Migalhas de Peso

Ela, a EC 125/22, vista por um advogado

Nesse movediço terreno das incertezas, é preciso prudência, que, aliás, não faz mal a ninguém.

2/8/2022

Este breve texto não tem viés acadêmico. A sua finalidade é analisar objetivamente como o requisito da relevância trazido pela Emenda Constitucional 125/22 já repercute na vida do advogado.

Para análise das questões processuais controvertidas e maior aprofundamento doutrinário, recomendo os artigos de Teresa Arruda Alvim, Carolina Uzeda e Ernani Meyer1, Leonardo Carneiro da Cunha2, Dierle Nunes e Cícero Lisboa3, Osmar Paixão4, Rodrigo Salomão5, José Henrique Mouta6, Vinicius Lemos7, bem como os vídeos de Edilson Vitorelli8 e Jose Miguel Garcia Medida9.

Inicialmente, uma questão de ordem prática: independentemente da discussão se o advogado já deve criar um item no recurso especial demonstrando a relevância da questão de direito infraconstitucional (o texto constitucional prevê a necessidade de regulamentação da matéria por lei, mas a EC 125/22 estabelece que “a relevância (...) será exigida nos recursos especiais interpostos após a entrada em vigor desta Emenda Constitucional”), a recomendação é óbvia. E, como sabemos, muitas vezes o óbvio precisa ser dito. Portanto, façam desde logo a efetiva demonstração da relevância.

Primeiro, para reduzir a chance de o recurso especial ser considerado inadmissível em razão da ausência de demonstração da relevância da matéria. O alerta é importante porque não se pode menosprezar nunca a jurisprudência defensiva do STJ10, um “filtro de admissibilidade” dinâmico que se retroalimenta de tempos em tempos, surpreendendo o advogado que acredita ser suficiente observar apenas os requisitos legais...

Segundo, porque a demonstração da relevância da questão infraconstitucional objeto do recurso especial pode, de algum modo, inibir a aplicação automática de determinados enunciados de súmula.  Claro que não há uma vinculação direta (relevância x admissão), mas não é absurdo pensar que o preenchimento desse primeiro requisito pode atenuar, por exemplo, a aplicação do enunciado da súmula 7 do STJ (“A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial”). Afinal, se a questão tem envergadura e densidade infraconstitucional, e sobretudo diante da função uniformizadora do STJ, não se deveria impedir, ao menos em tese, o julgamento do recurso especial por suposta tentativa de reexame de fatos.

Sob outro prisma, com exceção das hipóteses já listadas na EC 125/22 (presunções absolutas), não se sabe ainda em que situações estará caracterizada a relevância da questão de direito infraconstitucional. Todavia, até que a matéria seja efetivamente regulamentada por lei, pode o advogado se escorar no que já foi disciplinado para o instituto da repercussão geral, demonstrando a existência de “questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico que ultrapassem os interesses subjetivos do processo” (art. 1.035, § 1º, do CPC). É um norte seguro para o advogado.

Uma situação que certamente vai gerar bastante debate, embora vislumbre-se reflexos positivos, é a previsão da EC 125/22 no sentido de que haverá relevância “nas hipóteses em que o acórdão recorrido contrariar jurisprudência dominante do Superior Tribunal de Justiça” (art. 1, § 3º, V, da CF).

 Apesar da expressão “jurisprudência dominante” ser um conceito jurídico abstrato (nesse particular, a inteligência artificial pode ter papel importante na materialização do conceito11), parece claro que o termo abrange não apenas os padrões decisórios de observância obrigatória previstos nos incisos III a V do art. 927 do CPC, mas também as demais situações em que o recorrente conseguir demonstrar a predominância de determinado entendimento no âmbito do STJ. Ou seja, a hipótese prevista no EC 125/122 não se restringe aos chamados precedentes, o que, na prática, aumenta a possibilidade de se demonstrar a relevância da questão.

Nesse sentido, recomenda-se que o advogado não se limite a dizer que o acórdão recorrido violou a jurisprudência dominante do STJ. Sugere-se, no ponto, a apresentação de uma planilha com a indicação da metodologia de pesquisa (palavras selecionadas, o recorte temporal etc.), incluindo-se as referências das decisões de cada turma do STJ, bem como, se possível, o percentual de decisões favoráveis e desfavoráveis (que tenham efetivamente examinado a controvérsia), à luz da pesquisa efetuada. Isso dará maior credibilidade e força à argumentação.

