento) destinados exclusivamente a empréstimos, financiamentos e arrendamentos mercantis; 5% (cinco por cento) destinados exclusivamente à amortização de despesas contraídas por meio de cartão de crédito consignado ou à utilização com a finalidade de saque por meio de cartão de crédito consignado; e 5% (cinco por cento) destinados exclusivamente à amortização de despesas contraídas por meio de cartão consignado de benefício ou à utilização com a finalidade de saque por meio de cartão consignado de benefício.

Para os demais titulares dos programas federais de transferência de renda (Auxílio Brasil e outros), o que ainda será objeto desse mesmo ‘modelo regulamentador’ nos termos da Lei 14.431/2022, o limite foi fixado em 40%.

É importante ter presente que nem a IN – INSS 137/22 como a legislação lhe criou (lei 14.431/22) cumpriram tarefas consideradas absolutamente relevantes no Estado Constitucional de Direito  no que respeita ao projeto regulamentador e ao processo legislativo, respectivamente, a saber: audiência pública com os setores interessados; estudos de impacto perante a sociedade quanto aos riscos envolvidos nas operações financeiras; medidas protetivas aos destinatários da legislação (aposentados, pensionistas e titulares de BPC).5

Não se pode esquecer que a Constituição, como fonte das fontes, tem a inigualável função de juridicizar os procedimentos de linguagem, eficácia e efetividade do Direito, abstraindo-se da mera noção de Constituição orgânica-estrutural para assumir a realidade de Constituição deontológica-funcional com claro escopo de transformação, especialmente, das reconhecidas vítimas das mazelas sociais.6

A preocupação posta com a edição da IN – INSS 137/22 é justamente o absenteísmo estatal na promoção dos consumidores aposentados, pensionistas e titulares do BPC. A concessão de margem maior para crédito consignado sobre os estipêndios previdenciários tem efeito devastador sobre a vida não apenas de idosos, mas de núcleos familiares que vivem, infelizmente, às expensas de aposentados e pensionistas.7 Trata-se de forte estímulo e encorajamento ao superendividamento.

Expandindo para 45% da margem consignável, o abalo será prontamente verticalizado sobre a renda familiar, na medida que: i - o mínimo existencial para concessão não gera suficiente proteção (pois corresponde apenas a 25% do salário mínimo, conforme decreto 11.150/22); ii – haverá aumento significativo de empréstimos pelas constantes ofertas das instituições financeiras ‘parceiras’ do INSS considerando a nova disponibilidade da folha de pagamento; iii – débitos serão potencializados com parcelamentos a longo prazo retirando o ‘poder aquisitivo’ dos estipêndios recebidos, especialmente diante de novos acidentes da vida (morte, desemprego, doenças etc.)8; iv – a exposição a fraudes ganhará perspectiva ainda mais atentatória, já que os instrumentos normativos impugnados não trouxeram nenhuma medida de proteção.

A história dos direitos humanos dos aposentados e pensionistas tem forte expressão já na Declaração Universal de 1948 quando restou assegurado, no art. XXV9, padrão de vida compatível com saúde, alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos, especialmente nos casos de desemprego, viuvez, invalidez, doença e velhice. No Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966 é reconhecido o direito de toda pessoa à previdência social.10

Tais direitos, universais, ainda seguiram na Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher de 1979, na Convenção sobre o Direito da Criança de 1989 e na Convenção 29 da OIT de 1930 (sobre o trabalho forçado).

Observe que em comum nestas manifestações humanitárias não é tão somente a garantia à previdência social, mas ao padrão e qualidade de vida, ao acesso aos produtos e serviços indispensáveis, tudo extensivo aos dependentes e núcleos familiares, o que demonstra uma densa vinculação entre aposentadoria, pensionamento e mínimo existencial (esse último sequer cogitado na IN-INSS 137/22).

Por fim, deve ser anotado que a IN-INSS 137/22 coloca em xeque o ‘direito fundamental à previdência social’, formalmente previsto no art. 6 da Constituição Federal e materialmente identificado na vinculação estatal por deveres prestacionais em prover a existência digna daqueles que por alguma circunstância da vida ou incapacidade laborativa têm empregabilidade negada ou incompatível com a idade, fazendo jus a benefícios, derivados de contribuição anterior.11

Tal direito fundamental exige tratamento constitucional adequado, sendo efetivado considerando a aplicação dos princípios da solidariedade, universalidade, vinculação à legalidade, equilíbrio financeiro e atuarial e, especialmente, irredutibilidade dos benefícios.12

Ainda entre os princípios atinentes ao direito fundamental à previdência social tem amplo destaque a proteção contra riscos sociais cujo escopo é justamente guiar o intérprete na verificação quanto à existência de medidas contra ameaças e acidentes espargidos na sociedade, inclusive com mitigação ou eliminação dos respectivos efeitos deletérios.13

Ora, não há dúvidas de que o superendividamento possa ser enquadrado justamente como risco social, na medida que é reconhecido como fenômeno da sociedade contemporânea, justamente pela impossibilidade do devedor-consumidor conseguir atender e pagar todas as dívidas relativas ao consumo, sem prejuízo do padrão e qualidade de vida (ou como está na lei 14.181/21, do ‘mínimo existencial’). 

