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Quem honra a honraria?

Uma breve introdução ao estudo das mercês na administração pública e na sociedade em geral.

5/7/2022

No dia 1º/7/22, a FBN – Fundação Biblioteca Nacional do Brasil, concedeu, após anos de letargia, a “Medalha Biblioteca Nacional – Ordem do Mérito do Livro”, honorificência criada em 1984, com o fito de homenagear não somente bibliotecários e bibliófilos, mas também personalidades do mundo das ciências, da cultura e das artes que auxiliassem a produção literária no Brasil. Tive a honra de ser um dos galardoados. Recebeu-a por mim o amigo padre Stannly Cunha dos Santos, vigário da Catedral do Rio de Janeiro.

Como tem sido veiculado, receberam a honraria, ao longo dos anos, Gilberto Freyre, Carlos Drummond de Andrade, José Mindlin, Josué Montello, Affonso Arinos, Barbosa Lima Sobrinho, Cleofe Person de Mattos, Maria Alice Barroso, Roberto Burle Marx e sem número de outros “avatares” do Brasil.

O atual presidente da FBN, o jovem cientista político Luiz Ramiro Junior, resolveu que retomaria a concessão da comenda, por ocasião do bicentenário da independência do Brasil, fazendo mercê de 200 medalhas, para 200 personalidades que se destacam nos trabalhos desse bicentenário tão pouco investido por parte do Executivo Federal, mas que justamente tem na autarquia “bíblica” do Brasil uma das únicas entidades que operam incessantemente pela rememoração dos 200 anos dos Brasis que se tornaram o Brasil naquela década de 1820 e nas seguintes.

Houve a grita. Um dos agraciados listados é um deputado Federal carioca notório vituperador de ministros da Suprema Corte, que já foi preso, já foi solto, e não se sabe se será preso e solto novamente. Pois bem. Conhecem vossas senhorias e excelências aquilo que se poderia chamar de “mercado das honorificências” no Brasil e no mundo? Dou-lhes meu testemunho pessoal.

Meu primeiro emprego na vida pública foi o de estagiário e, depois, assessor da chefia para assuntos de cerimonial da Alerj – Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, órgão da presidência da Casa em que eu auxiliava na preparação de solenidades nas quais foram agraciadas inúmeras personalidades do mundo das artes, da religião, da ciência, do direito, do esporte e da política. Muitas vezes os agraciados de hoje se transformavam nos apenados do sistema judiciário de amanhã. Muitas vezes as autoridades agraciantes eram, elas mesmas, processadas e julgadas no âmbito da justiça criminal. Não sendo o titular da chefia e apenas assessorando a então chefe, professora Vera Jardim, repeti, em incessantes ocasiões, por exemplo, que a medalha Tiradentes não poderia ser concedida a pessoas jurídicas, somente a pessoas físicas, visto que o próprio ato de imposição da comenda ao agraciado implica em colocar a medalha em seu pescoço. Debalde. Embora minha chefe me ouvisse, professora e socióloga de formação que é, sempre me redarguia que aquela era a realidade social e política daquela Casa e daquele Estado, o meu, Rio de Janeiro.

Não foram nem uma nem duas as vezes em que preparei roteiros cerimonialísticos para homenagear, com a medalha Tiradentes ou o título de Benemérito do Estado do Rio de Janeiro, pessoas em conflito com a lei. Lembro-me, particularmente, de ter preparado, com uma colega, o roteiro da cerimônia de entrega da medalha Tiradentes para o capitão da PM Adriano Nóbrega, embora não saiba dizer se o evento ocorreu ou não, pois acessando dados sobre esse fato na internet, já li que ele recebeu a medalha no quartel-general da PMERJ, onde estaria encarcerado. Duríssima realidade, como aprendemos em criminologia. Este policial militar, que, parece, já estava desligado oficialmente da corporação, foi morto em 2020, no interior da Bahia.

Na solenidade do dia 1º/7/22, na parte da manhã, o presidente da Biblioteca Nacional quis deixar claro que honraria ali os representantes da Cultura do Brasil que  trabalham pelo bicentenário da independência e pela própria FBN e cujos nomes enaltecem a preservação da memória nacional. Por isso, receberam a “Ordem do Mérito do Livro” inúmeros antigos dirigentes da Casa, servidores aposentados ou ainda na ativa, e intelectuais os mais variados. Foram agraciados Nélida Piñon, Esther Bertoletti, José Murilo de Carvalho, Arno Wehling, Victorino Chermont de Miranda, Guilherme e Lucia Pereira das Neves, Ricardo Cravo Albin, André Cardoso, Rosana Lanzelote, Denise Porto, Joaquim Marçal de Andrade e dezenas de outros.1

Julgar os critérios para a concessão da mercê por parte do presidente da FBN não nos cabe. Isto porque todas as medalhas, mercês, fitas e badulaques – Dona Isabel do Brasil (1846-1921), a “Princesa Isabel”, costumava chamar essas coisas de “tartines”, ou seja, literalmente “canapés”, mas conotativamente “brindes”, em cartas para a Condessa de Barral – possuem sempre uma motivação política. Não é por outra razão que elas são concedidas.2 Alguns cientistas sociais poderiam alegar que esse “mercado de honorificências” é espúrio e que nele o que vige é a política mais baixa, o ímpeto de sobrevivência de pessoas e instituições na batalha cotidiana pela famigerada “governabilidade”, ou o “toma lá dá cá”. Ainda assim, muda-se a realidade social com histeria, cinismo e soberba ou com trabalho árduo e diuturno? Na política, o governo da polis, uma moeda de troca basal como são as “tartines” nos parece que sejam bem menos moralmente condenáveis do que nomeações para cargos em comissão, sobretudo quando se nomeiam pessoas que nada farão! Concordam?

