Migalhas de Peso

Uma nova teoria para o julgamento pelo Conselho de Justiça

A imprescindibilidade da declaração do voto divergente do juiz militar sob pena de nulidade pela ausência de fundamentação da decisão.

14/9/2022

Nos termos do art. 434 do Código de Processo Penal Militar, concluídos os debates e decidida qualquer questão de ordem levantada pelas partes, o Conselho de Justiça passará a deliberar em sessão secreta1, podendo qualquer dos juízes militares pedir ao auditor2  esclarecimentos sobre questões de direito que se relacionem com o fato sujeito a julgamento.

Quanto à forma de pronunciamento dos juízes, o art. 435 do CPPM assevera que o presidente do Conselho de Justiça convidará os juízes a se pronunciarem sobre as questões preliminares e o mérito da causa, votando em primeiro lugar o auditor [juiz de direito do juízo militar/juiz federal da justiça militar); depois, os juízes militares, por ordem inversa de hierarquia, e finalmente o presidente. Como atualmente o magistrado togado é o presidente do Conselho de Justiça, e sendo o relator do processo ele vota em primeiro, depois vota o oficial mais moderno, seguindo-se assim até o oficial superior ou mais antigo que votará por último.

Mas, o que chama a atenção – e aí já se referindo à formalidade da sentença, é o § 2º, do art. 438, do CPPM, dispondo que   a sentença será redigida pelo auditor, ainda que discorde dos seus fundamentos ou da sua conclusão, podendo, entretanto, justificar o seu voto, se vencido, no todo ou em parte, após a assinatura. O mesmo poderá fazer cada um dos juízes militares.

A previsão legal não é nova, vem de longe, mas cada vez mais se mostra em desconformidade com a Constituição Federal.  Na vigência da legislação anterior, o Código de Justiça Militar3, em seu art. 230, asseverava que as sentenças e as decisões do conselho serão sempre fundamentadas, redigidas pelo auditor e assinadas por todos os juízes; e, quando datilografadas, também rubricadas pelo auditor, ressalvando seu parágrafo único que, quer se trate de sentença ou decisão, poderia o juiz vencido justificar, por escrito. seu voto. Há que se lembrar que o art. 101, alínea ‘g’, do CJM, atribuía a competência do então auditor para servir de relator e redigir a sentença, como sói acontecer até hoje.

Em relação a esta forma de julgar do Conselho de Justiça4, Guilherme de Souza Nucci anotou que “em qualquer colegiado, um dos magistrados é o encarregado de redigir a decisão. Geralmente, em órgãos superiores cabe ao relator tal função, de modo que todos os componentes da corte, vez ou outra, devem fazê-lo. No caso do Conselho de Justiça, atribuiu-se ao auditor [juiz de direito do juízo militar / juiz federal da justiça militar], sempre garantida a possibilidade de apresentação de voto vencido a qualquer dos magistrados”5. Mas o reconhecido doutrinador não efetuou, entretanto, nenhuma consideração sobre a forma de julgar prevista no CPPM, em face do princípio constitucional da fundamentação das decisões do Poder Judiciário.

A atribuição conferida ao magistrado togado de relatar os processos e redigir a sentença também está prevista no inciso VII, do art. 30, da lei 8.457/92 – lei de Organização da Justiça Militar da União, aplicável de igual forma à Justiça Militar estadual, e aqui se concentra nossa teoria, calcada no dispositivo que merece maior atenção, mesmo porque, a competência do magistrado togado redigir a sentença, ainda que seja voto vencido, conforme prescreve o § 2º do art. 438 do CPPM se apresenta de acordo com a pacífica jurisprudência do Superior Tribunal Militar no sentido de que

“a lei de Organização da Justiça Militar da União (lei 8.457/92) descreve o funcionamento dos Conselhos Permanente e Especial de Justiça, dispondo, inclusive, sobre sua formação e, bem assim, estabelece as competências dos Juízes-Auditores, entre as quais, a de relatar os processos e redigir as Sentenças prolatadas pelo Conselho Julgador, cuja composição inclui os Juízes-Militares. Ainda que o Juiz-Auditor tenha divergido dos Juízes Militares, compete ao magistrado togado a redação da Sentença, restando ressalvado e preservado o livre convencimento motivado de cada um dos membros do Conselho Julgador quando da tomada de votos, reservando, assim, o comando constitucional insculpido no inc. IX do art. 93 da Constituição Federal” .

