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Produção de provas - Investigação defensiva e apuração de falsas memórias

O presente trabalho buscou interligar os assuntos para demonstrar a possível contribuição da investigação defensiva em casos de falso reconhecimento.

8/8/2022

O presente artigo abordará a relevância da produção de provas no direito processual, ressaltando a necessidade da utilização da investigação defensiva e da apuração de falsas memórias, de sorte a influenciar positivamente na realização da justiça.

O tema deve ser amplamente difundido entre os advogados(as) para a prática da advocacia. Não é só na defesa criminal, mas em todos os processos e questões a cargo de um advogado, como processos penais, processos administrativos punitivos e ações civis públicas, cujas normas guardam semelhança com o ilícito penal, comportando tipificação e sanção.

Após conceituação de provas será apresentado no artigo a definição da investigação defensiva, suas fundamentações legais e algumas técnicas para sua aplicação prática, como provas periciais, atas notariais e inquirição de testemunhas. Posteriormente, será discutido a respeito das falsas memórias, seus impactos nos erros de reconhecimento dos culpados e as sugestões da psicologia da testemunha para evitá-las nos processos.

Por fim, irá ser debatido o possível uso da investigação defensiva para frear as influências das falsas memórias, com isso almeja-se demonstrar que a defesa pode já na fase de inquérito impedir que inocentes passem por circunstâncias humilhantes ao serem erroneamente reconhecidos como réus ou suspeitos de crimes que não cometeram.

1 Provas: Conceito

A prova judiciária tem o objetivo de reconstruir os fatos investigados no processo, visando a maior aproximação possível com a realidade histórica, ou seja, com a verdade real dos fatos. Dessa maneira, conforme leciona Aury Lopes Jr. (2019), as provas são essenciais para que o juiz exerça sua atividade recognoscitiva em relação ao fato histórico (storyofthe case) narrado na acusação.

Isso decorre do paradoxo temporal ínsito ao ritual judiciário: um juiz julgando no presente (hoje) um homem e seu fato ocorrido num passado distante (anteontem), com base na prova colhida num passado próximo (ontem) e projetando efeitos (pena) para o futuro (amanhã). Assim como o fato jamais será real, pois histórico, o homem que praticou o fato não é o mesmo que está em julgamento e, com certeza, não será o mesmo que cumprirá essa pena, e seu presente, no futuro, será um constante reviver o passado (Jr Lopes, 2019, p. 413).

Segundo Guilherme Nucci (2017) o objetivo da parte no processo é convencer o juiz de que a sua concepção da realidade é a verdadeira, isto é, que existe uma coerência lógica entre os acontecimentos no plano real e o descrito em sua petição. Ao ser convencido o magistrado produz uma certeza jurídica, proferindo uma decisão que pode ou não corresponder à verdade. 

Trata-se da função persuasiva da prova: busca-se a captura psíquica do juiz, convencendo-o que a versão apresentada consiste na mais aceitável, e não que ela corresponde à famigerada verdade real. O juízo prolatado ao final da persecução criminal não é um juízo de verdade, mas de plausibilidade da hipótese. (...) Logo, “provar” significa induzir o magistrado ao convencimento de que o fato em análise ocorreu de determinado modo, reconstruindo-o no presente através do ordenamento das representações sobre o passado. (IRIGONHÊ, 2020, p.12)

No entanto, é indispensável a imposição de limites à atividade probatória, esses estão previamente estabelecidos na Constituição Federal de 1988. Assim, são inadmissíveis as provas obtidas ilegalmente, além disso, princípios como da jurisdição, estado de inocência, contraditório e ampla defesa devem ser respeitados sempre e a todo custo.

Cabe destacar que tratando sobre as provas no processo penal a verdade é denominada material, real ou substancial, no processo civil, por sua vez, a verdade é formal ou instrumental (NUCCI, 2017). Ambos almejam a verdade dos fatos, contudo, o direito processual penal permite ao magistrado mais flexibilidade em relação aos seus poderes instrutórios, podendo solicitar de ofício a produção de provas. Já no direito processual civil a comprovação dos fatos alegados é de responsabilidade majoritariamente das partes, salvo algumas exceções (MARGRAF, 2018).

