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Reflexões sobre discovery nas arbitragens Internacionais à luz da recente decisão da Suprema Corte Norte-Americana

O futuro há de dizer se o referido julgado trouxe restrição a participantes de processo arbitral, cuja sede situa-se, por exemplo, no Brasil, ou se apenas igualou o uso das ferramentas probatórias para todos os envolvidos, deixando o princípio do international comity para processos judiciais.

22/8/2022

O discovery é um mecanismo de obtenção de provas frequentemente utilizado na prática de resolução de disputas do common law norte-americano.1 Como o próprio vocábulo está a sugerir, descobre-se, durante a fase instrutória, todas as provas para uso das partes e conhecimento pelo julgador. Para evitar abusos ou mesmo dispêndio de tempo, energia e custos, as provas sujeitas ao discovery devem ser relevantes e determinantes para o julgamento do caso.

Entre os meios de obtenção de provas em que se insere o discovery destacam-se as depositions,  os interrogatories e os requests for production of documents.2 As depositions não se confundem com o conceito amplo e genérico que muitos adotam partindo de um viés de civil law. Embora sejam depoimentos testemunhais, constituindo instrumento importante na fase instrutória, as depositions são colhidas, sob juramento, normalmente fora da presença do julgador – em escritórios de advocacia, por exemplo – para uso no processo, em especial na audiência (trial). Os interrogatories, de igual sorte, têm um significado específico. São perguntas elaboradas e enviadas por escrito para a testemunha responder também por escrito. Já os requests for production of documents são de compreensão mais direta aos não common law lawyers, embora questões relacionadas à relevância, materialidade e confidencialidade permeiem a produção da prova, sem contar o desconforto no dever de entregar documentos que possam fazer (ou fazem) prova contra quem os entrega. Esses e outros instrumentos de provas são requeridos antes do julgamento dos conflitos, em certas circunstâncias antes mesmo do ajuizamento de uma ação – pre-action discovery –, para colocar algumas cartas na mesa e, ao final, municiar o julgador com elementos que visam a corroborar as alegações das partes. Há exceções à extensão do discovery, a exemplo do client-attorney privilege.

Na concepção geral do common law norte-americano, o discovery presta-se a promover justiça ao caso concreto, em que a principal missão do julgador é preservar igual oportunidade às partes de apresentarem o seu caso, diferenciando da visão tradicional e mais inquisitória do “dá-me os fatos que dar-te-ei o direito” do civil law. Bem por isso se diz que no discovery estão enfatizadas as ideias de due processs e right to be heard. O discovery tem, portanto, a finalidade de facilitar a busca de todas as peças relevantes e materiais para o deslinde do caso, a fim de que as partes possam delas se utilizar, da forma que melhor lhes convém, sem surpresas indevidas, em ambiente mais adversarial e menos inquisitorial.

Porém, o discovery está longe de ser uma unanimidade. O U.S.-style discovery é visto por muitos como um procedimento invasivo e custoso, em que estratégias intimidatórias são comumente utilizadas. A impressão desfavorável a esse modelo probatório torna-se mais evidente quando uma disputa envolve algum componente internacional, a exemplo de partes, advogados e testemunhas, provenientes de culturas e sistemas jurídicos distintos em função do clash não apenas técnico-procedimental, mas também de diferença prático-comportamental.

De qualquer sorte, no instituto do discovery identifica-se, ao menos, quatro desafios distintos a que estão afetas as partes: legal (apresentar prova contra si), cultural (enfrentar maior invasividade), temporal (submeter-se a maior tempo na conclusão da instrução) e financeiro (dispender mais recursos no caso). Tais desafios também atingem o julgador, sobretudo em casos internacionais, pois o advogado é fruto do sistema legal ao qual pertence e das práticas processuais debaixo das quais está habituado a atuar. E o julgador, em conflitos internacionais, precisa entender estas distinções para bem conduzir o processo separando possível comportamento indevido, fruto de desconhecimento ou inexperiência internacional, de iniciativa intimidatória em momento de cross-examination ou até mesmo táticas de guerrilha ao longo do processo. No universo arbitral, cada vez mais se escuta a afirmação de que não existe árbitro com cacoete common law ou civil law; a tônica direciona-se mais a árbitro experiente ou inexperiente.

Mauricio Gomm F. dos Santos
FCIArb, CEDR mediador, advogado admitido na OAB/PR e Nova Iorque e como Consultor em Direito Estrangeiro perante a Ordem dos Advogados da Flórida. É sócio fundador do escritório GST LLP.

Gustavo Favero Vaughn
Mestre em Direito pela Columbia Law School e pela Faculdade de Direito da USP. Membro do Chartered Institute of Arbitrators (MCIArb). International Lawyer em Cleary Gottlieb Steen & Hamilton LLP.

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