Mas isso não significa que esse entendimento não possa ser alterado, aliás, mesmo as súmulas vinculantes (CF, art. 103-A) podem ser revistas (CF, art. 103-A, § 2º).

Ora, já se demonstrou alhures, ser questionável este entendimento. Com efeito, a lei atribui ao Juiz Federal da Justiça Militar a competência de relatar os processos e redigir as sentenças e decisões do Conselho de Justiça ainda que seu voto seja vencido. Quanto à relatoria do processo, tal atribuição vem desde o nascimento da Justiça Militar, encontrando-se em sintonia com a formação do colegiado julgador, eis que o magistrado togado detém a formação jurídica necessária, enquanto os juízes militares concorrem com a experiência da caserna.

No entanto, como as decisões do Conselho de Justiça são todas tomadas pela maioria de votos, e o voto de cada um de seus integrantes tem o mesmo peso, não se encontra justificativa para que o Juiz Federal da Justiça Militar [Juiz de Direito do Juízo Militar], sendo vencido em seu voto, tenha de redigir a sentença ou qualquer outra decisão do órgão julgador onde com certeza houve um voto divergente. Nos termos do art. 93, inc. IX, da Constituição Federal, todos os julgamentos do poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade. Ora, se o juiz, em que pese estar adstrito às provas dos autos, possui livre convencimento para decidir, parece estar na contramão do bom direito que um juiz que foi voto vencido tenha que fundamentar a decisão vencedora de outro.

Basta estabelecer um paralelo com os tribunais, onde o órgão julgador é sempre colegiado. Se o relator do processo restar vencido, o responsável pela elaboração do acórdão é o magistrado cujo voto divergente foi o vencedor, cabendo àquele que foi vencido, lavrar apenas o seu voto, para fazer parte de todas as ocorrências do julgamento. No Conselho de Justiça, vencido o magistrado togado da Justiça Militar, a sentença deveria ser redigida pelo juiz militar cujo voto divergente fosse o vencedor7.

Já foi lembrado que durante desenvolvimento de pesquisa junto ao Ministério Público Militar na República Democrática de Cabo Verde, o promotor da Justiça Militar Soel Arpini, consultando o Processo-crime 008/03, em desfavor de um capitão acusado de deserção, observou que, quando do julgamento, o acusado foi condenado por maioria (2x1), vencida a juíza togada.

A despeito do Código de Justiça Militar caboverdiano dispor que compete ao juiz togado lavrar o acórdão, mesmo tendo ele sido vencido, como ocorre na legislação processual brasileira, em extenso e fundamentado voto, a juíza togada fundamentou seu posicionamento vencido, expondo as razões de convicção que a levaram a absolver o acusado, tendo considerado inconstitucional o dispositivo do CJM que a obrigava a redigir o acórdão vencedor.

Sucintamente, a juíza togada entendeu que não tinha como saber quais as provas que os julgadores militares deram destaque para chegar a sua conclusão, não podendo ela adivinhar o que se passou na cabeça desses magistrados. Sustentou ainda a magistrada togada, que o modelo a ser seguido deveria ser aquele dos órgãos colegiados dos tribunais, onde quem começa a divergência passa a ser o relator, remetendo o processo ao juiz militar presidente8, o que sempre nos pareceu de todo razoável.

