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Lula foi inocentado ou absolvido?

Se Lula não perdeu sua inocência do ponto de vista jurídico, certamente, perdeu a inocência na acepção da injustiça quando foi preso por duas vezes injustamente.

18/9/2022

Chegando perto das eleições, essa pergunta tem sido alvo de inúmeras discussões entre militantes do ex e do atual presidente da República. Jornalistas e comentaristas já gastaram longos textos sobre o tema buscando diferenciar a absolvição, da anulação de um processo. Outros, com menos honestidade intelectual e/ou conhecimento jurídico, gostam de ressaltar que o ex-presidente Lula foi condenado em três instâncias, como se isso existisse. Nesse artigo, procuraremos trazer alguns conceitos básicos que tem sido objeto de muita impropriedade, para que possamos trazer uma resposta definitiva para essa questão.

Partindo da questão que dá título ao artigo, precisamos nos perguntar antes, como uma pessoa pode ser “inocentada” no nosso ordenamento jurídico.

Inicialmente é preciso considerar que o conceito de inocência não é trabalhado diretamente no nosso ordenamento jurídico processual-penal. Quando trata da sentença, o CPP vai dividi-las entre a condenatória e absolutória. As sentenças do processo penal não declaram a inocência, já que esta é presumida, por força do art. 5º, inciso LVII, da CF/88.

A única vez que a palavra inocência aparece no CPP é no inciso III, do art. 621, que trata das hipóteses da revisão criminal, uma ação desconstitutiva, de natureza penal, que pode, entre outras hipóteses, reconhecer a inocência do acusado. Essa é a primeira hipótese em que podemos falar em “inocentar” uma pessoa: após o deferimento de uma revisão criminal de um processo transitado em julgado. Como se vê, essa hipótese não cabe aos casos do ex-presidente.

A outra forma de se tornar inocente é após o cumprimento de uma sentença penal condenatória. Com efeito, após dois anos da extinção da pena pelo seu cumprimento (ou por qualquer outra causa de extinção como a prescrição executória, a graça ou o indulto), poderá o sentenciado requerer a reabilitação, nos termos dos arts. 93 e 94, do CP. É verdade que, a condenação transitada em julgado ainda surte efeitos por cinco anos após a data do cumprimento ou extinção da pena, nos termos dos arts. 63 e 64, do CP. Assim sendo, podemos situar a segunda forma de se inocentar uma pessoa, após o cumprimento ou extinção da pena. Essa hipótese, também como podemos perceber, não se aplica ao ex-presidente, já que ele nunca cumpriu pena definitiva.

A última – e mais comum – forma de alguém ser inocentado é ao nascer ou ao se submeter ao direito nacional. Todo brasileiro e toda pessoa que vive no país é titular dos direitos e garantias fundamentais cristalizados na CF/88. E entre eles está aquele insculpido no art. 5º, inciso LVII, que prevê que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Perceba-se que a Carta Magna também não utiliza a palavra inocência, ainda que dê mencionada disposição decorra o que se conhece como princípio da presunção da inocência, tão fustigado no passado próximo.

Essa derradeira hipótese é a única que cabe ao caso do ex-presidente Lula. Ele foi inocentado ao se tornar brasileiro, pelo seu nascimento, e jamais perdeu esse status em toda sua vida, eis que nunca foi alvo de condenação com trânsito em julgado. Portanto, ainda que a categoria “inocentar” não seja própria ao direito penal material ou processual, não é incorreto dizer que o ex-presidente se tornou inocente.

Também é verdade que ele não foi inocentado pelo STF. Nem mesmo foi absolvido. E aqui entramos em uma segunda etapa da confusão que frequentemente é feita em relação a esse assunto: as diferenças entre absolvição, anulação e extinção da punibilidade.

Na sistemática do CPP, a absolvição pode se dar em dois momentos: (i) uma no momento da apreciação da resposta à acusação, onde existem as hipóteses de absolvição sumária do art. 397 e (ii) outra no momento da sentença, onde figuram outras distintas hipóteses de absolvição, descritas no art. 386.

