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Secret Tax Revolt e o REsp 1.937.821: consciência fiscal e limites da fiscalização tributária

Julgamento expõe limites da fiscalização tributária.

29/7/2022

Recentemente, o STJ julgou o REsp 1.937.821, de relatoria do Ministro Gurgel de Faria, interposto pelo Município de São Paulo, referente à base de cálculo do Imposto de Transmissão sobre Bens Imóveis – ITBI. Em princípio, o caso parece apenas mais uma celeuma envolvendo a interpretação e aplicação do CTN. Entretanto, o julgado retrata a consciência fiscal do país e os limites da fiscalização tributária.

Insta salientar que, sendo a norma tributária uma “norma de rejeição social”, como definiu o Professor Ives Gandra Martins, na ausência de sanção, a consciência fiscal dificilmente seria capaz de estimular o contribuinte a abrir mão da maximização da utilidade esperada em prol do custeio das necessidades do Estado, independentemente se individuais, coletivas ou transindividuais.

Por outro lado, a aplicação isolada da sanção também não é suficiente para motivar o contribuinte a pagar tributos. Se a aplicação da sanção for muito branda, o contribuinte pode contabilizar a sanção como custo e continuar inadimplente. Se a aplicação for muito severa, pode gerar revoltas, revoluções ou a tentativa de escapar da carga tributária considerada opressiva – batizada de secret tax revolt.

O secret tax revolt ocorre quando a convicção ética do legislador deixa de coincidir com a convicção ética dos contribuintes, que passam a recorrer a sofisticados esquemas de planejamento tributário, atuar na economia informal e sonegar tributos. Sem um objetivo claro, ou um valor capaz de engajar os contribuintes, a norma acaba deteriorando o próprio adimplemento.

O fenômeno não constitui uma crise de legitimidade do sistema tributário, mas ofende diretamente o Princípio da Igualdade, resguardado pelo art. 150, II da CF/88. Em um cenário onde o adimplemento tributário não é assegurado, o pagamento de tributos passa a ser tratado de forma jocosa. O tributo, antes uma ferramenta de manutenção e alcance dos objetivos do Estado, se torna um Dummersteuer (Imposto dos bobos), pago por quem vai na contramão da inadimplência generalizada.

A péssima qualidade de serviços públicos prestados, os frequentes casos de corrupção, a falta de moralidade entre os entes federados, a concessão de sucessivos programas de parcelamento de débitos fiscais e a falta de rigor na aplicação das penalidades fazem com que o senso de contribuição diminua e o risco de auditoria aumente.

Em teoria, os objetivos do auditor e do auditado deveriam ser os mesmos: cruzar informações para melhorar as decisões e alocar os recursos de forma mais eficiente e eficaz. Na prática, o contribuinte e a administração tributária constituem uma relação de litigiosidade e desconfiança, elevando o peso da carga tributária e congestionando o judiciário.

De acordo com o IBPT, a sonegação fiscal no Brasil vem diminuindo substancialmente. Desde 2004, houve uma queda de 61% no índice de sonegação fiscal no Brasil. Entretanto, não se trata apenas de pagar ou sonegar tributos, mas de reconhecer a importância da tributação, principalmente quando a legislação tributária adota uma linguagem mais branda, ocasionando a oscilação da base de cálculo.

Uma das recentes controvérsias envolvendo a base de cálculo dos tributos foi apreciada no REsp 1.937.821. No julgado, os Ministros analisaram se a base de cálculo do ITBI, prevista pelo art. 38 do CTN, estaria ou não vinculada ao IPTU.

De acordo com o art. 38 do CTN:

Art. 38. A base de cálculo do imposto é o valor venal dos bens ou direitos transmitidos.

Ocorre que, para o IPTU, o valor venal utilizado no lançamento é atribuído por estimativa. Em relação ao ITBI, o valor venal deve refletir o real valor de mercado. Desta forma, a administração tributária pode lançar o IPTU de ofício, considerando aspectos mais amplos e objetivos, como a localização e a metragem do imóvel. No entanto, o mesmo não é possível no caso do ITBI, uma vez que refletir o valor real do imóvel envolve fatores como benfeitorias, estado de conservação e as necessidades do comprador e do vendedor.

Sendo assim, o lançamento do ITBI se dá por declaração, na forma do art. 147 do CTN, cabendo a revisão de ofício, prevista pelo art. 149, VIII do CTN, quando a administração tributária entender que deve “ser apreciado fato não conhecido ou não provado por ocasião do lançamento anterior”.

Na ocasião do REsp 1.937.821, o STJ fixou 3 teses:

  1. A base de cálculo do ITBI é o valor do imóvel transmitido em condições normais de mercado, não estando vinculada à base de cálculo do IPTU, que nem sequer pode ser utilizada como piso de tributação;
  2. O valor da transação declarado pelo contribuinte goza da presunção de que é condizente com o valor de mercado, que somente pode ser afastada pelo fisco mediante a regular instauração de processo administrativo próprio (artigo 148 do Código Tributário Nacional – CTN);
  3. O município não pode arbitrar previamente a base de cálculo do ITBI com respaldo em valor de referência por ele estabelecido de forma unilateral.

 O julgado consiste em um marco na relação entre contribuinte e administração tributária. Além de reforçar a credibilidade da declaração do  contribuinte, o REsp 1.937.821 mostra que, em algumas situações, mesmo a mais moderna ferramenta de auditoria da administração tributária não é capaz de substituir o voluntário fornecimento de informações por parte do contribuinte.

Na era do Big Data e Audit Analytics, onde o cruzamento de dados e a declaração ocorrem de maneira cada vez mais automática, a inviolabilidade do domicílio, resguardada pelo art. 5º, XI, da CF/88, talvez seja uma das últimas barreiras que a administração tributária ainda não consegue transpor.

Em síntese, o julgamento do REsp 1.937.821 provoca a necessidade de refletir sobre o futuro que almejamos para nossa sociedade.

Queremos fortalecer a consciência fiscal, para que os contribuintes colaborem mais com a administração tributária, ou tornar a administração tributária capaz de realizar auditorias que alcançam inclusive nosso lar?

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ABRAHAM, Marcus. Curso de Direito Tributário Brasileiro - 2 ed. - Rio de Janeiro: Forense, 2020.

BOWLES, S. The moral economy: why good incentives are no substitute for good citizens. New Haven: Yale University Press, 2016. 

COSTA, Gledson Pompeu Corrêa da e DUTRA, Tiago Alves de Gouveia Lins. Auditoria financeira na era do Big Data: novas possibilidades para avaliação e resposta a riscos em demonstrações financeiras do Governo Federal. Revista do TCU, n. 131. p. 54-61. Disponível em: https://revista.tcu.gov.br/ojs/index.php/RTCU/article/view/62

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HOBSBAWM, E. J. A era das revoluções: Europa 1789-1848. 6. ed. Sa~o Paulo: Paz e Terra S/A, 1988. 

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MANKIW, N. G. Introdução à economia. 6. ed. São Paulo: Cengage Learning, 2014. 

MARTINS, Ives Gandra da Silva. Teoria da imposição tributária. 2.ed. São Paulo: LTr, 1998.

REALE, Miguel. Teoria tridimensional do direito - 5. ed. - São Paulo: Saraiva, 1994.

Pedro Henrique Vieira Greca Monteiro
Advogado formado pelo IBMEC/RJ e pesquisador na área de Finanças Comportamentais. Autor do livro "Tributário Cognitivo Comportamental - Introdução ao Tema"

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