Nossa proposta encontra eco na doutrina abalizada. Ronaldo João Roth, há cerca de duas décadas lançou a seguinte indagação: “o juiz militar deve fundamentar o seu voto? Ou esta atribuição é do juiz auditor, cabendo àquele apenas decidir pela condenação ou absolvição?9

E aí ele divide a resposta em duas partes: a primeira, no que diz respeito ao dever do juiz militar, ao condenar, de definir a pena ou, ao absolver, de definir a alínea de seu voto; a segunda, diz respeito ao dever de motivar seu voto, fundamentando aquela decisão10.

Roth esclarece, com a didática forma que lhe é peculiar, que quanto a primeira parte, a Lei estabelece um procedimento linear e de mesmo peso entre os juízes no julgamento, cabendo ao juiz relator a condução do processo e toda a dinâmica processual da instrução crime qual, concluindo que o juiz deve definir a pena ao votar, se condenar o réu, bem como determinar qual a alínea absolutória dentre as previstas na lei, se absolvê-lo, concluindo de forma segura que a lei não discrimina procedimento diferente para os juízes, mas, prevê, no CPPM o rito a ser seguido quanto à ordem de votação (art. 435), quanto à definição da pena (parágrafo único do art. 435), quanto aos casos de condenação (alínea b do art. 437), quanto aos casos de absolvição (art. 439 e suas alíneas). Observa, então, que é no julgamento, quando do voto dos juízes, que se pode notar a linearidade de atuação dos mesmos, que poderão votar de maneira convergente ou não, cada qual definindo o seu voto, cabendo ao critério jurídico dar a maioria do veredicto11.

Roth conclui, então, que, seja para absolver ou condenar, o juiz militar explicitará as razões de sua decisão, atendendo à diretriz constitucional de motivação de voto, sendo importante anotar que os votos explicitados pelos cinco juízes do Conselho de Justiça deverão constar registrados na ata de sessão, cabendo as partes do processo estarem atentas à sua confecção pelo escrivão ou escrevente da audiência, independentemente de estarem destacados na sentença elaborada pelo juiz-auditor [magistrado togado], mesmo porque o juízo castrense é constituído de cinco juízes e não jurados, cuja atividade decisória é distinta12.

Abelardo Júlio da Rocha, se referindo à Justiça Militar Estadual, mas com total pertinência em relação à Justiça Militar da União, desfere, com precisão, que sendo livre para votar de acordo com sua consciência, é natural que em alguns casos o juiz militar profira julgamento divergente em relação ao juiz de direito, para condenar ou absolver. E, nesse caso, explica, há um particular em relação à Justiça Militar Estadual porque nela, como já havia pontuado anteriormente, o presidente do escabinato é o juiz togado e é também o primeiro a proferir o voto. A partir daí passam a votar do juiz militar mais moderno para o mais antigo do colegiado.

Abelardo Júlio da Rocha insiste que qualquer um dos juízes militares pode inaugurar divergência em relação ao voto do presidente do escabinato, devendo, todavia, motivar seu voto com fundamentos de fato e de direito, sendo certo, inclusive, que no caso em que decidir pela condenação deve dosar a pena a ser imposta dentro dos parâmetros legais estabelecidos no Código Penal Militar13.

O projeto de reforma da lei de Organização da Justiça Militar da União – LOJMU, concluído com a edição da lei 13.774/2019, trouxe significativas alterações na competência do Juiz Federal da Justiça Militar, colocando-o como Presidente do Conselho de Justiça14 e instituindo, em seu favor, a competência para julgar, monocraticamente, os civis. Todavia, manteve a incumbência de o juiz togado redigir a sentença ainda que discorde de seus fundamentos, situação que entendemos não ser a melhor possível, inclusive do ponto de vista dos princípios constitucionais da publicidade e da fundamentação das decisões judiciais como veremos a seguir. Se é de todo viável que o magistrado togado redija a sentença - por ser ele o juiz detentor do conhecimento jurídico, a apresentação formal do voto divergente constando da sentença se torna imprescindível, adequando-se ao mandamento constitucional da fundamentação das decisões judiciais, e, também ao modelo vigente nos colegiados dos tribunais sem exceção.

