Depois de noticiados graves crimes sexuais praticados por servidores públicos no exercício das suas funções, a questão da reforma da lei de improbidade administrativa voltou à discussão.
- Estado da arte:
Recentemente o noticiário foi marcado por dois episódios lastimáveis e que marcam de forma muito negativa o serviço público brasileiro. Primeiramente, o caso de assédio sexual praticado pelo presidente da Caixa Econômica Federal contra empregadas da instituição e o segundo com o caso do estupro contra vulnerável praticado por médico anestesista no RJ contra pacientes em pleno trabalho de parto.
Tais fatos geraram escândalo público e geraram algumas manifestações de agentes policiais e membros do Ministério Público, que voltaram a carga de críticas às alterações da lei 8.429/92 (Lei de Improbidade Administrativa) promovidas pela Lei 14.230/21.
À época da aprovação da referida norma já houve grande alarde dos órgãos de controle sobre a alteração da lei, sob o argumento de que a alteração tinha a intenção de “blindar” servidores e agentes públicos desonestos. Neste momento já era possível levantar o questionamento acerca dos interesses embutidos nas críticas em questão, dado que a aplicação da norma de forma pragmática demonstrava um erro gravíssimo que precisava ser corrigido.
Isto porque a lei (e este é o cerne) alocava no mesmo nível de gravidade (denominada improbidade administrativa) o erro escusável, o erro inescusável e o dolo. Esta premissa viola os elementos mais básicos do estudo das responsabilidades em qualquer ramo do Direito.
Não por outro motivo, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça já era absolutamente pacífica no sentido de que o ato administrativo ímprobo é o ato doloso e marcado pela desonestidade, restringindo o alcance da lei. E o que fez a reforma promovida pela lei 14.230/21? Adequou a lei à jurisprudência pacífica do STJ, pois nos 5.570 municípios do Brasil, prefeitos, vereadores e milhões de agentes públicos eram achacados diuturnamente com ações de improbidade sem qualquer fundamento e, como é sabido, a maioria das ações não chegam ao STJ.
Logo, o que a alteração promoveu foi a uniformização do entendimento do STJ para ser aplicado em todas as instâncias ordinárias, com absoluta nenhuma novidade. A única alteração real é que os membros do Ministério Público terão que filtrar com mais rigor as suas manifestações e se incumbir do ônus de demonstrar o dolo e a desonestidade do agente que julga ímprobo.
Não se trata de tarefa estranha ao MP, dado que nas ações penais públicas (condicionadas e incondicionadas) esta é uma das tarefas ínsitas ao órgão, de modo que a demonstração do dolo é tarefa rotineira e não impõe qualquer ônus adicional aos membros da carreira.
Mesmo assim, as críticas permaneceram em suspenso e, com a alteração legislativa, agora vive-se o momento em que aparecem as ações distribuídas antes da alteração legislativa e que não obedeciam ao quanto pacificado na jurisprudência superior. Com a alteração legislativa, não havia mais motivo para manter a tramitação destas normas e, diuturnamente, aparecem notícias de ações de improbidade arquivadas “por causa da reforma”.
Na realidade, não é por causa da reforma, mas por causa da forma como a demanda foi distribuída. De todo modo, considerando que se trata de uma discussão mais política do que jurídica (vide o fato de que a alteração não inovou no ordenamento porque consonante com a jurisprudência do STJ), essas manifestações tendem a render discussões jornalísticas e gerar desinformação nas redes sociais para alimentar os debates eleitorais que se aproximam.
E neste ponto que retornamos ao tópico central do presente texto: após os fatos criminosos que foram amplamente divulgados na mídia, aparecem algumas notícias nos meios de comunicação com queixas de membros do MP afirmando que, em razão da alteração da lei, tais crimes sexuais não podem ser punidos como atos de improbidade.
Novamente, a manifestação ou decorre de interpretação equivocada da norma ou de inquietude decorrente da constatação pelos agentes de controle externo do poder público acerca da necessidade de se desincumbir do ônus probatório de que eram liberados anteriormente.
- Crime como ato de improbidade administrativa
Uma das primeiras premissas que se aprende no curso de Direito é a separação entre a responsabilidade civil, criminal e administrativa. Esta divisão temática de responsabilidades tem uma função pedagógica, dado que o Direito não é recortado em fatias estanques em respeito à complexidade da fenomenologia jurídica.
De todo modo, esta divisão importa para compreender que a incidência de responsabilidade criminal, civil e administrativa não implica em bis in idem, fato vedado pelo ordenamento. E não importa porque cada punição temática tem o objetivo de reparar ou responder a uma lesão de bem jurídico diverso, ainda que decorrente de conduta única.
Ocorre que existe um escalonamento de severidade normativa reconhecido por pacífica doutrina e jurisprudência no sentido de que a sanção penal é, sem dúvida, a sanção mais severa que o ordenamento pode impor a qualquer pessoa. Não por outro motivo, normativamente, a sanção penal é a mais criteriosa e a que exige o maior volume de requisitos e restrições, de tal modo a evitar a aplicação de tão severa sanção a agente que não se tenha segura certeza de que ostenta esta responsabilidade.
Pois bem, analisando a redação original da lei 8.249/92 e a redação atual, há um padrão inalterado: há três espécies de atos ímprobos, quais sejam, o que importam em danos ao erário, os que importam em enriquecimento ilícito e os que violam os princípios da Administração Pública (arts. 9º, 10 e 11).