Categoria distinta é a extinção da punibilidade que está localizada no art. 107, do CP. A extinção da punibilidade leva ao encerramento do processo a qualquer momento, pois ela cessa a pretensão punitiva estatal. São as principais causas de extinção da punibilidade a morte do agente, a anistia, graça ou indulto (categorias que ficaram famosas pelo benefício concedido da deputado Federal condenado pelo STF) e a prescrição.

Ocorre que, entre as hipóteses de absolvição sumária, do art. 397, do CPP, uma delas é a extinção da punibilidade. Enquanto o art. 386, que trata da sentença absolutória, traz hipóteses relativas à prova do fato e da autoria, bem como da tipicidade e de sua excludentes, o art. 397 inova e traz também a extinção da punibilidade como causa de absolvição.

Para além de tudo isso, temos a nulidade ou anulação do processo. Trata-se de uma categoria que pode ocorrer em várias hipóteses e níveis e que pode ter também variados efeitos. Em síntese, a nulidade é a consequência da não conformidade de um ato processual praticado com o modelo legal vigente. Significa, em outros termos, que o Estado, representado pelo Poder Judiciário, não cumpriu adequadamente seus deveres, o que é algo em si bastante grave. Mas a depender do grau de gravidade desse descumprimento, a nulidade poderá ser absoluta ou relativa. Na primeira hipótese, todos os atos anulados são considerados ineficazes e não podem ser reaproveitados. No caso de nulidades relativas, os atos, em algumas hipóteses podem ser convalidados, desde que cumpridas as formas ignoradas anteriormente.

Pois bem, Lula foi absolvido, teve sua punibilidade extinta ou teve processos anulados? E a resposta mais correta para essa pergunta é os três.

Nos dois casos mais conhecidos, do triplex e do sítio de Atibaia, o STF reconheceu a existência de duas nulidades: uma relativa, a da incompetência territorial e outra absoluta, decorrente da suspeição do ex-juiz Sérgio Moro, que recentemente confessou em campanha ser um inimigo histórico do Partido dos Trabalhadores. No caso de nulidades absolutas, como a decorrente da suspeição, os atos processuais deles decorrentes, pelo princípio da causalidade, tornam-se ineficientes. Em outras palavras, é como se eles deixassem de existir e tivessem de ser refeitos. É preciso então se proceder a um exame de contaminação das provas remanescentes, para se identificar a viabilidade do processo após a extirpação (ou convalidação) dos atos anulados. Ocorre que, no caso de Lula, sequer seria possível esse exame, já que os fatos pelos quais foi acusado já estariam prescritos, ocorrendo assim extinção da punibilidade – que como vimos, também é uma forma de absolvição sumária. Tudo de uma vez.

Lula também foi absolvido no caso conhecido como Quadrilhão do PT. Teve uma denúncia por fatos semelhantes rejeitada na 12º vara Federal de Brasília. Foi absolvido no caso das acusações de Delcídio do Amaral. Teve outra denúncia rejeitada no caso de acusações que envolviam seu irmão, na justiça Federal de São Paulo. Foram vários processos, com vários desfechos distintos, mas com uma coisa em comum: em nenhum deles houve sentença penal condenatória com trânsito em julgado. Em alguns deles foi efetivamente absolvido. Nos demais, jamais chegou a ser condenado.

E é muito importante que se perceba que, do ponto de vista jurídico e à luz do princípio da presunção de inocência, a absolvição não tem mais força do que qualquer outra forma de encerramento do processo sem condenação. Admitir isso, seria reconhecer que uma pessoa que chegou a ser processada e absolvida ao final do processo seria mais inocente do que aquela que foi investigada e jamais chegou a ser processada por ausência de provas. Em realidade, ambas ostentam o mesmo status jurídico: o de inocente. Que é o mesmo do ex-presidente.

Se Lula não perdeu sua inocência do ponto de vista jurídico, certamente, perdeu a inocência na acepção da injustiça quando foi preso por duas vezes injustamente. Uma no auge da ditadura militar e a segunda, por força de uma violação da Constituição da República, de triste memória, operada por seu guardião maior, o STF, quando admitiu a odiosa execução provisória da sentença penal. Seu caso é hoje um dos exemplos mais fortes de como o menoscabo ao princípio da presunção da inocência é danoso não apenas para indivíduo condenado injustamente, mas para todo o tecido democrático.

Bruno Salles Ribeiro
Advogado criminalista, 1º Secretário do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.

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