Não se pode esquecer que as razões do voto divergente – mesmo quando vencido, podem servir ao recurso da parte que sucumbiu em sua pretensão, o Ministério Público quanto à condenação, ou, o acusado quanto à absolvição.

Tomando-se por base as decisões dos tribunais, o voto divergente ganha acentuada importância na apresentação dos embargos infringentes [CPPM, arts. 538 e 539; CPP, art. 609, parágrafo único]. No processo civil, quando o resultado da apelação não for unânime, o voto divergente dará ensejo a que o julgamento tenha prosseguimento em sessão a ser designada com a presença de outros julgadores, que serão convocados nos termos previamente definidos no regimento interno, em número suficiente para garantir a possibilidade de inversão do resultado inicial, assegurado às partes e a eventuais terceiros o direito de sustentar oralmente suas razões perante os novos julgadores [CPC, art. 942].

Por isso é indiscutível a necessidade de declaração fundamentada do voto divergente na sentença, seja ele vencedor ou vencido.

DA EFETIVA DEMONSTRAÇÃO DA NECESSIDADE DA FUNDAMENTAÇÃO DO VOTO DIVERGENTE, NA PRÁTICA

Uma análise de 02 (dois) casos concretos ajudará a entender melhor a tese ora proposta, inclusive – e principalmente, quando tanto o representante do Ministério Público (Fiscal da lei) como o magistrado togado entendiam não haver prova suficiente para a condenação, sendo a divergência inaugurada pelo juiz militar.

Aliás, em relação àqueles casos em que o Ministério Público – dono da ação penal, pedir a absolvição, existe corrente doutrinária que defende a impossibilidade de o juiz condenar o acusado.

Em publicação no site CONSULTOR JURÍDICO, lembrou-se que a Defensoria Pública da União, já pediu ao Supremo Tribunal Federal (HC192.298) que definisse se o juiz pode condenar após pedido de absolvição do Ministério Público. Para a DPU, seria necessária uma palavra final sobre o art. 385, do CPP [art. Art. 437, alínea b, do CPPM], decidindo a Corte Suprema acerca de sua recepção ou não pela Constituição Federal, já que a norma permite que o réu seja condenado mesmo que o Ministério Público se manifeste a favor da absolvição.

A DPU afirmou que a aplicação do dispositivo conflita com o próprio sistema acusatório, definido como direitos e garantias trazidos pela Constituição Federal. "Uma condenação sem pedido da parte acusatória fere o sistema processual acusatório, pois o juiz — indevidamente — se reveste, ao mesmo tempo, na posição de acusador e julgador", afirma o defensor Esdras dos Santos Carvalho. A atuação do juiz nestes casos, segundo a DPU, equivale a agir de ofício e viola a "organicidade do Direito atuar em função do Estado acusador, do princípio da congruência, e põe por terra o eixo fundamental do sistema acusatório que é a imparcialidade do órgão judicante". Além disso, "torna letra morta a garantia constitucional do inafastável devido processo legal"15.

Todavia, no caso do HC 192.298, o Ministro Relator, Ricardo Lewandowski, denegou a ordem, ao argumento de que, no julgamento do HC 185.633-AgR/SP, Relator o Ministro Edson Fachin, a Segunda Turma da Suprema Corte já havia se manifestado quanto à constitucionalidade do art. 385 do Código de Processo Penal16.

Cabe lembrar, no entanto, assim como fez a DPU, que o STF possui precedente no sentido de que se tem como afastada a pretensão acusatória quando há manifestação do titular da ação penal pública pela absolvição do acusado, não podendo o magistrado condenar de ofício17.

