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Extinguir a saída temporária é a solução do sistema carcerário brasileiro?

A saída temporária é um benefício amparado pela lei e condicionado a regras e a critérios rígidos, cujas etapas devem ser seguidas à risca.

23/8/2022

Foi aprovado, na Câmara dos Deputados, no último dia 3 de agosto de 2022, o projeto de lei que acaba com a saída temporária de presos, conhecida popularmente como "saidinha” ou “saidão".

O projeto teve por relator o deputado federal Capitão Derrite, do Partido Liberal de São Paulo, e foi aprovado no plenário da Câmara dos Deputados por 311 votos a favor e 98 contra. Agora, o texto retornará ao Senado, como substitutivo do projeto de lei 6579/13, que ali já tramitou.

Segundo o relator do projeto, o Capitão Derrite, justifica em seu parecer, a saída temporária "causa a todos um sentimento de impunidade diante da percepção de que as pessoas condenadas não cumprem suas penas, e o pior, de que o crime compensa".

O projeto original é de autoria da ex-senadora Ana Amélia, então no PP-RS, o qual foi aprovado no Senado em 2013. O texto original, porém, não acabava com a saída temporária, e sim limitava o benefício, restringindo-o a uma vez ao ano e somente a presos primários, desde com verificação das condições objetivas e subjetivas.

 A senadora justificou, na ocasião, a maior rigidez da lei como consequência necessária ao aumento da criminalidade durante as saídas temporárias.

O texto do projeto lei original do Senado, 7, de 2012, que alterava os arts. 123 e 124 da lei 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de Execução Penal) para restringir o benefício da saída temporária de presos, tinha a seguinte redação:

“O Congresso Nacional decreta:

 Art. 1º Os arts. 123 e 124 da lei 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de Execução Penal), passam a vigorar com a seguinte redação:

“Art.123

 II – Cumprimento mínimo de 1/6 (um sexto) da pena;

IV – Primariedade.”

“Art. 124. A autorização será concedida apenas 1 (uma) vez ao ano, por prazo não superior a 7 (sete) dias.

 Art. 2º Revoga-se o § 3º do art. 124 da lei 7.210, de 11 de julho de 1984.

Art. 3º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Senado Federal, em 16 de outubro de 2013.

Senador Renan Calheiros

Presidente do Senado Federal”

No texto de introdução ao projeto, justifica-se que “o preso que reincide já deu provas suficientes de que não está preparado para gozar desse benefício, pois, quando posto em liberdade, tornou a cometer crime. E quanto maior for a frequência da saída, maior será a probabilidade de os presos fazerem contato com comparsas e com integrantes de organizações criminosas”.

Algumas pessoas entendem que a saída temporária deveria ser banida da nossa legislação pelo simples fato que é tempo demais concedido ao preso para ficar fora do cárcere, até porque o trabalhador comum tem direito a trinta dias de férias ao ano; não faria sentido, então, beneficiar o custodiado com maior tempo.

A matéria foi apensada ao texto aprovado pelos senadores a um projeto do ano passado que exigia a realização de exame criminológico para a concessão da saída temporária.

Existem, nas casas legislativas, mais de 40 projetos de lei buscando acabar com a saída temporária ou alterá-la; não vemos, contudo, nenhum estudo com base cientifica que justifique uma alteração de lei tão radical.

É fundamental salientar que o legislador introduziu a saída temporária na lei de execução penal como parte da ressocialização do reeducando para o indivíduo voltar de forma gradativa ao convívio social.

O reeducando, em tese, inicia o cumprimento da sua pena no regime fechado. Após cumprir um período estabelecido na Lei de Execução Penal (LEP), progride para o regime semiaberto, e adquire gradativamente certos benefícios que a lei concede como trabalhar, estudar fora da unidade prisional e, ainda, direito a outras saídas temporárias, tudo isso visando à ressocialização e ao preparo para retornar ao convívio social.

A ideia da saída temporária em datas especiais é importante, uma vez que, nessa fase o reeducando poderá manter, reatar ou retomar o vínculo com sua família, além de ter contato com o mundo exterior.

