Migalhas de Peso

A fome é, sim, um crime

Deixar de prover alimento a pessoa com fome é crime. E é criminoso o negacionista que desdenha dos famintos.

1/9/2022

“Não há outra maneira de dizer. Não há atenuante. Em um mundo que produz alimentos suficientes para dar de comer a todos os seus habitantes, a fome nada mais é do que um crime” (José Graziano da Silva, Diretor-Geral da FAO e Adolfo Pérez Esquivel, Prêmio Nobel da Paz, em artigo intitulado “A fome é um crime”, publicado no El País).

No mesmo tom, o Papa Francisco na pré-cúpula sobre os sistemas alimentares da ONU (agosto 2021): “um verdadeiro escândalo, um crime que viola direitos humanos básicos, o fato de ainda haver pessoas sem o pão de cada dia num mundo que há muito atingiu a plena autossuficiência alimentar”.

A fisiologia comprova que passadas mais de 24 horas sem alimento a saúde humana já começa a entrar em zona de perigo por conta do esgotamento da reserva de glicogênio armazenada. Essa privação causa males concretos à saúde, que se iniciam com cefaleias intensas, tonturas, hipotensão, entre outros sintomas que podem progredir, a depender do grau de privação, a danos cardíacos, cerebrais... No limite, claro, conduz à morte.

A privação a alimentos obviamente pode significar perigo iminente à saúde (ou até à vida) de quem se encontra em estado famélico.

Um estado que se pretenda democrático e solidário não pode ser insensível à chaga que mais emblematicamente retrata a injustiça e a desigualdade social.  Fome.

Nossa Carta Cidadã estabelece, dentre seus valores mais caros, a dignidade da pessoa humana (art. 1, III); e como objetivo fundamental a ser buscado por qualquer governante “erradicar a pobreza” e “reduzir as desigualdades” (art. 3, III), inerentes a uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3, I).

Não por outro motivo, do ponto de vista da legislação infraconstitucional, deixar de prover alimento à pessoa com fome, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, pode mesmo até configurar crime, punido com detenção de 1 a 6 meses.

A par do crime universal, inerente a um mundo com suficiência de alimentos, a tolerância e inação frente à fome pode caracterizar, sim, um crime em sentido estrito. Conforme o caso, esse comportamento ilícito pode ser extraído do art. 135 do Código Penal brasileiro (crime de omissão de socorro).

Compreender essa figura ilícita penal não requer alfabetização. Há que se ter um pequenino traço de sensibilidade humana. E é o mínimo que se exige de cada governante: jamais dar as costas ao concidadão faminto, negar sua existência. Tampouco marginalizar a vítima ou fazê-la sumir através da varinha mágica da invisibilidade.

Muito difícil explicar esse negacionismo ao menino Miguel, 11 anos, morador da Região Metropolitana de Belo Horizonte (uma das maiores do país), que em pleno ano de 2022 telefonou para polícia, clamando por comida. Depois de três dias dividindo apenas água e fubá com a família, o pequeno Miguel não suportou ver “minha mãe chorando no canto”. No alto de sua ingênua sabedoria, costurada com a urgência de quem tem fome, gritou por socorro ao poder público. Socorro!

O “choro no canto” de dona Célia, mãe do Miguel, deveria ser chorado por todos nós, em todos os cantos. Há milhões de miguéis no Brasil que têm que ser enxergados. É urgente que tenham atenção e cuidado. Em especial, a atenção e o cuidado de nossos governos. 

O governante que encobre a existência da fome num país de mais de 33 milhões de famintos pratica um negacionismo criminoso. Estimula e apologiza a perpetuação de uma criminosa omissão, contra todos os valores e princípios inerentes à solidariedade; contra tudo que conspira por uma sociedade sadia.

A fome é um crime. E quem não enxerga os famintos, um criminoso.  É disso que se trata.

Paulo Calmon Nogueira da Gama
Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-Rio, Desembargador

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