Todavia, parte da doutrina argumenta que essa divisão entre verdade real e material está ultrapassada, pois tanto no direito penal quanto no direito civil só será possível alcançar processualmente uma única verdade, conforme defende Daniel Neves (2019, p. 710): “Diferente tratamentos da intensidade de tal busca [pela verdade], que poderia ser diferente no campo civil e penal – com o que desde já discordo -, nada têm a ver com o instituto da verdade; daí a caducidade de termos como verdade formal e verdade material.

2. Investigação defensiva e amplitude das provas

Como discutido anteriormente, as provas são o instrumento das partes para convencer o magistrado de determinada perspectiva sobre os fatos, mais do que isso, permitem que tenham um controle e previsibilidade de suas ações no processo, além disso, a sua produção é direito inerente às partes do processo, estando amparado pelos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório. Por essa razão, O Estatuto da OAB e a Lei Complementar 80/94 asseguram ao indiciado a defesa técnica para arrecadar informações e elementos desde o inquérito policial até após o trânsito em julgado, de modo que, a produção de provas para o convencimento seja mais ampla e completa (SILVA, 2020).

Nesse contexto, segundo o Provimento 188/18 da OAB, a investigação defensiva, compreende-se como um complexo de atividades de natureza investigatória desenvolvido pelo defensor, com ou sem assistência de consultor técnico ou outros profissionais legalmente habilitados, e em qualquer fase da persecução penal, procedimento ou grau de jurisdição, inclusive na ante judicial. Visa à obtenção de elementos de prova destinados à constituição de acervo probatório lícito, para a tutela de direitos de seu constituinte, garantindo a ampla defesa do imputado em oposição à investigação ou acusação oficial. 

Dentre seus vários escopos, a investigação defensiva se presta a permitir a coleta de elementos que forneçam a construção de teses defensivas baseadas em certos fatos; favorecer a aceitação dessas teses defensivas; permitir a formação de um percurso defensivo no processo quando o agente tenha parcela de responsabilidade pelo fato praticado; desanuviar a percepção da defesa quanto à oportunidade e conveniência na aceitação de institutos despenalizadores; antecipar a visualização de futuras colidências de defesa entre acusados; refutar a validade de provas produzidas pela acusação; ou até mesmo na própria elucidação da conduta criminosa, nesse caso, situação mais comum quando a vítima quiser participar da apuração por meio de investigação própria (SILVA, 2019).

A investigação defensiva encontra respaldo jurídico no art. 5º, LV, da Constituição Federal de 1988, assim, a sua garantia como direito inerente às partes reitera a preservação aos princípios do contraditório, ampla defesa e igualdade, consolidando o devido processo legal, com a garantia da paridade de armas.

A partir disso, o caráter inquisitivo do inquérito revela um desequilibro processual. Afinal, polícia e Ministério Público podem investigar de maneira direta, e não necessariamente serão parciais na condução de suas atividades, ao passo que o imputado é impedido de exercer o direito da investigação defensiva, causando uma disparidade de armas entre acusação e defesa, o que ataca aos princípios supramencionados. Nesse sentido leciona Lopes Jr, Rosa, Bulhões (2019):

É inegável a disparidade de armas entre acusação e defesa, não só pela estrutura e cultura inquisitória do processo penal brasileiro, mas também porque, além da polícia, pode o MP investigar diretamente (STF). Sem esquecer que na matriz inquisitória brasileira até o juiz pode determinar a prática de produção antecipada de provas no inquérito (artigo 156, I do CPP)! Então, não existe disparidade de armas? Não há necessidade de fortalecimento da defesa nesta fase? (...)

O que provavelmente não se compreendeu foi o papel que a investigação defensiva pode vir a desempenhar, como mais uma ferramenta de garantia dos direitos do cidadão e do próprio advogado. Não se quer com isso retirar a competência natural da polícia judiciária para proceder as devidas investigações em geral; mas, no particular, não se pode negar o direito daquele que quer se defender provando, ou até mesmo daquele que busca responsabilizar o seu algoz, sob a ilusão de que “o Estado proverá”.

Ademais, Franklyn Silva (2019) argumenta que a investigação desenvolvida pela defesa possui diversas vantagens, com a maior intervenção da defesa nos estágios iniciais há uma imediatidade entre a prática de atos investigativos e a presença da diligência. Assim, uma análise prévia dos elementos de acusação possibilita uma avaliação mais coerente do seu comportamento na relação processual, e, consequentemente, o curso mais veloz da persecução penal.

Em harmonia aos raciocínios aqui elencados o Tribunal Regional Federal (TRF) da 3ª região publicou acórdão validando a busca de provas por meio da investigação defensiva. 

PENAL. PROCESSUAL PENAL. APELAÇÃO. INVESTIGAÇÃO DEFENSIVA. PRETENSÃO DE NATUREZA PENAL. RELAÇÃO DE ACESSORIEDADE. JUSTIÇA FEDERAL. COMPETÊNCIA. 1. A investigação defensiva encontra amparo na Constituição Federal, devido não só a ausência de norma proibitiva, mas em razão de uma interpretação extensiva dos princípios da igualdade, ampla defesa e contraditório, de forma a assegurar ao acusado um legítimo e devido processo legal. 2. Os advogados não dispõem dos mesmos poderes de requisição que possuem a autoridade policial e o próprio órgão do Ministério Público, devendo o condutor da investigação defensiva acionar o poder judiciário caso encontre óbice devido a relutância do particular em colaborar com sua atividade ou pela impossibilidade jurídica de obter determinada informação. 3. O juízo competente deverá ser aquele responsável pela apreciação da ação penal em curso ou da futura ação penal, haja vista a simetria com a competência para as medidas requeridas pela polícia judiciária ou pelo Ministério Público na investigação contraposta. 4. Ainda que deduzida em procedimento cível, a pretensão que comporta elementos a serem analisados em futura demanda penal ou naquela onde tramita/tramitou processo criminal deve ser processada perante a jurisdição penal. 5. Apelação provida.(5001789-10.2020.4.03.6181 – APELAÇÃO CRIMINAL. Relator: Des. Fed. Mauricio Kato – Julgamento: 27/04/2021 – QUINTA TURMA TRF 3ª REGIÃO)

De acordo com o relator Maurício Kato, o Ministério Público tornou-se uma espécie de “superparte”, ou seja, “um ator com função significativamente diferente e mais ampla daquela que tradicionalmente exercia no processo penal brasileiro”, principalmente após o Supremo declarar constitucional o seu poder investigativo (Recurso Extraordinário 593.727/MG). Em razão disso, o desembargador diz em seu voto que a investigação defensiva é capaz de garantir paridade de armas no processo. Nesse sentido, sua decisão é relevante, pois traz a segurança jurídica necessária para a maior difusão da técnica no sistema jurídico brasileiro.

2.1 Técnicas existentes

As técnicas especiais para a prática da investigação defensiva estão sugeridas no art. 4º do Provimento 188/2018 da OAB, trata-se de meios para promover diretamente as diligências investigatórias necessárias ao esclarecimento do fato. Assim, podem envolver a colheita de depoimentos, pesquisa e obtenção de dados e informações disponíveis em órgãos públicos e privados, elaboração de laudos e exames periciais e a realização de reconstituições. A seguir abordaremos algumas dessas possíveis técnicas a serem utilizadas pelos advogados.

2.1.1 Perícias

A perícia é responsável por fornecer às partes e ao juiz conhecimentos “sobre questões que estão fora da órbita do saber ordinário” (LOPES Jr., p. 508, 2019), caracterizando-se como meio de prova do processo. Sua produção demanda saber técnico específico, nesse sentido, o Código de Processo Penal define que o laudo pericial deve ser realizado por um perito oficial, portador de diploma universitário, ou duas pessoas idôneas, também portadoras de diploma de curso superior, preferencialmente que tiverem habilitação técnica relacionada à natureza do exame (art. 159). Analogamente o Código de Processo Civil determina que o especialista nomeado deva ter formação acadêmica específica na área objeto de seu depoimento (art. 464, §4º) ou para a realização da perícia técnica.

Vale lembrar que a perícia, bem como as demais provas, é relativa, assim, não possui valor decisivo ou possui maior prestígio do que outras. Por conseguinte, é cabível ao juiz aceitar ou não o laudo pericial, tanto no processo penal (art. 182) quanto no processo civil (art. 479). Isso significa que a perícia não vincula o julgador, esse permanece livre para considerar todo o contexto probatório antes de produzir a sua certeza jurídica.

Além disso, a prova pericial deve refletir os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa, de modo a incluir a participação dos interessados. Desse modo, deve haver a possibilidade de oferecer quesitos a serem respondidos pelo perito, de pedir esclarecimento quanto aos laudos apresentados, e de indicar assistente técnico. Nesse sentido, a doutrina vem defendendo que o envolvimento das partes deveria iniciar já na fase do inquérito policial (NUCCI, 2017), fomentando a iniciativa da investigação defensiva. 

Mas a prova pericial deveria, sempre que possível, contar com a contribuição e a fiscalização da defesa, desde o início, para a garantia não só do contraditório, mas sobretudo da amplitude da defesa.

No ponto, a lei 11.690/08, embora portadora de grandes inovações, sobretudo no que respeita à possibilidade de participação do assistente técnico indicado pelas partes, não resolveu o problema essencial. E isso porque a atuação da defesa sobre o objeto periciado somente será possível após a elaboração do laudo oficial e quando já em curso a ação penal, isto é, depois da fase de investigação. Consulte-se, a respeito, o disposto no art. 159, §§ 4º e5º, CPP.

Em tais situações, uma vez produzida a prova pericial, o contraditório somente será realizado já perante a jurisdição, e limitado ao exame acerca da idoneidade do(s) profissional(is) responsável(is) pela perícia e das conclusões por ele(s) alcançada(s), quando já perecido o material periciado. (PACELLI, p. 52, 2019)

Gabriel Bulhões (2019, p. 127) aponta que a utilização do perito na investigação defensiva pode ser dividida em três formas: atuação enquanto assistente técnico após a conclusão das perícias oficiais; atuação em contra perícia, em paralelo à perícia oficial; atuação em perícia autônoma, independentemente de qualquer perícia oficial. Em todas as formas o perito deve realizar registro, documentação dos métodos usados e apresentar relatório pormenorizado ao final.

2.1.2 Atas notariais

A ata notarial pode ser definida como documento revestido de fé pública, lavrado por tabelião que confirma o fato ou seu modo de existência, descrevendo-o a fim de preservar a memória de sua ocorrência e ser utilizado como meio de prova no processo. A ata notarial, por si, constitui prova dos fatos nela inseridos, já que, estão atestados por documento público, logo, são presumidos como verdadeiros, de acordo com o princípio da notoriedade. Embora aceite prova em contrário, iuris tantum, a alegação de falsidade contra ata notarial feita com imprudência pode ocasionar pena por litigância de má-fé (NERY, 2019).

Não é de hoje que se usam destes meios para a produção de provas, mas o regulamento surgiu com o Código de Processo Civil de 2015, assim, são vastas as hipóteses de aplicação da ata notarial, exemplos de seu uso são citados por Bruno Fuga (p. 64, 2019):

A ata poderá ser produzida para uma confissão extrajudicial, para depoimento pessoal da parte, para prova documental, para prova testemunhal (declaração), confissão, para certificar certo fato publicado na internet, que o credor recusou o pagamento, em assembleias de sociedades empresariais e associações civis, se o autor precisar de uma tutela de urgência, mas não tiver documentos comprobatórios suficientes, ou outras provas afins

Assim, ainda que citada apenas no Código de Processo Civil (art. 384), nada impede a sua utilização nos processos penais. Conforme já vem sendo feito e demonstra a seguinte jurisprudência.

APELAÇÃO CRIME. INJÚRIA RACIAL (ART. 140, §3º, DO CÓDIGO PENAL). SENTENÇA CONDENATÓRIA. AUTORIA E MATERIALIDADE COMPROVADAS INFORMAÇÕES DA VÍTIMA, ALIADA À PROVA DOCUMENTAL (ATA NOTARIAL).CONDUTA PRATICADA COM O INTUITO DE HUMILHAR A OFENDIDA E SUA FILHA, EM RAZÃO DA COR DA PELE E DA CARACTERÍSTICA FÍSICA. MANUTENÇÃO DA CONDENAÇÃO. RECURSO DESPROVIDO. Apelação Crime nº 0003442-89.2016.8.16.0034 Mantém-se a condenação pelo crime de injúria racial, previsto no art. 140,§ 3º, do Código Penal, quando se evidencia a intenção da agente de praticar a conduta para humilhar a vítima, em razão da cor de sua pele e de sua característica física. I. (TJPR – 2ª C.Criminal – 0003442-89.2016.8.16.0034 – Curitiba -  Rel.: Desembargador José Maurício Pinto de Almeida -  J. 28.02.2019)

Dessa maneira, observa-se que a ata notarial se revela como importante instrumento a ser utilizado pela advocacia investigativa, “no sentido de conferir uma forma legal de transmudação de fatos e atos jurídicos em provas pré-constituídas e em aportes documentais com fé pública” (BULHÕES, 2019, p. 117).

2.1.3 Inquirição de Testemunhas

A inquirição de testemunhas é uma das principais ferramentas a ser utilizada na investigação defensiva, Evinis Talon (2020, p. 127) argumenta que a colheita de depoimentos possibilita a antecipação do testemunho “que, se fosse favorável, poderá ser levado aos autos oficiais, por declaração escrita ou audiovisual, bem como repetida, arrolando a testemunha para que seja ouvida no processo”.

Para a defesa, obter depoimentos tem vantagens como, por exemplo, o advogado terá maior domínio da situação, já que, não estará presente a outra parte (MP ou querelante), que poderia com suas inquirições confundir a testemunha, enfraquecendo a versão apresentada e até induzir falsas memórias. Além disso, o defensor terá discricionariedade para juntar ou não o depoimento aos autos oficiais, afinal o indiciado ou acusado não é obrigado a produzir prova contra si mesmo, mas pode e deve produzi-las em seu favor, acomodando a defesa à realidade dos fatos.

A fim de proporcionar maior credibilidade à inquirição realizada por advogados Gabriel Bulhões (2019, p. 121) enumera algumas etapas a serem seguidas: “i) colheita de informações preliminares; ii) realização de colóquio informal; iii) formalização da intimação registrada; e, por fim iv) o registro de declarações”. Ademais, o autor destaca que a oitiva das testemunhas deve certificar o depoente sobre:

i) a possibilidade de presença de advogado(a); ii) a possibilidade de se negar a responder no todo ou em parte; iii) o direito de não se autoincriminar; iv) o dever da verdade (mencionar possível uso judicial futuro [falso testemunho – Código Penal, Artigo 343, §1ª]). É importante, ainda, qualificar a testemunha com registro (em mídia ou termo), de i) nome completo; ii) profissão; iii) endereço; iv) naturalidade; e v) data de nascimento; fazendo constar ainda a expressa confirmação do comparecimento voluntário. (BULHÕES, 2019, p. 122)

3 Memórias falsas

Segundo os filósofos brasileiros Theobaldo Santos (1961) e Marilena Chaui (1997), a memória é a capacidade de fixar, conservar e reproduzir, sob a forma de lembrança, as impressões anteriormente experimentadas, pode corresponder à atualização do passado ou ao registro do presente.

As falsas memórias são lembranças que acreditamos ser reais quando na verdade nunca sucederam, relatos são feitos bem intencionadamente, porém sem conexão com a realidade fática. As falsas memórias podem ser geradas espontaneamente, através de falhas na interpretação de uma informação, conforme o exemplo:

A incômoda revelação das falsas memórias está cimentada. Oliver Sacks (2015, p.108), renomado neurologista, afirmava que quando uma história ou uma memória falsa é construída, acompanhada por imagens sensoriais vívidas e emoção forte, o ser humano pode não ser apto para distinguir o verdadeiro do falso, pode não haver um recurso interno, psicológico e nem algum modo neurológico externo que consiga fazer essa distinção. Enfim, construir histórias como recurso para complementação de lacunas na lembrança é um processo natural da memória humana, sem necessariamente ter base em uma realidade vivenciada. (GUARAGNI; TANAKA, 2020)

Ou ainda, podem ser induzidas por uma falsa sugestão externa, ou seja, um terceiro sugere uma informação falsa, a qual não faz parte de qualquer experiência passada, contudo, apresenta compatibilidade e plausibilidade com determinada lembrança, o que então desencadeia um processo inconsciente de aceitação e incorporação dessa memória (IRIGONHÊ, 2020).                            

Além disso, elementos que desviem o foco durante o evento podem confundir a memória sobre o que realmente ocorreu, a presença de mais de um criminoso, por exemplo, pode dividir a atenção da vítima ou testemunha, o estresse decorrente da situação também, principalmente se o infrator porta algum tipo de arma. Igualmente, a distância entre o criminoso e a testemunha influencia na percepção do fato, e até mesmo a identidade étnica pode ser elemento para confundir a memória (CECCONELLO; STEIN, 2020, p.173).

Esse fenômeno pode influenciar no direito processual quando na tentativa de reconstruir um fato pretérito são produzidas provas baseadas em falsas memórias.  O que é comum entre as testemunhas do processo, principalmente quando há um extenso lapso temporal entre o acontecimento e a oitiva, ou ainda, quando estão presentes os elementos supracitados.

Nos Estados Unidos uma pesquisa desenvolvida pela organização Innocence Project indicou que mais de 75% das prisões indevidas descobertas após exame de DNA foram decorrentes de erros de identificação das testemunhas oculares, que certamente passaram pelo fenômeno psíquico de criação de falsas memórias (ÁVILA, 2014). Nesse sentido, Aury Lopes Jr. (2019) destaca que é necessário considerar as expectativas da testemunha, pois tendem a ver e ouvir aquilo que querem, assim, estereótipos culturais (cor, classe social, sexo etc.) influenciam na percepção dos delitos, reforçando estigmas sociais.

A fim de evitar os prejuízos das memórias falsas para o conjunto probatório, destacam-se algumas medidas para melhorar a qualidade da prova oral, como a realização da oitiva de testemunhas em prazo razoável, reduzindo a influência dos lapsos temporais; adoção de técnicas de interrogatório e uso da entrevista cognitiva, possibilitando a obtenção de informações quantitativa e qualitativamente superiores às das entrevistas tradicionais; gravação das entrevistas realizadas na fase pré-processual, com destaque às executadas por profissionais como assistentes sociais e psicólogos, a fim de permitir ao juiz completo acesso ao registro eletrônico da entrevista.  (LOPES JR; DI GESU, 2007).

A seguir, observam-se alguns julgados em que o réu foi absolvido em decorrência da apuração de falsas memórias da testemunha, em reconhecimento ao princípio in dubio pro reo.

EMENTA: APELAÇÃO CRIMINAL – ROUBO – RECONHECIMENTO EXTRAJUDICIAL DA VÍTIMA ISOLADO NOS AUTOS – INDÍCIOS DE FALSA MEMÓRIA – PROVA INSEGURA – ABSOLVIÇÃO NECESSÁRIA. É necessária prova escorreita e segura da existência e da autoria do fato delituoso para que a presunção de inocência que milita em favor do acusado seja elidida. Isso porque uma condenação baseada apenas em conjecturas e ilações feriria de morte o princípio da não-culpabilidade, ínsito à dignidade da pessoa, matriz de nossa Constituição. Em se tratando de crimes contra o patrimônio, as palavras da vítima têm especial relevância. Entretanto, quando há fortes indícios de que elementos externos inflaram a imaginação dos ofendidos, é impossível prolatar sentença condenatória fundada exclusivamente nas suas declarações, diante da manifesta insegurança probatória.  (TJMG -  Apelação Criminal  1.0024.04.349004-4/001, Relator(a): Des.(a) Cássio Salomé , 7ª CÂMARA CRIMINAL, julgamento em 16/05/2013, publicação da súmula em 24/05/2013)

APELAÇÃO CRIME. FALSO TESTEMUNHO. ARTIGO 342, DO CAPUT, CÓDIGO PENAL. CONDENAÇÃO. RECURSO. PRETENSÃO ABSOLUTÓRIA. VIABILIDADE. TESTEMUNHA QUE, CONFIANDO EM SUA MEMÓRIA, DEPOIS DE DECORRIDO MAIS DE 4 ANOS, ACREDITA ESTAR RECONHECENDO UMA FOTO (3X4), COMO SENDO DE DETERMINADA PESSOA, QUANDO NÃO É. IMPOSSIBILIDADE DE SE AFERIR SE A TESTEMUNHA FEZ AFIRMAÇÃO FALSA OU NEGOU A VERDADE, EM PROCESSO JUDICIAL AO TER EFETUADO O RECONHECIMENTO FOTOGRÁFICO. DELITO QUE SÓ SE CONFIGURA A PARTIR DA COMPROVAÇÃO DO ELEMENTO SUBJETIVO DO TIPO, O QUE INOCORRE NA ESPÉCIE. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DO IN DUBIO. ABSOLVIÇÃO. INTELIGÊNCIA DO ARTIGO 386, INCISOPRO REO VII, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. RECURSO PROVIDO. (TJPR – 2ª C.Criminal – 0001401-75.2018.8.16.0133 – Pérola -  Rel.: Desembargador Laertes Ferreira Gomes -  J. 03.02.2020)

3.1 Falso Reconhecimento e Psicologia do testemunho

As falsas memórias trazem demasiados prejuízos aos indivíduos que são erroneamente reconhecidos como suspeitos ou culpados, conforme ocorreu com André Luiz Medeiros Biazucci Cardoso. A semelhança entre seu veículo e o descrito pela vítima foi suficiente para tê-lo como suspeito de cometer estupros. Conduzido à delegacia sete vítimas o reconheceram como criminoso, e, a partir da veiculação de sua imagem na mídia, outras duas vítimas o apontaram como autor dos crimes.  No entanto, após ficar preventivamente preso por sete meses, a perícia demonstrou que os nove reconhecimentos eram falsos, pois o DNA de André era incompatível com o do criminoso1. 

O falso reconhecimento de inocentes pode ser ocasionado por enganos da memória, nesse sentido, a fim de evitar as interferências desse fenômeno psíquico nos processos jurídicos, a Psicologia do Testemunho tem buscado compreender o sistema cognitivo das testemunhas através de análises de casos reais e experimentos científicos (Charman & Wells, 2006; Erickson, Lampinen, & Moore, 2016; Loftus, 2013 Apud CECCONELLO; STEIN, 2020). Ficou demonstrado por essa ciência que alguns dos procedimentos usados pelo sistema de justiça contribuíam para a ocorrência de falsos reconhecimentos, como é o caso do show-up.

No show-up fotográfico, apresenta-se uma foto do suspeito à vítima/testemunha, que é solicitada a dizer se é ou não o autor do delito (Stein; Ávila, 2015). Seja presencial ou fotográfico, o problema do show-up reside na falta de alternativa para que a vítima/testemunha possa comparar rostos. Em um show up a vítima pode chegar a reconhecer o suspeito como autor do crime simplesmente em razão de apresentar características semelhantes ao autor (o mesmo corte de cabelo, por exemplo). O show-up é um procedimento notoriamente sugestivo e, por representar grande risco a falsos reconhecimentos, é constantemente desaconselhado por pesquisadores como procedimento de reconhecimento (Cecconello; Stein, 2020; Clark, 2012; Wells et. al., 2020;) (CECCONELLO; MATIDA, 2021, p. 418).

Outrossim, alguns procedimentos utilizados que vêm induzindo reconhecimentos falsos são: oferecimento de instruções ou informações às testemunhas, uso sem critérios dos álbuns de fotografia com indivíduos fichados pela polícia e repetitivas tentativas de reconhecimento já no início da investigação (CECCONELLO; STEIN, 2020).

Por isso, o sistema de justiça deve adotar procedimentos que mitiguem as influências das falsas memórias no reconhecimento de infratores, como por exemplo, i) substituir o show-up pelo alinhamento justo, em que o suspeito deve ser apresentado simultaneamente em um alinhamento com outros não suspeitos de características semelhantes; ii) não oferecer instruções e feedbacks às testemunhas, e, tampouco, mantê-las no mesmo espaço; iii) caso seja utilizado o reconhecimento fotográfico, que o faça com métodos fundamentados; iv) coleta da prova testemunhal por profissionais especificamente capacitados.