Ao se trazer à lembrança a discussão sobre o art. 385 do CPP, não se quer fugir do tema inicial – necessidade de fundamentação do voto divergente do juiz militar, mas esse desvio intencional se mostra importante para a defesa da nova tese, exatamente porque nos dois exemplos a seguir apresentados, os juízes militares votaram divergindo do magistrado togado na hipótese em que o próprio Ministério Público pediu a absolvição, e não fundamentaram seus votos:

Caso 01 – Tratou-se do processo de número 7000184-72.2022.7.00.0000, julgado na 3ª Auditoria da 3ª CJM, em data de 8/2/22, em que um sargento da Aeronáutica restou condenado por maioria (3x2) nas penas do art. 166, do Código Penal Militar, a pena de 02 (dois) meses de detenção, por ter feito críticas nas redes sociais, dirigidas a seu Comandante em face de inconformismo pela transferência de local de serviço, o que teria lhe trazido inúmeros prejuízos de ordem familiar. O feito encontra-se no Superior Tribunal Militar, ainda sem data de julgamento da apelação. Neste caso, o representante do Ministério Público pediu a absolvição do acusado, por entender que não houve dolo na conduta crítica, e que ele apenas externara seu inconformismo nas redes sociais, cabendo inclusive a aplicação da inexigibilidade de conduta diversa, além do fato poder ser resolvido à luz do direito disciplinar. O Juiz Federal da Justiça Militar, em extensa e judiciosa declaração de voto em separado, adotou os fundamentos do MPM em alegações escritas para absolver o acusado. O juiz militar mais moderno, também foi vencido, votando pela absolvição do acusado pela ausência de dolo nas ações incriminadas.

Constou da Ata do Julgamento, ocorrido em 13 de junho de 2.019, que, por maioria de votos (3x2), o réu foi condenado no artigo 166, do Código Penal Militar, fixando como definitiva a pena em 02 (dois) meses de detenção, em regime aberto. Em razão da reprimenda não superar 02 (dois) anos de reclusão e por estarem presentes os requisitos do artigo 84, do Código Penal Militar, foi concedido o benefício da suspensão condicional da execução da pena privativa de liberdade, com período de prova de 02 (dois) anos, mediante condições que serão fixadas por ocasião da disponibilização da sentença. Ausentes os requisitos da prisão preventiva, admitiu-se o direito de recorrer em liberdade, com base no artigo 527 do Código de Processo Penal Militar. Ato contínuo, o Juiz Federal determinou Conclusão dos autos para elaboração da Sentença condenatória, a qual seria publicada dentro do prazo legal. Não constou a ordem dos votos, nem qual o juiz que abriu a divergência.

Pois bem, seguindo a sistemática do Código de Processo Penal Militar, votou em primeiro lugar o magistrado togado e em segundo lugar o juiz militar mais moderno, ambos absolvendo o acusado. O próximo juiz militar a votar, condenou o acusado, podendo-se afirmar que foi ele quem abriu a divergência – sem que se saiba quais foram suas razões, tendo sido seguido pelos outros dois juízes militares.

Ora, no julgamento em questão, pode-se evidenciar 02 (duas) teses, mas apenas aquela que foi vencida (a do magistrado) é que se encontra nos autos, já que a simples leitura da sentença permite evidenciar a dificuldade do Juiz Federal em redigi-la, já que teve que se referir ao Conselho de Justiça como um todo, sem que houvesse a demonstração expressa daquele ou daqueles que divergiram, e dos pontos em que se fundamentaram para apresentar a divergência, porque se o voto de cada um dos integrantes do Conselho tem o mesmo peso dos outros, deveria estar demonstrado para atender ao princípio constitucional da fundamentação.

Caso 02 – Processo número 0001381-89.2018.9.13.0002, da 2ª Auditoria da Justiça Estadual de Minas Gerais, já transitado em julgado, onde o acusado foi condenado pelo crime de abandono de posto (CP, art. 195), a uma pena de 3 meses de detenção, em regime aberto e com direito de recorrer em liberdade e sursis, por 2 anos. Na sentença constou que o magistrado togado votou pela absolvição (CPPM, art. 439, alínea ‘e’), por entender que o conjunto probatório estampado nos autos era deficiente e precário e não autorizava a prolação de um seguro decreto condenatório. Da leitura da ata do julgamento depreende-se que, em Plenário, o representante do Ministério Público pediu a absolvição do acusado pela insuficiência de provas, sendo secundado pela Defesa. O magistrado togado votou pela absolvição, e os demais juízes militares dele divergiram, condenando o réu. Quem inaugurou a divergência foi o oficial mais moderno, mas não se sabe quais foram os seus fundamentos, não constaram em ata, muito menos foi apresentado o voto divergente que foi vencedor para fazer parte da sentença. Apenas o magistrado togado apresentou declaração extensa e judiciosa de seu voto, tendo que, ao redigir a sentença, ainda que o voto de cada um dos seus integrantes tivesse o mesmo peso, se referido ao Conselho de Justiça como um todo sem a demonstração da fundamentação da divergência.

Pois bem, mostramos dois casos de sentença, mas a necessidade de fundamentação irá ocorrer em qualquer decisão do Conselho de Justiça, tome-se por exemplo, os dispositivos aplicáveis do Código de Processo comum, como os que se referem à prisão preventiva, verbis:

“Art. 315. A decisão que decretar, substituir ou denegar a prisão preventiva será sempre motivada e fundamentada.     (Redação dada pela lei 13.964, de 2019)

§ 1º Na motivação da decretação da prisão preventiva ou de qualquer outra cautelar, o juiz deverá indicar concretamente a existência de fatos novos ou contemporâneos que justifiquem a aplicação da medida adotada.  (Incluído pela lei 13.964, de 2019)

§ 2º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:      (Incluído pela lei 13.964, de 2019)

  1. limitar-se à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida;     (Incluído pela lei 13.964, de 2019)
  2. empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso;     (Incluído pela lei 13.964, de 2019)
  3. invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão;     (Incluído pela lei 13.964, de 2019)
  4. não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador;      (Incluído pela lei 13.964, de 2019)
  5. limitar-se a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos;     (Incluído pela lei 13.964, de 2019)
  6. deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.     (Incluído pela lei 13.964, de 2019)”

Vale relembrar, igualmente, aqueles que dizem ao julgamento pelos tribunais, que serão sempre colegiados, e cujo voto tem o mesmo peso daqueles proferidos no Conselho de Justiça:

“Art. 615.  O tribunal decidirá por maioria de votos.

§ 1o  Havendo empate de votos no julgamento de recursos, se o presidente do tribunal, câmara ou turma, não tiver tomado parte na votação, proferirá o voto de desempate; no caso contrário, prevalecerá a decisão mais favorável ao réu.

§ 2o  O acórdão será apresentado à conferência na primeira sessão seguinte à do julgamento, ou no prazo de duas sessões, pelo juiz incumbido de lavrá-lo [cujo voto foi o vencedor]”.

Então, por aí se vê que o sistema atual de julgamento do Conselho de Justiça está em descompasso com o mandamento constitucional que exige a fundamentação de todas as decisões judiciais [nelas incluído o voto divergente do juiz militar], principalmente naqueles casos em que o voto divergente for o vencedor.

Fundamentar o voto demonstra as razões de fato e direito em que o juiz militar se baseou naquele julgamento, e deve ser imprescindível quando o voto dele for o vencedor, seja para absolver o acusado, seja para condená-lo. Naquele momento do julgamento, o oficial militar é Juiz, questiona, tira dúvidas, decide, auxiliando na efetiva aplicação da Justiça. A jurisdição, como faculdade de julgar e poder dizer o direito, deve ser resultado de uma investigação mental, um exercício de inteligência em que o juiz dará a melhor solução a cada caso concreto. Por isso, essencial que os juízes militares aprimorem seus conhecimentos jurídicos, o que é facilitado pelo fato de todos possuírem nível superior de escolaridade. Da mesma forma, de bom alvitre que procurem conhecer o processo previamente, de modo a extraírem o máximo de informação durante os interrogatórios e oitivas de testemunhas, e assim, firmarem seu convencimento. Em que pese tanto o interrogatório quanto a inquirição de testemunhas serem feitos por intermédio do juiz federal da justiça militar (juiz de direito do juízo militar), os juízes militares poderão – e devem também fazer perguntas ao réu e aos testigos, já que o órgão julgador é o Conselho de Justiça em sua totalidade. Idêntico procedimento deve ser seguido quando do julgamento do processo (CPPM, art. 435), tendo os juízes militares a liberdade necessária para tirar dúvidas sobre qualquer ponto do voto do juiz federal da justiça militar (juiz de direito), ou sobre a tese do Ministério Público, ou da defesa, para só então proferir seu voto na decisão, devidamente fundamentado18.

PROPONDO UMA SOLUÇÃO VIÁVEL

Enfim, não nos parece difícil de se perceber da efetiva necessidade de fundamentação do voto divergente, que será sempre do juiz militar já que o magistrado togado é sempre o primeiro a votar. Não se pode ter como aceitável um código processual que tem como gênese uma norma de antanho, em evidente contrariedade com o mandamento constitucional da fundamentação das decisões judiciais e que deve ser observado também na Justiça Militar.

A solução ideal seria a legislativa, com a edição de um novo Código de Processo Penal Militar, mas, para isso teria que haver muita vontade política, que parece, até agora não ocorreu, o CPPM já passou dos cinquenta anos. Uma alteração pontual na legislação, desde que consentânea com a mudança desejada poderia ajudar se não sofresse aquelas emendas, que geralmente não fazem parte do anteprojeto de lei original e que acabam desvirtuando-o, muitas vezes porque atendem a algum interesse.

Uma alteração na Lei de Organização da Justiça Militar da União [houve um substancial em 2019] e, da mesma forma no Código de Divisão e Organização Judiciária dos Estados e do Distrito Federal também seria suficiente. Em relação aos Estados e Distrito Federal, basta lembrar que estes aplicam em sua Justiça Militar o Código Penal e Processual Penal Militar, valendo-se da legislação de organização judiciária federal, claro, naquilo que não contrariar o disposto na legislação local. Um bom exemplo disso é a Lei nª 11.697, de 13 de junho de 2008  - que dispõe sobre a organização judiciária do Distrito Federal e Territórios, ao fixar o prazo de funcionamento do Conselho Permanente de Justiça por 04 (quatro) meses, ao invés do tradicional trimestre de funcionamento (artigos 36, § 2º e; 39, § 3º).

Quer parecer, entretanto, que a questão pode ser resolvida por meio de uma simples resolução do Plenário do Superior Tribunal Militar e dos Tribunais de Justiça Militar de Minas Gerais, Rio Grande do Sul e São Paulo, ou do Órgão Especial dos tribunais de justiça das demais Unidades da Federação. Nessa eventual resolução, o tribunal apenas daria uma interpretação conforme a Constituição aos artigos 435 e 438, § 2º, do Código de Processo Penal Militar.

Tomando-se por parâmetro a Justiça Militar da União, é o regimento interno que disciplinará o procedimento e o julgamento dos feitos [incluídos os julgamentos], obedecido o disposto na Constituição Federal, no Código de Processo Penal Militar e na lei (lei 8.457/1992, art. 7), como sugerido ao final.

CONCLUSÃO

A conclusão a que se chega, ressalvado entendimento contrário e de todo respeitado, é que a ausência de fundamentação do voto divergente [vencido ou vencedor] na Justiça Militar - que será sempre do juiz militar integrante dos Conselhos de Justiça, não atende ao mandamento constitucional do art. 93, inciso IX, segundo o qual todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade.

