Não há quem não tenha ficado horrorizado com a notícia do médico anestesista flagrado, semanas atrás1, violando sexualmente uma paciente sedada quando ela estava em trabalho de parto em hospital na baixada fluminense.
O caso felizmente veio à tona graças à sagacidade da equipe de enfermagem do hospital que, desconfiada do comportamento do médico, decidiu, à revelia dele, filmá-lo durante o procedimento, viabilizando a prova categórica do repugnante crime.
Apesar desta evidência cabal, tem sido objeto de discussão se a gravação do vídeo, feita clandestinamente e sem autorização judicial, poderá ser utilizada como prova para fins criminais.
Isso porque a lei 9.279/96 (Lei das Interceptações Telefônicas), que também regula a captação ambiental, inclusive de sinais ópticos e acústicos, como é o caso da filmagem, cuja redação original foi modificada pela lei 13.964/19 (Lei Anticrime), determina atualmente que
“a captação ambiental feita por um dos interlocutores sem o prévio conhecimento da autoridade policial ou do Ministério Público poderá ser utilizada, em matéria de defesa, quando demonstrada a integridade da gravação” (art. 8-A, § 4º, da Lei n. 9.279/96, incluído pela lei 13.964/19).
Ao mencionar que esse meio de prova, quando feito à margem das autoridades públicas, pode ser utilizado “em matéria de defesa”, pretendeu o legislador impedir a sua utilização em favor da vítima? E, ainda que sim, a filmagem realizada pela valorosa equipe de enfermeiros se enquadraria nesse tipo de captação vedada em lei?
Pensamos que não necessariamente e, menos ainda, à luz das particularidades deste caso específico.
Em primeiro lugar, a despeito da confusa redação, deve-se considerar que o legislador optou pelo termo “matéria de defesa” – isto é, alegação feita por qualquer das partes –, e não “matéria da defesa” – aí sim relativa à defesa em sentido estrito, isto é, pelo réu e seu advogado.
Considerando-se a premissa basilar de que a lei não contém palavras inúteis, ao ter sido escolhida a preposição indefinida de – ao invés de da (que indica individualização, determinação) –, parece-nos que o aproveitamento de eventual captação ambiental não poderá se dar somente pela defesa, e sim como elemento apto a corroborar as arguições de todas as partes do processo.
É, inclusive, a interpretação que mais se adequa aos princípios da isonomia e da paridade de armas, garantindo que ambas as partes possam lançar mão dos mesmos meios de prova previstos em lei.
É claro que, para que fosse evitada qualquer discussão, o ideal seria a modificação do texto legal, seja para vedar expressamente a possibilidade de sua utilização pela acusação – o que não concordamos –, seja para reconhecer, de forma categórica, que ela pode ser produzida e se presta a todas as partes e diretamente interessados na persecução penal.
Em todo caso, a nosso ver, em uma interpretação sistêmica e integrada da lei, o escopo do legislador é impedir a promoção de atos de investigação paralelos aos oficiais, de competência exclusiva das autoridades públicas, quando já houver apuração em curso.
No caso envolvendo este anestesista, porém, quando a gravação ocorreu, sequer existia procedimento criminal contra ele. Aliás, os responsáveis pela gravação, desconfiados de outras práticas dele (como o possível uso excessivo de sedativos nas cirurgias2), sequer sabiam se estavam diante de uma prática delituosa, ainda mais de crime sexual. A gravação realizada poderia, portanto, inclusive servir para inocentá-lo, se fosse o caso.
Além disso, a filmagem não tinha nem tem como única finalidade instruir processo criminal, podendo servir para outros fins, por exemplo a responsabilização do médico perante o órgão de classe, como ocorreu3.
Também não se pode ignorar que crimes dessa natureza são cometidos às escuras e em geral têm como única prova a palavra da própria ofendida, o que não seria possível neste caso.
Ela estava sedada e o médico fora da vista de qualquer testemunha. Não fosse a filmagem, de que outra forma essa infâmia seria revelada?
Por fim, o contexto em que cometido o crime também ajuda a concluir pela possibilidade de exploração do vídeo para fins penais.
Isso porque há orientações do próprio CRM recomendando ou, ao menos, permitindo que procedimentos cirúrgicos, exames ginecológicos e consultas médicas em mulheres, dado acarretarem situações de extrema vulnerabilidade da paciente, possam ser acompanhados por terceiros ou mesmo filmados, como foi o caso.
A fragilidade da mulher nessas situações é tamanha a ponto de estar em trâmite no Congresso Nacional projeto de lei com o objetivo de aumentar em 2/3 a pena do crime de importunação sexual (art. 215-A, CP) se cometido “por médicos ou profissionais da saúde no exercício de suas atividades em consultórios ou hospitais” (PLS 39/22)4.
Assim, diante das circunstâncias existentes, e por uma questão de razoabilidade e proporcionalidade, acreditamos ser possível a utilização do vídeo para fins penais – devendo sujeitar-se, evidentemente, à perícia oficial que possa confirmar sua autenticidade –, esperando que sirva para punir exemplarmente a odiosa conduta do médico que chocou a todos.