Seria enfadonho, mas de fato eu poderia listar as muitas medalhas para cujas cerimônias de outorga já trabalhei e que fariam os senhores ou rirem incessantemente ou se revoltarem com profundidade. A realidade social brasileira, refrise-se, não se muda com achaques de “vestalismo”, ela se altera com nossa própria e incessante ação na sociedade, atribuindo a nós, antes de fazê-lo às instituições e ao “governo” – que como nos ensina o professor José Affonso da Silva, não é uma entidade alheia ao povo e também não é apenas composto pelo poder Executivo, e sim a união de todas as esferas e corpos da política institucional – atribuindo a nós mesmos o devir do Estado e da sociedade que queremos.

Quem honra uma honraria? Naquilo que historiograficamente chamamos de “Antigo Regime” e que tantas vezes aplicamos conceitualmente de modo improcedente a regimes políticos tão diversos, a fons honorum exclusiva era o rei, o monarca. No Estado Democrático de Direito, as honrarias devem ser consideradas moedas de dupla face, onde agraciado e agraciante estão sendo honrados. E mesmo no mal afamado “Antigo Regime” essa noção já existia, do contrário não haveria o adágio popular francês de que “à tout seigneur tout honneur”, ou seja, o mérito se reconhece a quem já o possui.

Se o mérito de um agraciado é duvidoso, existem hoje dezenas de mecanismos institucionais para impugnação dos atos concessivos. Será que de fato alguém se importa com isso? Em pequena pesquisa, no sistema legislativo eletrônico da Alerj, identifiquei que a resolução que concedeu a medalha Tiradentes ao antigo capitão policial militar Adriano Nóbrega foi revogada, em 2019. Fez-se o mesmo com as centenas de outras medalhas, títulos e diplomas concedidos a milicianos, chefes de quadrilha, diretores de empresas apenados? Não. É comum consultar-se as autorias e as justificativas dessas homenagens? Entende-se que parlamentares à esquerda ou à direita propõem mercês para tudo quanto é tipo de “gente de bem”, sobretudo com fins eleitoreiros? Também não.

Por favor, não percamos o tempo precioso da cidadania brasileira com os “medalhões”, de que nos falava nosso pai maior da literatura. Ele nos ensina que os ineptos serão sempre agraciados, tanto quanto os merecedores:

- Tu, meu filho, se me não engano, pareces dotado da perfeita inópia mental, conveniente ao uso deste nobre ofício. Não me refiro tanto à fidelidade com que repetes numa sala as opiniões ouvidas numa esquina, e vice-versa, porque esse fato, posto indique certa carência de ideias, ainda assim pode não passar de uma traição da memória. Não; refiro-me ao gesto correto e perfilado com que usas expender francamente as tuas simpatias ou antipatias acerca do corte de um colete, das dimensões de um chapéu, do ranger ou calar das botas novas. Eis aí um sintoma eloquente, eis aí uma esperança, No entanto, podendo acontecer que, com a idade, venhas a ser afligido de algumas ideias próprias, urge aparelhar fortemente o espírito. As ideias são de sua natureza espontâneas e súbitas; por mais que as sofreemos, elas irrompem e precipitam-se. Daí a certeza com que o vulgo, cujo faro é extremamente delicado, distingue o medalhão completo do medalhão incompleto.3

Finalizo com um excerto de discurso proferido por Sir Winston Leonard Spencer Churchill, discutindo justamente a entrega de honrarias, na Câmara dos Comuns, em 22/12/44. Ele cita inumeráveis comendas do serviço público civil e militar britânico, mas faz também um pequeno contexto sobre o ambiente específico da 2ª Guerra Mundial. A Churchill se atribui, como se sabe, o aforismo sobre condecorações: “não solicitar, não recusar, não exibir”. Segue o discurso: 

O objetivo de dar medalhas, estrelas e fitas é dar orgulho e prazer àqueles que as mereceram. Ao mesmo tempo, uma distinção é algo que todos não possuem. Se todos a têm, é de menos valor. Deve, portanto, haver azia e desilusões na linha da fronteira. Uma medalha reluz, mas também lança uma sombra. A tarefa de elaboração de regulamentos para tais prémios é uma tarefa que não admite uma solução perfeita. Não é possível satisfazer toda a gente sem correr o risco de não satisfazer ninguém. