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ESG, compliance e combate ao racismo

Compliance deve se ocupar do combate ao racismo com a mesma energia com que se ocupa do combate à corrupção.

10/8/2022

O desenvolvimento de estratégias para a promoção dos standards ESG nas empresas exige que os programas de compliance priorizem o monitoramento dos riscos que comprometem o “S” da questão. O acrônimo ESG (Environment, Social and Governance), ou ASG – Ambiental, Social e Governança em português, ficou conhecido no ano de 2004, quando um evento do Banco Mundial incentivou a criação do Pacto Global como forma de incentivar as organizações a dispensarem maior cuidado em relação aos impactos ambientais e sociais das suas atividades e às medidas de governança aplicáveis à sua gestão, a fim de conferir maior transparência e uma distribuição mais equânime dos benefícios gerados pela atividade econômica entre as empresas e a comunidade.

Mas não nos enganemos: ASG é uma manifestação do auto interesse dos mercados de investimento, e não por outra razão são os grandes fundos de investidores que impulsionam essa agenda, já que suas carteiras são diversificadas e isso exige que o mercado apresente bom desempenho como um todo. Questões com grande impacto ambiental ou social tendem a abalar a estabilidade do mercado como um todo, e a baixa nas bolsas se projeta diretamente sobre as empresas que nelas negociam seus papéis. Daí o incentivo a estratégias para evitar os eventos que possam impactar negativamente o ambiente de negócios.

Ponto interessante é saber como integrar a questão social nas estratégias para prevenção de riscos nessa área, e os programas de compliance passaram a contribuir para isso. Como ponto de partida, vale dar uma olhada no decreto 9.571/18, o qual estabelece as diretrizes nacionais sobre empresas e direitos humanos. Ainda que uma parte substancial do decreto faça referência ao respeito às normas trabalhistas, a promoção do “S” não se confunde com a simples adesão à CLT, pois o mero cumprimento da legislação do trabalho não é diferencial algum que torne uma empresa mais atraente aos investidores. Assume relevo, contudo, os pontos específicos do decreto que incumbem as organizações dos deveres de combater a discriminação nas relações sociais e de promover a diversidade e inclusão – D&I (art. 8º), e dos deveres de identificar os riscos de impacto e de violações a direitos humanos no contexto de suas operações e adotar mecanismos de precaução, controle e reparação a violações eventualmente ocorridas (art. 9º). É neste contexto de violações que se insere o racismo e como os recursos do Compliance servem para evitá-lo.

As pautas D&I estão associadas à promoção da diversidade, principalmente de gênero e raça, além da inclusão de pessoas portadoras de deficiência. Nas empresas já organizadas para essa abordagem, é comum encontrarmos a figura do CDO – Chief Diversity Officer, que é a pessoa responsável pelo desenho de políticas e estratégias para a promoção da inclusão de grupos minoritários e vulneráveis na organização. Exemplificativamente, a definição de estratégias envolve medidas como:

1. Inclusão e desenvolvimento de lideranças que pertencem a grupos minoritários;

2. Definição de metas de diversidade, após pesquisa para a realização de censo corporativo. O censo é uma excelente ferramenta para a reflexão sobre os pontos que exigem melhoria, pois permite uma avaliação da distribuição de pessoal, tanto no aspecto horizontal, a partir de recortes como gênero, raça, orientação sexual e necessidades especiais, como no aspecto vertical, ou seja, cruzando o percentual desses recortes com a ocupação dos cargos de chefia e entre os membros dos conselhos diretivos existentes na empresa;

3. Os grandes “players” do mercado – que são grandes consumidores de insumos e serviços, podem ainda definir métricas de capital humanos aplicáveis aos seus fornecedores e, por meio dessa exigência, poderão apresentar algum desempenho em termos de responsabilidade social; esse tipo de estratégia é um grande incentivo à cultura de valorização da diversidade no mercado;

4. Criar programas de responsabilidade social ou aderir a programas existentes em outras instituições governamentais ou não-governamentais que estejam em sintonia com os valores da empresa e com mercado em que atua; as empresas também podem impulsionar causas filantrópicas ou sociais que sejam relevantes para a sociedade, não só mediante o financiamento de projetos associados, mas adotando um posicionamento público sobre essas questões e utilizando seus canais públicos de comunicação em apoio a tais causas;

5. Estimular a criatividade da Gestão de Pessoas: criar sistemas com horários de trabalho flexíveis para mães com filhos pequenos ou que necessitem de cuidados especiais; promover o auxílio em necessidades pontuais de aperfeiçoamento (por ex., com línguas estrangeiras ou inclusão digital) de colaboradores que representem grupos minoritários; nas situações de trabalho remoto, oferecer apoio financeiro e psicológico para funcionários que não tenham uma estrutura adequada para o home-office etc.;

6. Implementar a cultura de diversidade de forma sistêmica, realizando campanhas de comunicação interna sobre as vantagens da promoção da diversidade para a empresa e para a sociedade. A promoção de um ambiente verdadeiramente inclusivo exige muito treinamento e informação sobre os vieses inconscientes e preconceitos estruturais que as políticas de D&I visam combater.

