O denominado “Rol da ANS”, estabelecido no âmbito da lei 9.656/98 como sendo o “Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde Suplementar”, já havia sofrido alteração recente, por intermédio da lei 14.307/22, em que restou assim definido por intermédio do art. 10, § 4º:
“Art. 10. É instituído o plano-referência de assistência à saúde, com cobertura assistencial médico-ambulatorial e hospitalar, compreendendo partos e tratamentos, realizados exclusivamente no Brasil, com padrão de enfermaria, centro de terapia intensiva, ou similar, quando necessária a internação hospitalar, das doenças listadas na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde, da Organização Mundial de Saúde, respeitadas as exigências mínimas estabelecidas no art. 12 desta lei, exceto:
[...]
§ 4º A amplitude das coberturas no âmbito da saúde suplementar, inclusive de transplantes e de procedimentos de alta complexidade, será estabelecida em norma editada pela ANS.”
A redação contida na norma regulamentadora dos planos de saúde, tanto nos verbetes originalmente utilizados quanto por intermédio das alterações posteriores, permitia díspares interpretações acerca de sua efetiva aplicação concessiva aos beneficiários no que se refere aos tratamentos de saúde a serem disponibilizados pelas operadoras.
Em julgamento recente, a C. Segunda Seção do E. Superior Tribunal de Justiça, ao julgar os Embargos de Divergência nos autos dos processos EREsp 1.886.929 e 1.889.704, firmou entendimento quanto a exegese restritiva da lei, avocando a taxatividade como regra geral e a exemplificatividade como exceção ao Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde Suplementar1.
A tese prevalente, a partir de voto do Exmo. Ministro Luis Felipe Salomão, restou delimitada, por maioria de votos, no seguinte sentido:
“1. O rol de procedimentos e eventos em saúde suplementar é, em regra, taxativo;
2. A operadora de plano ou seguro de saúde não é obrigada a arcar com tratamento não constante do rol da ANS se existe, para a cura do paciente, outro procedimento eficaz, efetivo e seguro já incorporado ao rol;
3. É possível a contratação de cobertura ampliada ou a negociação de aditivo contratual para a cobertura de procedimento extra rol;
4. Não havendo substituto terapêutico ou esgotados os procedimentos do rol da ANS, pode haver, a título excepcional, a cobertura do tratamento indicado pelo médico ou odontólogo assistente, desde que (i) não tenha sido indeferido expressamente, pela ANS, a incorporação do procedimento ao rol da saúde suplementar; (ii) haja comprovação da eficácia do tratamento à luz da medicina baseada em evidências; (iii) haja recomendações de órgãos técnicos de renome nacionais (como Conitec e Natjus) e estrangeiros; e (iv) seja realizado, quando possível, o diálogo interinstitucional do magistrado com entes ou pessoas com expertise técnica na área da saúde, incluída a Comissão de Atualização do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde Suplementar, sem deslocamento da competência do julgamento do feito para a Justiça Federal, ante a ilegitimidade passiva ad causam da ANS.”
A hermenêutica jurídica aplicada aos dois leading cases condutores do julgado, guiou ao entendimento de que, em casos excepcionais, poder-se-ia buscar solução de saúde fora dos limite impostos pelo Rol de Procedimentos, mas diante de condicionantes muito específicas e cumulativas, em que restasse demonstrada, de forma irrefutável, além da ausência de negativa de incorporação expressa prévia, a comprovação da eficácia à luz da medicina baseada em evidências, a recomendação por órgãos técnicos tanto nacionais quanto alóctones, bem como a efetiva comparação diagnóstica e terapêutica a respeito dos tratamentos existentes e o proposto pelo médico assistente, em benefício do paciente.
Além da discussão no âmbito da Corte Superior de Justiça, igualmente instauraram-se diversas demandas em face da lei 9.656/98 perante o Excelso Pretório, em especial as ADIs 7088, 7183 e 7193 e as ADPFs 986 e 990, todas sob relatoria do Exmo. Ministro Luís Roberto Barroso.
A par da discussão judicial, todavia, o Parlamento brasileiro mobilizou-se para que houvesse o caminho adequado a tal debate, qual seja, a normatização por intermédio do devido processo legislativo.
Discutir o caráter exemplificativo ou taxativo do Rol de Procedimentos no âmbito do Poder Judiciário é capaz de causar uma espécie de desequilíbrio democrático, na medida em que àquele Poder é atribuída, dentre outras, a sublime tarefa de pacificar conflitos, e não estabelecer teses normatizadoras das relações, encargo precípuo constitucional do Legislativo.
Na esteira de regulamentar a questão, doravante por intermédio do devido processo legislativo, no dia 29 de agosto de 2022 foi aprovado no Senado Federal o Projeto de lei 2.0332, rumo à respectiva sanção presidencial que, de forma sinóptica, primou por estabelecer importantes premissas acerca do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde Suplementar, objetivando conceder aos beneficiários acesso a outros tratamentos excepcionais, além dos previstos pela Agência Nacional de Saúde Suplementar, em sua atividade regulatória.
O texto final aprovado, concedeu nova redação ao susomencionado §4º, do art. 10, bem como lhe incluiu novos parágrafos, todos da lei 9.656/98, in verbis:
“Art. 10.
[...]
§ 4º A amplitude das coberturas no âmbito da saúde suplementar, inclusive de transplantes e de procedimentos de alta complexidade, será estabelecida em norma editada pela ANS, que publicará rol de procedimentos e eventos em saúde suplementar, atualizado a cada incorporação.
[...]
§ 12. A rol de procedimentos e eventos em saúde suplementar, atualizado pela ANS a cada nova incorporação, constitui a referência básica para os planos privados de assistência à saúde contratados a partir de 1º de janeiro de 1999 e para os contratos adaptados a esta lei, e fixa as diretrizes de atenção à saúde.
