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A recomendação 134/22 do CNJ e a discussão sobre a efetividade do sistema de “precedentes à brasileira”

A recomendação em análise, por mais que tenha caráter de resolução em certos dispositivos, ainda que disfarçado, é um mecanismo de soft law.

14/9/2022

O presente artigo busca contextualizar a recomendação 134/22 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), publicada nesta segunda feira (12/9/22), que “dispõe sobre o tratamento dos precedentes no Direito brasileiro”. A recomendação, que também possui conteúdo de resolução, buscou resolver questões controversas e ainda omissas na legislação brasileira acerca da obrigatoriedade da observância dos precedentes e do seu modo de aplicação. Aqui, serão feitas breves considerações acerca do papel do CNJ na estruturação do sistema de justiça; do nosso “sistema de precedentes à brasileira”; e sobre a escolha do CNJ quanto à utilização da soft law para a edição de atos como a Recomendação em análise.

O CNJ, criado pela EC 45/04, mediante a inclusão do artigo 103-B à Constituição Federal, é um órgão administrativo criado para exercer o controle da atuação administrativa, financeira e processual do Poder Judiciário, cuidando para que o exercício da jurisdição seja o mais democrático, transparente e coeso possível.

A criação do CNJ e a constitucionalidade da sua competência normativa já foi declarada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADIn 3367 e, posteriormente, da ADC 12. Todavia, ainda restam dúvidas acerca dos limites do chamado poder “normativo” do CNJ, previsto no artigo 103-B, § 4º e inciso I, da Constituição Federal. Lênio Luiz Streck, Ingo Wolfgang Sarlet e Clemerson Merlin Clève, quando da criação do Conselho, advertiram que o CNJ e o CNMP não podem substituir-se à vontade do legislador ou à atuação do magistrado, devendo-se ater à reserva legal e à reserva da jurisdição1.

Dentre os instrumentos normativos que podem ser editados pelo CNJ, o artigo 102 do RI-CNJ disciplina sobre as resoluções, as recomendações, os enunciados administrativos e as instruções, mas apenas as resoluções e os enunciados administrativos são dotados de “eficácia vinculante”, por previsão do § 5º do artigo 102 do Regimento, que dá grande destaque para o papel das resoluções enquanto concretização do poder regulamentar.

Conforme mencionado acima, críticas doutrinárias são feitas contra a competência normativa do CNJ, justamente por conta de situações limítrofes entre “regulamentar” e “legislar”. A Corte Suprema foi provocada a se manifestar sobre diversas Resoluções do CNJ que extrapolariam a competência normativa do órgão. Todavia, o Supremo Tribunal Federal já admitiu a possibilidade de o CNJ, na prática, inovar em relação a procedimentos judiciais e deveres funcionais, tendo como exemplo o julgamento da ADIn 4145.

Inclusive, muitas das resoluções do CNJ, apesar de extrapolarem, em alguma medida, a sua competência normativa, são essenciais para a boa administração da justiça, como evidenciado nas resoluções 313, 314 e 318 de 2020, que foram de grande importância para a sobrevivência do Judiciário durante a pandemia do COVID-19. 

Também não é nenhuma novidade o CNJ editar Recomendações para buscar a boa administração da justiça no Direito Processual, como apontado por Fredie Didier Jr. e Leandro Fernandez em obra recente sobre “O Conselho Nacional de Justiça e o Direito Processual”.2

É nesse contexto em que se insere a recomendação 134/22, que possui conteúdo tanto de Resolução quanto de Recomendação, uma vez que seus dispositivos ora têm caráter vinculante, ora persuasivo. Essa parece ter sido, a nosso ver, a maneira encontrada pelo CNJ para evitar discussões fundadas na ideia de que o órgão estaria legislando em matéria de Direito processual, o que seria, a despeito da jurisprudência mais flexível da Corte Suprema, inconstitucional.

De fato, a racionalização do funcionamento do nosso sistema de justiça, por meio da fixação de um sistema de precedentes, é algo que, há muito tempo, tem preocupado a doutrina3 e os tribunais. Nesse sentido, diversos mecanismos para a implementação da uniformização das decisões foram implementados, como, notadamente, a Súmula Vinculante e Repercussão Geral pela Emenda Constitucional 45/04, culminando na edição do Código de Processo Civil de 2015, que tem como grande objetivo fortalecer o valor da segurança jurídica e garantir maior previsibilidade e estabilidade das decisões judiciais.

Diversas tentativas, como a da recomendação em análise, foram muito bem-intencionadas na concentração de esforços para desenvolver maneiras de resolver o abrupto aumento de processos nos tribunais, trazendo, inclusive, artifícios interessantes, conforme já se viu acima.

A afogamento do Judiciário e a sucessiva sobreposição de instrumentos processuais — eficazes ou não, para solucionar tal sobrecarga — já preocupava o Ministro Victor Nunes Leal, que nos ensinou que “firmar a jurisprudência de modo rígido não seria um bem, nem mesmo seria viável. A vida não para, nem cessa a criação legislativa e doutrinária do direito. Mas vai uma enorme diferença entre a mudança que é frequentemente necessária, e a anarquia jurisprudencial, que é descalabro e tormento. Razoável e possível é o meio-termo [...]”.4

Com efeito, se é desejável uma maior metodização do modo de aplicação dos precedentes, deve se prezar, por conseguinte, pelo desembaraço dos meios e soluções propostas nesse sentido. Na tentativa de explicar o curioso funcionamento dos chamados “precedentes à brasileira”, Teresa Arruda Alvim e Bruno Dantas aduzem que o efeito vinculante preconizado pelos artigos 926 e pelo ainda duvidoso 927 do CPC podem ser classificados em: a) obrigatoriedade forte, quando a observação de um precedente fosse exigida por lei; b) obrigatoriedade média, quando o “o seu desrespeito pode gerar a correção por meios não concebidos necessariamente nesse fim”5 c) a obrigatoriedade fraca, concebida como aquela que pode ser extraída do aspecto cultural, razoabilidade, bom senso, etc.