4 O uso da investigação defensiva na contenção das interferências das falsas memórias nos processos

No caso anteriormente citado, André Luiz Cardoso apenas foi considerado inocente após seu advogado conseguir autorização para realizar exame de DNA nos resíduos biológicos presentes nas vítimas e nas cenas dos crimes. Isso ocorreu somente decorridos cinco meses da prisão de André, sequer houve interesse do Ministério Público ou da Polícia Civil em produzir tal prova básica à investigação.

Essa circunstância revela a importância da atuação da investigação defensiva para frear as interferências de falsas memórias num processo que assolava a vida de um inocente. Nesse sentido, deve ser possível para a defesa produzir provas periciais, solicitando a realização de exames de DNA ou a atuação de peritos de acordo com a necessidade do caso.

Além disso, uma das possibilidades de produção probatória da investigação defensiva é o inquérito de testemunhas, este deve ser realizado com a devida cautela para evitar a formação de falsas memórias nos entrevistados.  Portanto, é recomendável, por exemplo, que as perguntas sejam abertas, priorizando o relato livre, invés de perguntas fechadas e indutivas.

Um aprofundamento em como obter descrições do rosto do criminoso foge do escopo deste artigo, cabe apontar que devem ser priorizadas perguntas abertas (e.g., você falou que o rosto dele era um pouco diferente, poderia me falar mais sobre isso? Milne, Shaw & Bull, 2007; Rivard, Pena & Compo, 2016). Perguntas fechadas ou sugestivas (e.g., você tem certeza de que ele não tinha uma cicatriz?) devem ser evitadas pois podem contaminar a memória da testemunha de forma permanente (Oxburgh et al., 2010; Poole & Lindsay, 1995). (CECCONELLO; STEIN, p. 179, 2020).

Recentemente, a investigação defensiva ganhou notoriedade e já está servindo para evitar injustiças muito comuns ao se aplicarem as leis. Por isso, a OAB deve divulgar o tema entre seus inscritos e orientá-los ao seu exercício prático. Em verdade a advocacia, mesmo sem regulamentações, já empenhava, na medida do possível, esforços na produção antecipada de provas. Entretanto, o provimento 188/2018 da OAB, em conjunto ao acórdão supramencionado da Quinta Turma do TRF 3ª região, trouxeram maior segurança jurídica para o exercício da advocacia investigativa.

Em paralelo, emergem as discussões acerca das problemáticas interferências das falsas memórias nos processos em geral, sobretudo quando se trata de conteúdo sancionatório, gerando a incriminação de inocentes erroneamente reconhecidos como culpados. Temática que deveria ser tratado já na formação de futuros profissionais da área jurídica.

Nesse sentido, o direito a contraprova decorres da necessidade de se realizar a justiça, e não se punir inocentes ou até mesmo inibir os exageros e apenamentos inconsequentes. Do direito à prova decorre a própria investigação defensiva, para, então, reduzir os erros perpetrados e conclusões que levam a injustiças.

Assim, o presente trabalho buscou interligar os assuntos para demonstrar a possível contribuição da investigação defensiva em casos de falso reconhecimento, reforçando o exercício do direito à ampla defesa. E evitando que inocentes como André Luis passem meses em ambientes prisionais insalubres e superlotados. Por isso, é relevante ressaltar a necessidade da investigação defensiva para apurar as influências das falsas memórias já na fase de inquérito, antes mesmo do julgamento. Ademais, é importante que essa relação seja aprofundada pelos estudiosos e praticantes do direito.

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1  Notícia disponível em: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2014/10/aprendi-ter-fe-diz-inocentado-apos-7-meses-preso-por-estupros-no-rio.html. Acesso em 02 de julho de 2021.

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ÁVILA, Gustavo Noronha de. Política não criminal e processo penal: a intersecção a partir das falsas memórias da testemunha e seu possível impacto carcerário. Revista eletrônica de direito penal e política criminal - UFRGS vol. 2, n.º 1, 2014.

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Carlos Roberto Faleiros Diniz
Advogado. Ex-conselheiro da OAB/SP. Ex Conselheiro do CRECI/SP. Presidente da XXVIª Turma do TED da OAB/SP.

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