Por fim, em determinados litígios, e sempre que possível, o advogado deverá atribuir à causa valor superior a 500 (quinhentos) salários mínimos. Esse foi o patamar previsto pela EC 125/22 e, portanto, a indicação estratégica desse montante já permite superar o primeiro filtro de admissibilidade. Três ressalvas nesse ponto: 

a)  ainda que o valor da causa seja superior a 500 (quinhentos) salários mínimos, o recurso especial pode ser inadmitido por outros fundamentos; 

b)  o fato de o valor da causa ser inferior a 500 (quinhentos) salários mínimos não impede a admissibilidade do recurso. Nessa hipótese, o ônus do recorrente apenas será maior, pois terá que demonstrar a relevância da matéria objeto do recurso especial; e 

c)  majorar aleatoriamente o valor da causa apenas para preencher o requisito da relevância pode gerar o aumento do valor das custas processuais, repercutir na fixação dos honorários sucumbenciais, em caso de improcedência do pedido autoral (com risco de sucumbência de dez a vinte por cento do valor atualizado da causa – art. 85, § 2º, do CPC), e agravar as sanções punitivas (ex: litigância de má-fé e ato atentatório à dignidade da justiça – arts. 77, § 2º, e 81 do CPC). 

Nesse movediço terreno das incertezas, é preciso prudência, que, aliás, não faz mal a ninguém.

_____________

1 ARRUDA ALVIM, Teresa; UZEDA, Carolina; MEYER, Ernani. O funil mais estreito para o recurso especial. Disponível em https://www.migalhas.com.br/depeso/369999/o-funil-mais-estreito-para-o-recurso-especial. Acesso em: 29.07.2022.

2 CUNHA, Leonardo Carneiro da. Reflexão sobre a relevância das questões de direito federal no recurso especial. 

Relevância das questões de direito federal em recurso especial e direito intertemporal. 

3 NUNES, Dierle; LISBOA, Cicero. Primeiras impressões da arguição de relevância no recurso especial. 

4 CORTÊS, Osmar Mendes Paixão. A relevância da questão no recurso especial será um filtro individual? Disponível em https://www.migalhas.com.br/depeso/369961/a-relevancia-da-questao-de-direito-federal-no-recurso-especial. Acesso em: 29.07.2022.

5 SALOMÃO, Rodrigo Cunha Mello. A relevância da questão de direito no recurso especial. Disponível em https://www.migalhas.com.br/depeso/370477/a-ec-125-e-a-relevancia-da-questao-de-direito-no-recurso-especial. Acesso em: 29.07.2022.

6 MOUTA, José Henrique. Relevância da questão federal no recurso especial: observações acerca da EC 125. Disponível em https://www.migalhas.com.br/depeso/370139/relevancia-da-questao-federal-no-recurso-especial. Acesso em: 29.07.2022.

7 LEMOS, Vinicius Silva. O que a relevância no REsp tem a aprender com a Emenda Regimental 54/20 do STF.

8 VITORELLI, Edilson. Novidade! Emenda Constitucional 125/22 - Relevância no RESP ao STJ - o que muda? Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=zys6VenjPzE&feature=youtu.be . Acesso em: 29.07.2022.

9 MEDINA. José Miguel Garcia. Relevância da questão federal para o recurso especial - Aprovada a reforma constitucional. Disponível em (214) Relevância da questão federal para o recurso especial - Aprovada a reforma constitucional - YouTube. Acesso em: 29.07.2022.

10 MAZZOLA, Marcelo. Formalismo-valorativo e primazia de mérito: combate à jurisprudência defensiva dos tribunais. Revista de Processo 281, jul./2018.

11 “Sob outro enfoque, vislumbramos algumas situações em que os robôs podem efetivamente contribuir com o desenvolvimento do ‘sistema’ de precedentes delineado pelo CPC/15. A primeira delas é a possibilidade de fornecerem estatísticas seguras para compreensão do conceito de ‘jurisprudência dominante’”. MAZZOLA, Marcelo; RIBEIRO, Darci Guimarães. Processo e novas tecnologias nos tribunais: desafios e perspectivas. Disponível em https://amaerj.org.br/wp-content/uploads/2019/11/Processo-e-novas-tecnologias-nos-tribunais_-desafios-e-perspectivas-jota-Info.pdf. Acesso em 29:07.2022.

 

Marcelo Mazzola
Sócio do escritório Dannemann Siemsen. Doutor e mestre em Direito Processual pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Professor de processo civil da Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) e coordenador de processo civil da Escola Superior de Advocacia (ESA/RJ). Autor dos livros "Tutela Jurisdicional Colaborativa", prefaciado pelo Ministro Luiz Fux, e "Manual de Mediação e Arbitragem", escrito em coautoria com Humberto Dalla. A obra foi prefaciada pelo Ministro Dias Toffoli e apresentada pelo Ministro Luís Felipe Salomão.

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