§ 13. Em caso de tratamento ou procedimento prescrito por médico ou odontólogo assistente que não estejam previstos no rol referido no § 12 deste artigo, a cobertura deverá ser autorizada pela operadora de planos de assistência à saúde, desde que:
- exista comprovação da eficácia, à luz das ciências da saúde, baseada em evidências científicas e plano terapêutico; ou
- existam recomendações pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec), ou exista recomendação de, no mínimo, 1 (um) órgão de avaliação de tecnologias em saúde que tenha renome internacional, desde que sejam aprovadas também para seus nacionais
A partir do regular processo legislativo, o Parlamento brasileiro manteve a competência da Agência Nacional de Saúde Suplementar para normatizar a amplitude das coberturas, mantendo, entretanto, a possibilidade de tratamento dos casos excepcionais, tal como definido pela Corte Superior de Justiça, exceto no que se refere aos requisitos concessórios quando diante de hipóteses extraordinárias.
O Rol da ANS, portanto, permanece taxativo, como uma espécie de cobertura básica ordinária. Até porque, se assim não o fosse, desvanecia a necessidade da competência prevista na lei atribuída à ANS a respeito, bastando que houvesse prescrição médica, culminando na automática e imediata concessão do quanto proposto pelo profissional o que não é admissível na atual conjuntura normativa.
A lei, acaso sancionada, trará maior flexibilidade, tanto ao médico quanto ao odontólogo, na prescrição de tratamentos ou procedimentos indicados que porventura não estejam previstos no respectivo Rol de Procedimentos inicialmente proposto pela Agência reguladora, de forma a conduzir o melhor para o paciente dentro de suas respectivas autonomias profissionais.
Assim, permanece a obrigação primária de se observar o Rol para, posteriormente, partir a uma solução de saúde alternativa a ele.
De toda a sorte, é de se destacar que a responsabilidade pelo melhor tratamento retorna às mãos do médico e do odontólog, enquanto prescritor e assistente, ciente das necessidades específicas de seu paciente e, portanto, soberano na práxis profissional.
A cobertura, em caráter excepcional, deverá ser autorizada pela operadora de plano de saúde a partir da respectiva indicação médica, comprovada quanto à sua eficácia, no caso concreto e de acordo com as especificidades do caso clínico, sempre à luz das evidências científicas e do respectivo plano terapêutico, em sobreposição à prescrita na relação estabelecida.
De forma alternativa, e não mais cumulativa como indicado pelo julgamento da C. Corte Superior, a lei permitirá a substituição do requisito anterior pela respectiva recomendação de uso pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (CONITEC), o que se apresenta como um grande avanço em termos equitativos entre a saúde pública e a saúde suplementar.
Por fim, a lei ainda permite a utilização paradigmática de recomendações a partir de órgãos de avaliação de tecnologias em saúde com renome internacional, o que demandará, neste aspecto específico, algumas ponderações e, provavelmente, a respectiva judicialização para que se comtemple interpretação justa acerca de tal termo excessivamente subjetivo ou, ainda, porventura, uma regulamentação administrativa pela Agência Nacional de Saúde Suplementar a fim de estabelecer quais seriam tais órgãos a serem aceitos para tal finalidade, sob pena de, ao contrário do próprio objetivo da lei, ampliarmos excessivamente as coberturas, o que não é indicado para o próprio equilíbrio dos contratos, elemento que também não pode ficar à margem do debate.
Cabe mencionar que houve a apresentação de uma proposta de Emenda (03) ao projeto de lei por intermédio do Senador Eduardo Girão (PODEMOS/CE), no sentido de incluir, nesta terceira hipótese, a ressalva “desde que sejam aprovados e estejam em uso pelos seus nacionais e referendados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) quanto a segurança e eficácia”; contudo, tal destaque não foi contemplado na votação final da matéria, o que, de certa maneira, traria segurança jurídica a este item específico, na medida em que já há decisão do C. Supremo Tribunal Federal acerca de tal ponto, mas no que se refere ao Estado (RE 657.718).
Quiçá, este será um ponto da lei a ser efetivamente judicializado.
A fórmula encontrada pelo Legislativo parece atender aos anseios dos beneficiários, sem criar um excessivo desequilíbrio nos contratos individuais junto às operadoras de saúde, a partir do caminho correto, por iniciativa do Parlamento brasileiro, resguardando ao Poder Judiciário sua função primordial de, diante do caso concreto e específico, dizer o direito.
Destarte, cabe destacar que a responsabilidade do profissional prescritor acentua-se diante da devida comprovação quanto a eficácia do tratamento ou procedimento indicado, à luz dos axiomas legais e, consequentemente, éticos da profissão. O devido respeito à autonomia profissional, frente ao paciente enquanto alvo da atuação médica e odontológica, encerra no depósito de um ônus ainda maior quanto à respectiva documentação alicerçadora do pedido extravagante.
Sem qualquer conotação religiosa, cabe transcrever os sábios ensinamentos de Lucas 12:42-48: “A quem muito foi dado, muito será exigido; e a quem muito foi confiado, muito mais será pedido.”
Aguardemos a sanção presidencial e observemos a evolução natural da lei.
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1 https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/08062022-Rol-da-ANS-e-taxativo--com-possibilidades-de-cobertura-de-procedimentos-nao-previstos-na-lista.aspx [acesso em 30 de agosto de 2022]
2 https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2022/08/29/senado-aprova-obrigatoriedade-de-cobertura-de-tratamentos-fora-do-rol-da-ans [acesso em 30 de agosto de 2022]