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Sustar decisões do STF?

Se essa ‘atribuição’ constitucional ao Legislativo é perfeitamente ajustável ao sistema de freios e contrapesos, firmado na Constituição (art.2º, CF/88), o mesmo não ocorre na hipótese de sustação de decisões do STF por ato do Legislativo; são situações bastante díspares.

6/7/2022

O art. 49, V, da CF/88, atribui ao Congresso Nacional a competência para sustar atos normativos editados pelo poder Executivo, que exorbitem do poder regulamentar [art.84, IV, parte final, CF/88], ou dos limites da delegação legislativa [art.68, CF/88). Cuida-se de atribuição constitucional viável no regime Democrático de Direito, na medida em que compete ao Legislativo fiscalizar os atos do Executivo, nos termos do art. 49, X, da Constituição. 

Dessa forma, tendo havido extravasamento da competência do Executivo, na edição de atos normativos (normas infralegais, gerais, abstratos e impessoais), ou no uso da delegação legislativa ao Executivo, nos limites constitucionais, o Legislativo poderá sustar o ato jurídico, sem prejuízo, por evidência, da propositura de ações judiciais apropriadas (art.5º, XXXV, CF/88).

Se essa ‘atribuição’ constitucional ao Legislativo é perfeitamente ajustável ao sistema de freios e contrapesos, firmado na Constituição (art.2º, CF/88), o mesmo não ocorre na hipótese de sustação de decisões do STF por ato do Legislativo; são situações bastante díspares.

Apesar disso, PEC em tramitação na Câmara de Deputados, pretende alterar o art. 49, da CF/88, acrescentando o inciso XIX, com a seguinte redação: “art.49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional: XIX - deliberar, por três quintos dos membros de cada Casa Legislativa, em dois turnos, sobre projeto de decreto Legislativo do Congresso Nacional, apresentado pela maioria absoluta dos membros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, que proponha sustar decisão do STF que tenha transitado em julgado sem aprovação unânime dos seus membros, e que extrapole os limites constitucionais. Parágrafo único. O decreto Legislativo a que se refere o inciso XIX será promulgado pelo presidente do Congresso Nacional e comunicado ao STF, com vigência imediata.

Assim, conforme a PEC, observado o quórum determinado na norma [apresentação do decreto Legislativo, pela maioria absoluta dos membros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal; deliberação, por três quintos dos membros de cada Casa, em dois turnos], o decreto Legislativo será promulgado pelo presidente do Congresso Nacional, e o STF será comunicado, para a vigência, ou aplicação, imediata do ato político.

Com todo o respeito aos defensores da PEC, neste sucinto artigo, procurarei analisá-la por critérios jurídicos, técnicos, longe de qualquer conotação de caráter ideológico, ou político, e cuja conclusão só pode ser a inconstitucionalidade da pretendida sustação de decisões do STF.

Exceto na hipótese remota e excepcional de a Magna Carta estabelecer, originariamente, a possibilidade de o Legislativo sustar atos do Judiciário, isto é, no momento da elaboração da Constituição (poder constituinte originário) - o que não ocorreu em 1988  – qualquer tentativa nesse sentido, posterior ao texto constitucional, mediante emendas à Constituição (poder constituinte derivado), será írrita, nula, inviável, juridicamente, pois atinge diretamente o cerne do regime Democrático de Direito.

O decreto Legislativo é ato interna corporis do Legislativo, prescindindo, dessa forma, de sanção do presidente da República; tanto que a promulgação daquele ato, nos termos da PEC, é de competência do presidente do Congresso Nacional, e não da autoridade do Executivo, órgão encarregado, naturalmente, à promulgação e publicação das leis. Ora, por ser ato interno de natureza política, o decreto legislativo contém ‘grande carga de discricionariedade’ da Casa Legislativa, o que dificulta, muitas vezes, a apreciação do Judiciário quanto ao conteúdo do ato que sustou a decisão da Corte.

Pergunta-se: qual o significado da expressão ‘extrapolar os limites constitucionais’ – referência à decisão do STF – numa apreciação política, a cargo do Legislativo, base do decreto Legislativo? Evidentemente, está-se diante de uma discricionariedade acentuada, sob viés político, e não jurídico. Haverá verdadeira sobreposição política às decisões do Judiciário!

Nos termos da PEC, para que haja a sustação da decisão do STF, por ato do Legislativo, há necessidade de que ela [a decisão] não tenha sido unânime e tenha havido o trânsito em julgado dela. Bastaria, então, um voto divergente para possibilitar a sustação da decisão do tribunal?

E quanto ao trânsito em julgado, por que aguardar-se esse momento processual, longínquo e definitivo, para possibilitar a sustação da decisão judicial?  Ademais, se pode o mais (sustar decisões após a res judicata), certamente, o Legislativo poderá o menos: sustar decisões definitivas da Corte, ainda que não tenham transitado em julgado.

Finalmente, a coisa julgada é garantia constitucional (art. 5º, XXXVI, CF/88); só pode ser obviada por ações judiciais específicas, como revisões e ações rescisórias; ou mediante a retroatividade da norma benéfica em tema de penalidades (lex mitior). Pois, o órgão que determina a ‘a última palavra’, no regime Democrático de Direito, é o poder Judiciário, cujas decisões detêm caráter de definitividade

Assim, aprovada a emenda constitucional, haverá interferência indevida do parlamento no Judiciário, cujo principal órgão, o STF, tem incumbência de resguardar a Constituição (art.102, “caput”,CF/88). Se, para alguns, aquela Corte não cumpre seu papel de forma adequada, por certo o caminho não seria a sustação do ato judicial, por decreto Legislativo, sob pena de macular-se o princípio da separação dos poderes, base, estrutura do regime Democrático de Direito. Outras soluções podem ser alvitradas, como a exigência de requisitos técnicos para a pessoa candidatar-se ao cargo; mudança no sistema de escolha dos ministros; perda da vitaliciedade, substituindo-se por mandatos dos titulares dos cargos etc.

Portanto, a PEC padece de inconstitucionalidade, porquanto afronta cláusulas pétreas, fixadas no texto Constitucional, ante os ditames do art. 60,§4º, o qual determina a impossibilidade de emenda constitucional que tenda a abolir a separação dos poderes (III) e os direitos e garantias individuais (IV).

No caso, a emenda constitucional não apenas propende, ou inclina-se, abolir esses ‘valores’ de cunho constitucional; ela, efetivamente, os extermina!

Heraldo Garcia Vitta
Advogado e Professor de Direito. Juiz Federal aposentado. Ex-Promotor de Justiça (SP). Mestre e Doutor Direito (PUC-SP).

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