A sociedade precisa saber que, no regime semiaberto, o preso sai todos os dias para trabalhar ou estudar, sem vigilância direta ou com tornozeleira eletrônica, retornando no final do dia para dormir no presídio. Então, o argumento que a fuga do preso é em decorrência das saídas temporárias, por si só, não se sustenta, é tese isolada.

Para entendermos este assunto, bem como desmistificar os fantasmas das inverdades, é importante analisarmos o art. 122 da LEP:

“Art. 122. Os condenados que cumprem pena em regime semiaberto poderão obter autorização para saída temporária do estabelecimento, sem vigilância direta, nos seguintes casos: I - visita à família; II - frequência a curso supletivo profissionalizante, bem como de instrução do segundo grau ou superior na Comarca do Juízo da Execução; III - participação em atividades que concorram para o retorno ao convívio social. Parágrafo único. A ausência de vigilância direta não impede a utilização de equipamento de monitoração eletrônica pelo condenado, quando assim determinar o juiz da execução. (Parágrafo único acrescido pela lei 12.258, de 15/6/10).”

O legislador estabeleceu a saída do condenado da unidade prisional com prazo determinado para seu retorno, desde que preenchidas certas condições objetivas e subjetivas, só aí poderá requerer o benefício – este que pode ser revogado a qualquer momento em que configurar alguma transgressão por parte do beneficiado, ou mesmo desvio de finalidade.

Vale dizer que o sentenciado, para ter o direito de pleitear a saída temporária, deve estar no regime semiaberto, ter cumprido pelo menos 1/6 da pena, se for primário, e, caso seja reincidente, ter cumprido 1/4 da pena, além de apresentar comportamento adequado, atestado pela unidade prisional, por meio de uma certidão chamada “Atestado de Conduta Carcerária”, bem como que o benefício seja indicado com os objetivos da individualização da pena.

A Lei de Execução Penal prevê a possibilidade de até cinco saídas temporárias do sentenciado no ano, em datas previamente estabelecidas; cada saída não poderá exceder 7 dias, totalizando 35 dias que o preso pode ficar fora do estabelecimento prisional em um ano, com um intervalo de 45 dias entre uma saída e a outra, conforme art. 124.

Com o advento da lei 13.964/19, que ficou conhecida como pacote "anticrime", foi extinta a saída temporária ao condenado por crime hediondo que tenha resultado em óbito da vítima, como nos casos de homicídio qualificado, roubo seguido de morte etc. A nova lei só se aplica aos crimes ocorridos após seu sancionamento, em janeiro de 2020. O Professor Alamiro Velludo Netto explica que a Lei de Execução Penal tem natureza de direito material, o que significa que retroage só quando é mais benéfica. “Só vai ficar proibido de ter a saída temporária aquele sujeito que cometer o crime após a nova lei entrar em vigor”, diz.

As saídas temporárias são autorizadas sempre pelo juiz da vara de execuções criminais em datas festivas ou especiais, sem vigilância direta ou escolta. Na prática, o diretor do presídio envia uma lista dos apenados que, em tese, preencham os requisitos objetivos e subjetivos. Em seguida, o juiz da execução analisa tal pedido e, de forma fundamentada, profere sua decisão. A saída temporária só pode ser analisada pelo Juiz da Vara de Execuções Penais após a manifestação do Ministério Público, bem como da juntada do parecer do Diretor do Presídio.

O Estado de São Paulo, a título de exemplo, permite as saídas temporárias no Natal e Ano Novo, Dia das Mães e dos Pais, Finados e na Páscoa, sempre para visitar algum parente, sem que se tenha estabelecido o grau de parentesco a ser visitado: podem ser ascendentes, descendentes ou colaterais. O requerimento para a saída temporária do preso também poderá ser feito pelo seu advogado diretamente ao juiz da execução penal.

Como já vimos, a lei 7.210, de 1984, vislumbra a saída temporária para o preso poder estudar ou trabalhar, podendo frequentar curso supletivo ou profissionalizante, segundo grau ou superior, com a necessidade de que o estabelecimento de ensino seja na comarca da execução. Em tais casos, o preso assume o compromisso de frequentar as aulas ou trabalhar e, ao terminar, retornar imediatamente à unidade prisional, sob pena de ter o benefício revogado e responder a processo administrativo.

