Com a constante alta dos combustíveis, o governo Federal decidiu tomar uma medida no mínimo “desesperadora”, porém, não condizente com as diretrizes constitucionais. Para tentar conter o aumento dos preços, fora aprovada a lei complementar 194 de 23/6/22, cujo teor altera a lei 5.172, de 25/10/66 (Código Tributário Nacional) e a lei complementar 87, de 13/9/96 (Lei Kandir), para considerar bens e serviços essenciais relativos: aos combustíveis, à energia elétrica, às comunicações e ao transporte coletivo, e as leis complementares 192, de 11/3/22, e 159, de 19/5/17.
O novo diploma legal classificou: os combustíveis, a energia elétrica, as telecomunicações e o transporte coletivo como bens e serviços essenciais e, portanto, não estão sujeitos à majoração do ICMS. Dessa forma, a alíquota máxima para esses itens deve ser aplicada às operações em geral, em média, de 17% a 18%; ou seja, fora estabelecido um limite pela União no tocante as alíquotas de um imposto de competência estadual.
O ICMS, cujo hipótese de incidência se dá sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação revela-se como o mais importante tributo dos Estados e do DF, que, por meio de suas receitas, torna em realidade a autonomia dos referidos entes federativos viabilizando, em última instância conceitualmente, a própria federação. Em outros termos, trata-se da principal fonte de recita dos Estados membros, do DF e de muitos municípios através da transferência de percentuais realizada pelos Estados.
De acordo com os Estados e com o DF, o ICMS representou 86% da arrecadação. Apenas combustíveis, petróleo, lubrificantes e energia responderam por quase 30% do valor arrecadado com o imposto. E, como os municípios ficam com 25% do ICMS, esses entes federativos também perderão receitas. Por esse motivo, as unidades federativas sustentam que a nova lei tem repercussão negativa para as contas públicas dos demais entes da federação, podendo causar uma calamidade financeira nas contas dos entes subnacionais, além de causar danos financeiros aos municípios pela automática redução das transferências constitucionais obrigatórias.
O ICMS vem, genericamente, previsto no art. 155, II, da CF/88, com sua literalidade:
“Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre: (Redação dada pela Emenda Constitucional 3, de 1993)
II – Operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior” (Redação dada pela Emenda Constitucional 3/1993.
No âmbito, infraconstitucional, o referido imposto é regulamentado pela lei complementar 87/96 (chamada “Lei Kandir”), sendo alterada posteriormente por outros diplomas normativos.
Como já frisado, o tributo em pauta é instituído em cada Estado e o DF por lei estadual ou distrital, sendo assim, um imposto fiscal cuja arrecadação tem como principal objetivo o abastecimento dos cofres públicos é de competência estadual ou distrital, como estabelece o art. 155, II, da CF/88. A lei complementar 87/96 apresenta as regras gerais de ICMS e dispõe sobre os aspectos materiais deste em seus arts. 1º e 2º.
As alíquotas do ICMS variam de acordo com a operação e Estado. A CF/88 estabeleceu que nas operações e prestações que destinem bens e serviços ao consumidor final, contribuinte ou não do imposto, localizado em outro Estado, adotar-se-á a alíquota interestadual e caberá ao Estado a localização do destinatário, o imposto correspondente à diferença entre a alíquota interna do Estado destinatário e a alíquota interestadual; (alteração feita pela emenda constitucional 87, de 2015, CF/88, art. 155, §2°, VII).
A Constituição também determinou que o Senado Federal coordenasse a criação desse imposto nas várias unidades federativas. Assim sendo, cabe ao Senado Federal, mediante resolução de iniciativa do presidente da República ou de um terço dos Senadores, a aprovação pela maioria absoluta de seus membros, o estabelecimento das alíquotas de ICMS aplicáveis às operações e prestações de serviços interestaduais e de exportação.
Em suma, a partir da linguagem prescrita pela Lei Maior, o ICMS é de competência estadual, não podendo a União interferir em sua seara, sob pena de violar o Princípio do Pacto Federativo.
Ocorre que, com o advento da LC 194/22 a União deu um caráter Federal ao ICMS, mudando também a sua natureza de fiscal para extrafiscal. Em outras palavras, a União Federal, com essa nova lei complementar, interferi outra vez na tributação, pelo ICMS, incidente não apenas nos combustíveis, mas agora também no gás natural, na energia elétrica, nas comunicações e no transporte coletivo.
Não podemos nos esquecer que, o art. 146 da CF/88, quando trata das normas gerais do direito tributário, restringe o papel da lei complementar a prever os fatos geradores, as bases de cálculo e os contribuintes possíveis, a serem seguidos pelos Estados.
Art. 146. Cabe à lei complementar:
III - estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre:
a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes;
b) obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários;
c) adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas.
Ademais, especificamente quanto aos combustíveis, o art. 155, §4º, inciso IV, e §5º da Lei Maior, dispõe que as alíquotas do ICMS serão definidas mediante deliberação dos Estados e DF e, portanto, não podem ser fixadas por lei complementar. E, se a alíquota não pode ser fixada por lei complementar, também não pode ser limitada por esse mesmo instrumento.
Cabe consignar que, se as regras de compensação parciais da lei complementar 194/22 já eram despóticas, os vetos presidenciais aos §§ 1º, 4º, 5º e 6º do seu art. 3º reduziram ainda mais as possibilidades de ressarcimento de estados e municípios, podendo gerar um estado de calamidade financeira nos demais entes da federação.
Outrossim, os fundos de combate à pobreza, previstos no art. 82, caput e §1º do ADCT – Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que corresponde a um adicional à alíquota do ICMS em determinadas mercadorias e serviços, com destinação constitucional, sendo ressalvada à vedação de vinculação da receita de impostos a fundos. Haverá uma perda considerável de receita para esses fundos nos Estados que os adotam.
Ora, não há dúvida que a referida lei, além de violar o pacto federativo, viola autonomia dos estados, DF e municípios e o Princípio da Proporcionalidade na vertente da proibição do excesso, bem como interferi diretamente na continuidade administrativa dos serviços públicos estaduais e municipais, podendo causar um estado de calamidade financeira e orçamentária.
Nesse sentido, a nova norma promove uma invasão de competência constitucional reservada aos Estados e ao DF para a fixação de alíquotas do ICMS e dos seus critérios, violando o inciso II do art. 155 da Carta da República. Pois, a competência da União Federal para editar leis complementares tributárias não abrange a fixação de alíquotas.
Em síntese, o objetivo da LC 194/22 é limitar a alíquota máxima do tributo, ainda que de forma indireta, uma vez que se espera que a alíquota sobre os bens essenciais fique limitada a 17% ou 18%. Tal prática acaba tornando o ICMS um imposto Federal por meio de um instrumento jurídico inadequado.
Posto isso, não se deve usar o ICMS com finalidade regulatória por meio de lei Federal, pois trata-se de um imposto estadual. Se é para discipliná-lo sem a lei estadual então que seja criado o IVA Nacional, ou federalizar o ICMS por meio de uma emenda constitucional que é o instrumento jurídico adequado para essa finalidade.
Além do mais, limitar o teto do referido imposto não irá reduzir os preços dos combustíveis e do gás de cozinha, visto que o aumento excessivo desses preços é devido a política de paridade internacional adotada pela Petrobrás.
Para terminar, a LC 194/22 fere princípios constitucionais como: o Pacto Federativo, viola a autonomia financeira dos Estados e do DF e traz ônus excessivo e desproporcional aos cofres estaduais e municipais. Bem como, seus efeitos serão amplamente negativos em políticas públicas, como: saúde e educação, prejudicando a população mais carente