Não há dúvidas de que a IN – INSS 137/22, portanto, atenta contra o direito fundamental da previdência e ao mesmo tempo descumpre os deveres fundamentais do Estado de proteção ao consumidor (CF, art. 5º, inc. XXXII).

Segunda iniquidade: lógica invertida e política pública às instituições financeiras

A segunda iniquidade prende-se claramente a extensão subjetiva do crédito consignado aos titulares de programas de transferência de renda, como já assinalado, que são verdadeiras políticas públicas assistenciais e de combate à miserabilidade.

A lei 14.431/22 diferencia em algumas categorias e circunstâncias. O benefício de prestação continuada (BPC), adstrito à assistência social, contudo sob os auspícios do INSS, tem limites de desconto de 45% à semelhança do regime geral de previdência social e poderá ser utilizado para empréstimos, financiamentos, cartões de crédito, arrendamento mercantil e cartão consignado de benefício.

Já os demais programas de transferência de renda (Auxílio Brasil, Auxílio Inclusão Produtiva Urbana, entre outros) contam com limite de 40% para descontos, todavia a mencionada legislação circunscreveu a utilização tão somente para empréstimos e financiamentos, não havendo menção a cartões de crédito, arrendamento mercantil e cartão consignado de benefício. Neste caso, a gestão deste modelo é realizada pelo Ministério da Cidadania.

Causa espécie o fato de que todos têm comum a natureza jurídica: são ‘programas de transferência de renda’. Tais programas, que devem estar vinculados aos direitos fundamentais sociais (CF, art. 6) existem no Brasil há quase duas décadas, iniciando com o ‘vale-gás’ (decreto 4.102/02), evoluindo para a lei 10.836, de 09.01.2004 que instituiu o programa Bolsa Família,15 hoje revogada pela atual lei 14.284/21 que inseriu o Auxílio Brasil.

O benefício de prestação continuada (BPC) caracteriza-se como política pública circunscrita à assistência social (espécie do gênero seguridade social) e que está assentada nos termos da lei 8.742/93 (Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS), fazendo jus à referida vantagem de inclusão social pessoas com deficiência e idosos com no mínimo sessenta e cinco anos, bastando comprovar não possuírem meios de prover a própria manutenção nem de tê-la provida pela família. É importante ressaltar que a própria legislação do benefício atrela a concessão às circunstâncias de miserabilidade.16

Pois bem. A LOAS apresenta como um dos objetivos a serem alcançados, não só a inclusão para atendimento às necessidades básicas, mas com veemência a  proteção social, que visa à garantia da vida, à redução de danos e à prevenção da incidência de riscos. Destarte, novamente, está averbado no texto linguístico da legislação o dever de evitabilidade de riscos, o que engloba fatalmente o superendividamento, até porque o conceito de crédito responsável, adstrito ao art. 54-C, inciso III e art. 54-D, inciso II da lei 14.181/21, também atribui o mesmo sentido.

Ora, essa simples constatação demonstra que a IN – INSS 137/22, assim como a lei criadora (lei 14.431/22) são claras disposições que contrastam ao conceito de crédito responsável,  porque nitidamente colocam em risco o beneficiário da política pública.

Por sua vez, a lei 14.284/21, que dispõe sobre o programa de transferência de renda ‘Auxílio Brasil’ estabelece entre os objetivos a serem conquistados a promoção da cidadania com garantia de renda e a articulação de políticas direcionadas aos beneficiários, com vistas à superação das ‘vulnerabilidades sociais das famílias’, bem como a redução das situações de ‘pobreza’ e de ‘extrema pobreza’ das famílias beneficiárias.

Mesmo aqui não se fazendo aplicável a IN – INSS 137/22, porque a matéria não está na competência administrativa do INSS, aplica-se a lei 14.431/22 que permitiu sobre essa política pública de erradicação da pobreza a utilização de consignados para pagamento de empréstimos e financiamentos.

Enfim, não é de especular, mas clara constatação de óbvia triangulação, através da qual, na figura do consumidor esfomeado e carente dos víveres mais básicos, se transferem recursos emancipatórios provenientes de políticas públicas para o enriquecimento ainda sem fronteiras das instituições financeiras.

Terceira iniquidade: novo cartão, mais exclusões

A última esfera de iniquidade prende-se à figura altamente lesiva criada pela lei 14.431/22 e corroborada pela IN – INSS 137/22: “o cartão consignado de benefício”, pelo qual o hipervulnerável destinatário de políticas públicas de combate à pobreza procederá à compra de produtos, contratação de serviços ou ao saque de moeda corrente.

Evidente que haverá a necessidade em regulamentar minudentemente essa nova modalidade de pagamento (e de endividamento). Contudo, dos cartões de crédito, a despeito do benefício da rápida transação e diminuição do tempo da contratação, os riscos são incomensuráveis, especialmente considerando os encargos envolvidos, as consequências do pagamento apenas valor mínimo, a falta de informações adequadas e suficientes, bem como o conhecido problema das fraudes na utilização indevida por terceiros.

