Às vésperas de um 7 de setembro que tem tudo pra ser conturbado no Brasil, a vizinha Argentina, e o mundo, viram-se estarrecidos com o atentado sofrido pela ex-presidente, e atual vice, Cristina Kirchner.
O homicídio tentado – que só não se confirmou por circunstâncias alheias à vontade do autor, um brasileiro de nascimento que reside em Buenos Aires desde criança em tenra idade –, escancarou o sinal de alerta no que se refere a manifestações polarizadas político-partidárias.
Ao apontar uma arma de fogo em direção ao rosto de Cristina Kirchner, aquele homem evidenciou o ódio, escrachou o deboche e expôs o total desprezo pela governabilidade de um país e sua democracia.
Engana-se quem pensa que, ao atacar uma determinada figura política esteja atingindo a pessoa do candidato ou do político. Não! Fere-se a pluralidade política, o Estado Democrático de Direito, as leis, a convivência em sociedade e o próprio senso de discernimento, cultura e educação.
Outrossim, o fato da Argentina estar passando por uma severa crise econômica não assevera qualquer justificativa criminosa. Diante disso, muito provavelmente o fatídico episódio já ensejou maiores atenções por parte das Polícias e dos órgãos de Inteligência brasileiros, mormente no tocante às atenções para o futuro que se avizinha no Dia da Independência.
É lamentável que tamanhas reflexões estejam se tornando rotineiras neste enredo trágico que vem se construindo ao longo dos anos no Brasil. Cada vez mais se vê ânimos inflamados pelos discursos de ódio e da vã interpretação de uma suposta, fictícia e utópica disputa entre o “bem” e o “mal” para (e pelo) poder de governar um país.
Como já escrito exaustivamente em outros textos passados, é lógico que a discussão política no campo das ideias é salutar para o aprimoramento e desenvolvimento de um povo e sua nação. Entretanto, há que se respeitar opiniões divergentes buscando sempre a evolução argumentativa pacífica; faz bem, inclusive, para a construção de uma boa imagem externa no quesito de política internacional.
Ocorre que tudo isso guarda uma certa analogia à teoria do “Direito Penal do Inimigo”1, desenvolvida pelo alemão Gunther Jakobs. Em apertada síntese, trata-se de uma política criminal que visa a necessidade de separar socialmente aqueles indivíduos tidos como “inimigos” do Estado. Assim, os criminosos que violassem as leis teriam suas garantias e direitos fundamentais excluídos ou modelados ao caso concreto.
Nesta senda, o doutrinador alemão aduz que o Estado pode atuar de duas maneiras contra os criminosos: como delinquentes a serem punidos pelos atos já praticados, ou como indivíduos que apresentam um perigo iminente ao Estado e, com isso, precisam ser combatidos antecipadamente; como futuras ameaças.
É aqui que florescem dois Direitos. Aquele em que, como o perfume das flores, exala todas as garantias penais e processuais respeitadas indistintamente e o, por sua vez espinhoso, “Direito Penal do Inimigo”.
Na classificação de “inimigo”, o jurista espanhol Jesús-Maria Silva Sanchez, o define como “um indivíduo que, pelo seu comportamento, sua ocupação profissional ou, principalmente, mediante sua vinculação a uma organização, abandonou o Direito de modo supostamente duradouro e não somente de maneira incidental, a ausência da mínima segurança cognitiva em sua conduta tornaria plausível que o modo de afrontá-lo fosse com o emprego de meios de asseguramento cognitivo desprovidos da natureza de penas”.2
Percebe-se, portanto, uma espécie de metamorfose dessa teoria para o chamado “Direito Penal do Inimigo Político”. Ou seja, aquele que não concorda com determinado posicionamento político-partidário – ao qual filio minha defesa visceral (literalmente) –, merece pena de banimento ou de morte; enfim, qualquer “medida antidemocrática em defesa da democracia” que eles “dizem sem falar”.
Pena? Que pena! Pois como já diria o poeta argentino, Jorge Luis Borges, “É preciso ter cuidado ao escolher os inimigos, porque acabamos por nos parecer com eles.”3
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1 JAKOBS, Günther. Ciência do direito e ciência do direito penal. Trad. por Maurício Antonio Ribeiro Lopes. São Paulo: Manole, Coleção Estudos de Direito Penal, 2003. Volume 1.
2 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. Eficiência e direito penal. Trad. por Maurício Antonio Ribeiro Lopes. São Paulo: Manole, Coleção Estudos de Direito Penal, 2004. Volume 11.
3 BROGES, Jorge Luis. Obras Completas. Editora Globo, 1999. Volume2.