Seria muito bom se pudéssemos amparar essas medidas apenas com base na igualdade e na justiça social, pois elas simplesmente miram no que é o certo. Mas o fato é que uma parte considerável das empresas só entende termos como risco, faturamento, lucro e prejuízo; então, pode ser interessante apresentar a conta do racismo para os boards executivos onde as decisões estratégicas da empresa são tomadas.

Por força do Compliance e sua atuação primária na área de combate à corrupção, a equação riscos x multas x prejuízos x responsabilidade objetiva já é bem conhecida – basta lembrar os valores das multas aplicadas em decorrência da operação Lava-Jato. A conta da discriminação racial começa a tomar corpo na grande mídia, demonstrando que esse risco deve ser atacado com a mesma determinação dedicada a outros eventos que podem causar danos à reputação e prejuízos financeiros à organização. 

Na Justiça do Trabalho, já são muitos casos de condenações pela prática direta ou pela tolerância quanto a atos de discriminação praticados na empresa. A 2ª turma do TRT-4 condenou uma empresa a indenizar em 20 mil reais um colaborador negro que foi submetido a humilhações de conotação racista infligidas por um agente fornecedor (um terceiro, portanto). O tribunal considerou que a empresa estava ciente dessas humilhações, e optou por deixar de reprimir ou evitar a continuidade da conduta do terceiro. Ou seja, quando estiver em posição de agir, a empresa deve proteger sua força de trabalho contra esse tipo de manifestação, ou responderá por omissão.

Já o Tribunal Superior do Trabalho condenou uma rede de laboratórios por distribuir um catálogo com estética padrão, que não contemplava negros, somente pessoas brancas. Neste caso, uma ex-funcionária obteve indenização de 10 mil reais por danos morais porque não podia usar seu cabelo estilo “black power” durante a jornada de trabalho; ela sofria admoestações da gestora da empresa, amparadas no “guia de padronização visual da empresa” – um manual que só apresentava imagens de pessoas brancas.

Os órgãos de fiscalização também estão agindo. O Ministério Público ajuizou Ação Civil Pública com pedido de indenização no valor de R$ 10 milhões ajuizada contra uma financeira que divulgou campanha publicitária com uma fotografia apresentando sua equipe de trabalho, composta basicamente de homens brancos.

Por último, mas não menos importante, um caso já emblemático: uma rede de hipermercados teve que firmar termo de ajustamento de conduta no valor de 115 milhões após a morte violenta de homem negro, causada por um segurança no estacionamento de uma das lojas da rede. Esse valor será desembolsado em ações de combate ao racismo ao longo de 3 anos e evitará que a empresa seja demandada judicialmente – e não inclui a indenização a ser paga à família da vítima. O fato gerou manifestações sociais e boicotes e a companhia experimentou uma perda estimada em 2,16 bilhões no seu valor de mercado após o episódio – uma cifra suficiente para arregalar os olhos de qualquer acionista e preocupar os fundos de investimentos.

Todos esses casos foram mapeados por meio dos grandes veículos de mídia e são meramente exemplificativos de manifestações diárias e sucessivas de preconceito racial que ocorrem no âmbito das empresas. São casos com grande impacto social e com repercussão, inclusive, na esfera criminal relativamente ao agressor envolvido. Tem todas as credenciais para serem considerados eventos tão danosos à imagem da empresa quanto os casos de corrupção. Se pensarmos bem, podem ser até piores, em face da enorme “carga viral que possuem, esses incidentes viram pauta de discussão, viraliza nas redes sociais e sites de notícias, gerando boicotes, manifestações públicas e grande abalo na reputação da empresa. Conquanto estejam geralmente restritos ao departamento pessoal das empresas, esses incidentes devem entrar no radar da área de Compliance para ocupar um lugar destacado no mapa de riscos e para que sejam mitigados com os recursos tradicionais da área: política, denúncia, investigação, remediação, sanção, mais treinamento, “repeat”. São riscos com enorme potencial de descrédito e abalo à reputação das empresas, sujeitos à múltiplas sanções que vão desde as ações levadas ao Judiciário até as manchetes que circulam pelo noticiário.

Ana Paula Ávila
Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUC/RS (1994) - 1ª colocada; bolsista pela Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul (1995); Mestrado em Direito Público pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS (2001); doutorado em Direito Público pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS (2007).

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