Já a inusitada figura (cartão consignado de benefício) soma as duas situações lesivas, isso porque permitirá cobranças abusivas com a garantia da folha de benefícios do consumidor (i) ao mesmo tempo em que incidirá sobre os recursos advindos de políticas públicas (ii) que lhe eram destinadas para o acesso aos direitos fundamentais sociais e fuga da pobreza.

Não há dúvidas de que esse modelo é totalmente nefasto aos consumidores já excluídos do mercado e que necessitando de políticas públicas de emancipação acabam engordando os lucros das instituições financeiras. Tudo isso em detrimento da educação financeira que deveria ser priorizada num país com quarenta milhões de superendividados.

Considerações finais

A lei 14.181/21, que atualiza o Código de Defesa do Consumidor e dispõe sobre a prevenção e tratamento ao superendividamento, vem sofrendo embates pontuais na sua aplicação. Além do decreto 11.150/21 que tornou o mínimo existencial insuficiente e tenta desconstruir a legislação de consumo, a entrada em vigor da lei 14.431/22 e da IN – INSS 137/22 são verificadas aumento da margem consignável (i), extensão a novos sujeitos o risco para o superendividamento (ii) e novas formas de transação que atentam contra as políticas públicas (iii).

Nenhuma das legislações citadas utilizou o conceito de do consumidor como direito fundamental e muito menos dos direitos previdenciários como fundamentais, uma demonstração clara de que a desconstrução também se faz em face da Constituição Federal.

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1 Publicada no D.O.U em 15-09-2022

2 DUQUE, Marcelo Schenck. O dever fundamental do Estado de proteger da redução da função cognitiva provocada pelo superendividamento. In RDC. v. 94. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 157-179. 

3 DUGUIT, Léon. Les lois contraires au droit. T III – § 98. In: Traité de Droit Constitutionnel – Tomo I. Paris: Boccard, 1923, p. 70-71. Segundo o tratadista francês as leis injustas mesmo sendo corretamente formais são caracterizadas por disposições contrárias a princípios de ordem superior, assim entendidos aqueles próprios da consciência coletiva do povo, contrário às declarações humanitárias de direito, ou também discordes da legalidade constitucional.

4 HÄBERLE, Peter. El Estado constitucional. Traducción e índices de Héctor Fix-Fierro. 2. ed. México, DF: UNAM, 2016. (Serie Doctrina Jurídica, n. 47).

5 Sobre a necessidade de audiência pública para a IN – INSS 137-2022 ver art. 29 da LINDB.

6 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador: contributo para a compreensão das normas constitucionais programáticas. Lisboa: Ed. Coimbra, 1982.

7 MARQUES, Claudia Lima; MARTINS, Fernando Rodrigues. Superendividamento de idosos: necessidade de aprovação do PL 3515/15.

8 LIMA, Clarissa Costa de; CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli. O retrocesso desmedido da MP 1.106, de 17 de março de 2022.

9 “Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, o direito à segurança, em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora do seu alcance”.

10 Art. 9º Os Estados-partes no presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa à previdência social, inclusive ao seguro social.

11 ROCHA, Daniel Machado da. O direito fundamental à previdência social na perspectiva dos princípios constitucionais diretivos do Sistema Previdenciário Brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 117.

12 Art. 1º da Lei Federal 8.213/91.

13 ROCHA, Daniel Machado da. O direito fundamental à previdência social na perspectiva dos princípios constitucionais diretivos do Sistema Previdenciário Brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p .144.

14 MARQUES, Claudia Lima. Breve introdução à Lei 14.181/2021 e a nova noção de superendividamento do consumidor. In: Comentários à Lei 14.181/2021: a atualização do CDC em matéria de superendividamento. Antônio Herman Benjamin [et al.]. São Paulo: Thomson Reuters-Brasil, 2021, p. 36-43.

15 SOARES, F. et al. Programas de transferência de renda do Brasil: impactos sobre a desigualdade. Brasília: IPEA, 2006. Disponível em: www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/td_1228.pdf, acesso em 20-9-2022.

16 Assim, o art. 20, § 11 da Lei nº 8.742/93:  Para concessão do benefício de que trata o caput deste artigo, poderão ser utilizados outros elementos probatórios da condição de miserabilidade do grupo familiar e da situação de vulnerabilidade, conforme regulamento 

Fernando Rodrigues Martins
Mestre e doutor em direito das relações sociais pela PUC-SP. Professor, adjunto de Direito Civil na Universidade Federal de Uberlândia. Ex-coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia.

Keila Pacheco Ferreira
Doutora em Direito Civil pela Universidade de São Paulo. Mestre em Direito Civil pela PUC/SP. Professora de Direito da graduação e do Programa de Mestrado da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlandia. Coordenadora do Núcleo de Apoio ao Superendividado da Universidade Federal de Uberlândia.

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