É certo que, conforme nos ensina o mestre Calmon de Passos,6 o aspecto cultural, típico de um sistema de civil law, realmente denota a dificuldade de internalização do modelo de precedentes, o que foi bastante acentuado posteriormente, com o advento do CPC de 2015.

Essa dificuldade residiria justamente no papel assumido pelos magistrados brasileiros na realização do chamado “preenchimento hermenêutico” da norma, já estabelecida mediante o direito legislado, que era, na época — e continua sendo — o predominante no país, fato que em que se baseia o considerável número de refratários à ideia dos precedentes enquanto normas gerais, abstratas e vinculantes.

É por isso que, ultimamente, temos visto notícias como o caso da não aplicação, por parte do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, a uma tese firmada pelo Superior Tribunal de Justiça em sede de recursos repetitivos; 8 além da constante advertência realizada pelos Ministros do STJ sobre o modo como o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, reiteradamente, descumpre as diretrizes firmadas pelo Tribunal da Cidadania7.

Fato é que o legislador e os Tribunais Superiores estão trabalhando em direção a garantir maior previsibilidade e estabilidade das decisões judiciais. Busca-se, claramente, a mudança do papel dos Tribunais Superiores, no caminho de se tornarem Cortes Supremas,8 tendo como exemplo recente a criação do filtro da relevância para o recurso especial, embora haja críticas a esse desenho institucional e divergências acerca de termos, ou não, um sistema de precedentes9.

É exatamente a partir de casos como estes que se levanta o questionamento sobre a conveniência da utilização de um instrumento, com alto grau de soft law, para regulamentar, justamente, a aplicação dos precedentes no Brasil, sobretudo quando tem se discutido, a não mais poder, sobre a efetividade de seu caráter pretensamente vinculante.

Entendemos ser positivo o esforço feito na recomendação 134/22 do CNJ para, em relação aos precedentes (i) padronizar e estimular a sua formação; (ii) detalhar as formas de superação e distinção; (iii) reforçar a necessidade de fundamentação adequada, (iv) unificar a solução de questões comuns; e (v) incentivar a comunicação dos órgãos jurisdicionais em relação à suspensão de processos aptos à formação de precedentes qualificados.

Todavia, o problema da racionalidade da justiça nos parece estar concentrado na justiça de primeiro e segundo grau, que muitas vezes não estão acostumados a trabalhar com precedentes e com as inovações do atual CPC, e que, muitas vezes por uma falta de comunicação das decisões das Cortes Superiores, sequer chegam a tomar ciência dos precedentes formados.

Por fim, a Recomendação em análise, por mais que tenha caráter de Resolução em certos dispositivos, ainda que disfarçado, é um mecanismo de soft law.

Embora Fredie Didier Jr. e Leandro Fernandez identifiquem vantagens na utilização da soft law em matéria processual,10 provavelmente a observância da recomendação 134/22 do CNJ dependerá, em grande medida, da comunicação do CNJ, da atuação dos advogados e da mobilização gradual e sistêmica das Cortes, pois essa é uma questão cultural.

_____________

1 MIGALHAS. STRECK, Lênio Luiz; SARLET, Ingo Wolfgand; CLÈVE, Clemerson Merlim. Os limites constitucionais das resoluções do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). Set. 2022.Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/18408/os-limites-constitucionais-das-resulocoes-do-conselho-nacional-de-justica--cnj--e-conselho-nacional-do-ministerio-publico-cnmp

2 Os autores apontaram que 50 das 110 recomendações editadas pelo Conselho até outubro de 2021 versam sobre matéria processual (DIDIER JR., Fredie. Fernandez, Leandro. O Conselho Nacional de Justiça e o Direito Processual. Salvador: Juspodvim, 2022, p. 71).

3 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 7. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2022.

4 LEAL, Victor Nunes. Passado e futuro da súmula do STF. In: Revista de Direito Administrativo, v. 145, 1981, p. 11.

5 ALVIM, Teresa Arruda; DANTAS, Bruno. Recurso especial, recurso extraordinário e a nova função dos tribunais superiores: precedentes no direito brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019, p. 275.

6 PASSOS, José Joaquim Calmon de. Ensaios e Artigos: v. II (Orgs. Fredie Didier Jr.e Paula Sarno Braga). Salvador: Juspodvim, 2014, p. 97, 98.

7 Ministros do STJ criticam TJ/SP por desobediência de jurisprudência criminal. 4 ago. 2020. 

8 MITIDIERO, Daniel. Cortes Superiores E Cortes Supremas: Do Controle À Interpretação, Da Jurisprudência Ao Precedente. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017.

9 STRECK, Lênio Luiz. Por que commonlistas brasileiros querem proibir juízes de interpretar? set. 2016.

10 Op. Cit. P. 70-75.

Rodrigo Garcia Duarte
Acadêmico de Direito pela Universidade de Brasília (UnB).

Antonio Ali Brito
Acadêmico de Direito pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP).

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