A redação da sentença pode continuar a ser feita pelo magistrado togado – mesmo porque é ele o titular do juízo onde tramitam os processos e chefe dos servidores da Justiça que ali atuam, exercendo um controle de toda atividade judicial daquele juízo, mas deve, obrigatoriamente conter o voto divergente apresentado pelo juiz militar. Isso irá facilitar, inclusive o trabalho do Presidente do Conselho na redação da sentença, já que as razões do voto divergente estarão visíveis para todos. Claro, a apresentação do voto divergente deverá preceder a redação da decisão.

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1 Não existe mais sessão secreta. Em face do mandamento do art. 93, IX, da CF, todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade.

2 Atual Juiz Federal da Justiça Militar / Juiz de Direito do Juízo Militar estadual. O magistrado togado assume, ao mesmo tempo, as figuras de relator e de presidente do colegiado.

3 Decreto-Lei 925, de 02.12.1938, Código de Justiça Militar.

4 Órgão colegiado formado por 01 magistrado togado e 04 juízes militares, sob a presidência do primeiro.

5 NUCCI, Guilherme de Souza, Código de Processo Penal Militar Comentado, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 408.

6 STM – AP: 77020117080008 PA 0000007-70.2011.7.08.0008, Relator: Cleonilson Nicácio Silva, Data de Julgamento: 25.03.2013, Data de Publicação: 10.04.2013.

7 ASSIS, Jorge Cesar de; CAMPOS, Mariana Queiroz Aquino, Comentários à Lei de Organização da Justiça Militar da União 2ª edição, Curitiba: Juruá, 2019, p. 98.

8 ARPINI, Soel. O Ministério Público Militar nos países de língua portuguesa. Projeto de Pesquisa da Escola Superior do Ministério Público da União, Santa Maria/RS, 2009.

9 ROTH, Ronaldo João. Justiça Militar e as Peculiaridades do Juiz Militar na atuação Jurisdicional, São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2003, p.97.

10 Ibidem, p. 97.

11 Ibidem, pp. 98-99.

12 ROTH, Ronaldo João. Justiça Militar e as Peculiaridades do Juiz Militar na atuação Jurisdicional, São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2003, p. 100.

13 ROCHA, Abelardo Júlio da. Justiça Militar Estadual – Aspectos Práticos, Coordenadora Sylvia Helena Ono, Curitiba: Juruá, 2017, p.117. 

14 Situação que passou a vigorar na Justiça Militar Estadual, com o advento da EC 45, de 2004.

15 SISTEMA ACUSATÓRIO. DPU pede que STF defina se juiz pode condenar após pedido de absolvição do MP. ConJur - DPU pede definição sobre condenação dada após MP pedir absolvição, disponível em https://www.conjur.com.br/2020-out-05/dpu-stf-defina-juiz-condenar-mp-pedir-absolvicao#:~:text=DPU%20pede%20que%20STF%20defina,pedido%20de%20absolvi%C3%A7%C3%A3o%20do%20MP&text=A%20Defensoria%20P%C3%BAblica%20da%20Uni%C3%A3o,385%20do%20CPP%20pela%20Constitui%C3%A7%C3%A3o. acesso em 11.08.2022.

16 STF, 2ª Turma, HC 185.633, relator Min. Edson Fachin, julgado em sessão virtual de 12 a 23 de fevereiro de 2021, publicado em 24.02.2021.

17 STF, 1ª Turma, AP 960, relator Min. Marco Aurélio, julgado em 13.06.2017, unânime,

18 Nesse sentido, já de há muito tempo nos manifestamos quanto ao proceder ideal do juiz militar integrante dos Conselhos, vide: ASSIS, J. C.. Os Conselhos de Justiça Militar

Jorge Cesar de Assis
Advogado inscrito na OAB/PR. Membro aposentado do Ministério Público Militar da União. Integrou o Ministério Público paranaense. Oficial da reserva não remunerada da PMPR.

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