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Desconexão regulatória: como regular novas tecnologias?

A autorregulação, a corregulação e a regulação experimental, em suas diversas modalidades, não necessariamente excluem a possibilidade de estabelecer posteriormente regulações nos formatos tradicionais, precedidas de estudos minuciosos e especializados.

1/9/2022

A inovação traz uma série de dúvidas sobre como aplicar os institutos tradicionais do direito frente às novas dinâmicas dos mercados e das sociedades. Como o direito de propriedade se aplica aos produtos virtuais, como ebooks e jogos armazenados em nuvem? Como a responsabilidade civil é desenhada nas redes sociais? Como as obrigações e os contratos se estabelecem nos marketplaces?

Esses são apenas alguns exemplos dos inúmeros questionamentos feitos no mundo jurídico pelo menos desde a última década. As soluções propostas são diversas. Muitos defendem ser preferível resolver os problemas jurídicos resultantes das novas tecnologias por meio das ferramentas que já existem, cobrando uma atuação mais ativa do judiciário. De fato, essa é uma solução interessante, pois aproveita as normas já existentes e resolve esses problemas de maneira mais célere. Todavia, em algumas situações é inevitável desenvolver novas regulações, especialmente quando estamos tratando de inovações disruptivas, isto é, que criam paradigmas completamente novos.1 As rápidas mudanças do ambiente virtual, proporcionadas pelo avanço da internet, geram várias inovações disruptivas. A dinâmica que os dados pessoais passaram a exercer é um exemplo disso, o que resultou na criação de várias regulações de proteção de dados ao redor do mundo.

No entanto, as regulações são frequentemente incapazes de acompanhar o ritmo acelerado das tecnologias, gerando dois desafios importantes. Primeiro, o descompasso regulatório, chamado pela doutrina estrangeira de pacing problem, que consiste justamente no descompasso entre a regulação e a matéria regulada.2 Em segundo, o timing regulatório, que consiste no processo de definição do momento mais adequado para intervir. Esses dois desafios fazem parte do fenômeno da desconexão regulatória.3

A razão por trás desses problemas reside na dificuldade que temos em regular as novas tecnologias. As tecnologias surgem e se popularizam rapidamente, mas sempre sabemos muito bem como elas de fato funcionam, tampouco qual é a maneira mais eficiente de regulá-las. Em muitos casos, a necessidade de criar normas é clara, mas os reguladores – não raramente na figura de legisladores populistas e não especializados – criam normas que aumentam mais ainda os problemas e até mesmo impedem o avanço tecnológico. Na economia compartilhada é possível identificar vários fenômenos desse tipo. Basta lembrar do cenário caótico de regulações que foram promovidas nos diversos municípios do país para lidar com aplicativos de mobilidade, como Uber e 99, e plataformas de aluguel de imóveis, como Airbnb. Por outro lado, quando as regulações precedem longos debates, levantamentos de dados, e análises de especialistas, apesar de normalmente serem mais adequadas, podem chegar atrasadas no combate aos problemas que visam solucionar.

Como então resolver o problema da desconexão regulatória? Para isso, é fundamental pensar em soluções capazes de mitigar esses desalinhamentos, conseguindo lidar de modo adequado com os problemas e dispensando períodos muito grandes de análise.

Iniciativas de autorregulação e corregulação podem ser soluções interessantes. Ao promover maior responsabilidade aos entes privados, o risco de prejudicar o processo inovativo é menor. É importante compreender que essas práticas não implicam ausência de regulação estatal, sendo crucial a supervisão por parte do poder público – o que pode ocorrer em diferentes graus – a fim de garantir a efetividade e a aplicação das normas estabelecidas.4

Os modelos de regulação experimental também podem ser alternativas interessantes. Regulações provisórias por tempo determinado, por exemplo, podem ser usadas para medir os efeitos da intervenção no curto prazo. Em casos de iniciativas que ainda estão em estágios iniciais, o sandbox regulatório também pode ser proveitoso. O sandbox regulatório consiste em um ambiente regulatório experimental e controlado, que pode ser usado como base para a elaboração de regulações definitivas ou para a alteração das regulações vigentes. O sandbox já é utilizado no mercado financeiro, sendo usado desde 2015 pelo órgão regulador do mercado financeiro do Reino Unido, o FCA5. No Brasil, a Susep, a CVM e o Banco Central já possuem iniciativas nesse sentido.

A autorregulação, a corregulação e a regulação experimental, em suas diversas modalidades, não necessariamente excluem a possibilidade de estabelecer posteriormente regulações nos formatos tradicionais, precedidas de estudos minuciosos e especializados. Não obstante, essas são medidas adequadas para lidar com os desafios que a inovação e a tecnologia trazem para a regulação, e capazes de mitigar a desconexão regulatória.

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1 KAAL, Wulf A.. Dynamic Regulation for Innovation. U Of St. Thomas (Minnesota) Legal Studies Research Paper, Minnesota, v. 22, n. 16, ago. 2016, p. 4-5. Disponível em: https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2831040. Acesso em: 12 jul. 2022.

2 Ibidem, p. 7.

3 BRUZZI, Eduardo. Disrupção regulatória e inovação tecnológica: por que o timing regulatório é importante?. 2019. Jota. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/regulacao-e-novas-tecnologias/disrupcao-regulatoria-e-inovacao-tecnologica-31082019. Acesso em: 11 jul. 2022.

4 ANTONIALLI, Dennys; PERINI, Fernando. A economia do compartilhamento em países em desenvolvimento: mapeando novos modelos de negócio e tensões regulatórias. In: ZANATTA, Rafael A. F.; PAULA, Pedro C. B. de; KIRA, Beatriz (org.). Economias do compartilhamento e o direito. Curitiba: Juruá, 2017. p. 342.

5 REINO UNIDO. FINANCIAL CONDUCT AUTHORITY. Regulatory sandbox. Londres, 2015. 24 p. Disponível em: https://www.fca.org.uk/publication/research/regulatory-sandbox.pdf. Acesso em: 12 jul. 2022.

Ivan Lago Mariotto
Tecnologia, proteção de dados e direito concorrencial/antitruste.

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