Este padrão não foi alterado pela reforma, embora a incidência de cada um destes atos foi afetada pela reforma, especialmente pela exigência de que o ato (inclusive que importa danos ao erário) seja doloso.
Refletindo sobre os fatos divulgados, ou seja, os crimes sexuais praticados por agentes públicos no exercício da função, não demanda maior elucubração para entender que não se trata de crimes que causem danos ao erário e tampouco crimes que importem em enriquecimento ilícito do agente. Entretanto, da mesma forma, não é difícil concluir que tais condutas criminosas violam os princípios da Administração Pública.
Os princípios da Administração Pública são vários, mas basta se concentrar em um princípio básico: a legalidade. Se a temática são condutas criminosas, então é preciso compreender a estrutura da norma penal.
O tipo penal contém a descrição de uma conduta positiva (de regra), ou seja, de um agir. Este tipo penal incorpora uma norma penal “embutida” que impõe um dever normativo oposto, que é a conduta esperada. Assim, o tipo penal estabelecido no art. 217-A, § 1º, do Código Penal estabelece a conduta de ter conjunção carnal ou qualquer outro ato libidinoso com quem não é capaz de consentir para o ato e/ou por qualquer motivo não pode oferecer resistência.
Por sua vez, a norma penal encartada neste tipo tem o seguinte conteúdo: é vedado ter conjunção carnal ou qualquer outro ato libidinoso com quem não é capaz de consentir para o ato e/ou por qualquer motivo não pode oferecer resistência.
Neste contexto, não demanda maior desenvolvimento argumentativo para concluir que a prática de um crime viola o princípio da legalidade. E se a legalidade um princípio da Administração Pública, é muito razoável que tal conduta se enquadre como ato de improbidade administrativa que importe em violação aos princípios da Administração Pública.
E neste quesito a reforma da Lei de Improbidade Administrativa em nada foi alterada. O que se observa do novo regramento é que o Ministério Público não poderá imputar, genericamente, a existência de violação aos princípios da Administração como se fazia anteriormente.
Trata-se de uma obviedade, dado que é impossível exercer o direito de defesa contra fato indeterminado. Exatamente para corrigir este fato, a lei foi alterada para estabelecer que a caracterização da improbidade administrativa por violação aos princípios da Administração demanda a evidência de requisitos específicos previstos em lei.
O primeiro requisito é a comprovação de conduta dolosa com a finalidade específica de obter proveito ou benefício indevido para si ou para outrem (art. 11, § 1º). Veja-se que a norma não especifica que o benefício é econômico e esse silêncio é eloquente, dado que o benefício econômico indevido está abarcado no artigo anterior que trata do enriquecimento ilícito.
O segundo requisito é a comprovação da ilegalidade por meio da demonstração expressa das normas constitucionais, legais ou infralegais violadas (art. 11, § 3º). Como acima demonstrado, a violação da norma penal é a violação mais grave e intensa prevista no ordenamento.
Por fim, o terceiro requisito legal é a demonstração de efetiva e relevante lesividade da conduta indicada, com a evidência de lesão material ao bem jurídico tutelado (art. 11, § 4º). No caso das infrações penais, é fato notório que a conduta criminosa é aquela que atinge o bem jurídico tutelado pela norma de forma insuportável socialmente.
Ou seja, demonstrada a existência de infração penal, às escancaras se estará diante de uma violação mais do que relevante e material ao bem jurídico tutelado.
A única e óbvia ressalva é o disposto no art. 21, § 4º, segundo o qual a absolvição em processo criminal sobre o mesmo fato confirmada em segunda instância (ou seja, depois de observado o duplo grau de jurisdição) impede a tramitação da ação de improbidade. Trata-se de circunstância comum e, no caso, a norma apenas compatibilizou a norma administrativa com a norma civil que tem regramento no mesmo sentido (art. 935 do Código Civil).
Inclusive a norma administrativa é mais rigorosa que a norma civil, dado que a norma civil vincula a responsabilidade civil à responsabilidade criminal sem condicionantes e a norma administrativa estabelece a vinculação a partir da decisão criminal confirmada por órgão colegiado. Ou seja, o agente absolvido plenamente em primeira instância terá que recorrer contra decisão absolutória do juízo criminal apenas para ver a norma confirmada pelo órgão colegiado e, com isso, poder utilizar esta decisão em seu favor na ação de improbidade (o que cria uma nova e peculiar circunstância de interesse recursal criminal mesmo diante de uma sentença absolutória).
- Conclusão
Considerando os itens acima destacados, é possível concluir que as alterações promovidas pela lei 14.230/21 na lei 8.429/92 não implicaram em enfraquecimento ao sistema de persecução administrativa contra atos de improbidade, mas aperfeiçoamento da norma e sua conformação à jurisprudência superior.
Além disso, as alterações não modificaram as hipóteses de ocorrência de improbidade administrativa, mas restringiram a sua incidência aos casos em que, de fato, se verifica a desonestidade do agente.
Por fim, ao contrário do noticiado, a prática de crimes sexuais (e quaisquer outros crimes) por agentes públicos no exercício da função, caso demonstrada no juízo criminal, implica também a incidência da Lei de Improbidade por violação aos princípios da Administração caso a conduta não implique em enriquecimento ilícito. Nestes casos, a reforma promovida pela lei 14.230/21 também não alterou a incidência da Lei de Improbidade, mas apenas estabeleceu critérios coerentes e demonstráveis quando se está diante da prática de crimes.