A lei também possibilitou a saída temporária para o preso participar de atividades que concorram para a sua reintegração ao convívio social, como participar de peças teatrais, ou exposição em feiras públicas para apresentar seus trabalhos; por exemplo, quadros ou pinturas.

O beneficiado da saída temporária assume certos compromissos, como informar ao juízo o endereço do familiar que deseja visitar, onde poderá ser localizado, durante sua saída.

Este deverá permanecer na residência do visitante no período noturno e não frequentar locais de reputação duvidosa, tais como bares, boates e estabelecimentos semelhantes, evitando assim consumir bebidas alcóolicas, entrar em discussões e participar de brigas.

O reeducando poderá ter o direito ao benefício revogado caso cometa alguma falta disciplinar considerada grave, ou se deixar de cumprir alguma das condições previamente estabelecidas, ou, ainda, se praticar algum crime doloso e não apresentar aproveitamento satisfatório nos cursos em que se inscreveu.

Há que se observar que podem ocorrer situações alheias à vontade do reeducando que impeçam o seu retorno à unidade prisional no dia e hora designados, como, por exemplo, se ele testar positivo para COVID-19 no período da saída temporária. Em tais casos, amigos ou familiares devem entrar em contato imediatamente com a unidade prisional e informar o ocorrido. O preso ficará obrigado a provar o alegado por meio de documentos, sob pena de regredir de regime.

A revogação do benefício, assim como sua concessão, segue um conjunto de normas e está condicionada à instauração de um processo administrativo, que servirá de base para o juiz fundamentar sua decisão. Caso o sentenciado seja absolvido do processo criminal, ou cancelada a sanção disciplinar, e este demonstre ser novamente merecedor do benefício, o juiz poderá restabelecê-lo.

Outra modalidade de saída temporária é a “Autorização de Saída”, ligada a situações excepcionais que podem ocorrer com os presos dos regimes fechado e semiaberto, como participar do funeral de um parente ou tratamento médico não existente no presídio, de acordo com o art 120 de LEP. Essa saída, por ser medida urgente, é autorizada pelo diretor do presídio, que determina acompanhamento de escolta.

A sociedade, infelizmente, é bombardeada com fake news pelas mídias, com inverdades sobre o sistema prisional, como a afirmação de que essas saídas propiciam fugas, bem como o aumento da delinquência, informações que não passam de sensacionalismo.

Os dados comprovam que somente um número reduzido de apenados não retornam às suas unidades prisionais. Segundo informação da Secretaria da Administração Penitenciária – SAP – de São Paulo, 4,44% dos 36,6 mil presos que deixaram as penitenciárias do estado de São Paulo, durante a chamada “saidinha temporária de fim de ano”, não retornaram ao sistema prisional paulista, em 2019, porcentagem que diminuiu na última vez em que tal benefício foi concedido: entre os dias 14 e 20 de junho de 2022, 34.566 reeducando deixaram as unidades prisionais e apenas 3,86% não retornaram.

A saída temporária, concluímos, é um benefício amparado pela lei e condicionado a regras e a critérios rígidos, cujas etapas devem ser seguidas à risca. A concessão desse direito tem sido satisfatória, pois, conforme dados supracitados, registram-se baixíssimos números de evasão. Trata-se de um voto de confiança que o estado dá ao preso, e tem por objetivo a reintegração social de forma gradativa, preparando esse indivíduo para o reencontro com a necessária luz da liberdade.

Umberto Luiz Borges D'Urso
Advogado Criminal, mestre em Direito Político e Econômico. Pós-graduado "Lato Sensu" em Direito Penal, em Processo Penal e em Direito. Presidente do Conselho Penitenciário do Estado de São Paulo por quatro gestões. Advogado do escritório D'Urso e Borges Advogados Associados.

Clarice Maria de Jesus D'Urso
Bacharel em Direito. Especialização em Direito Penal e Processo Penal. Conciliadora na área da família pela Escola Paulista da Magistratura do Estado de São Paulo. Membro da Associação Brasileira das Mulheres de Carreiras Jurídicas - ABMCJ.

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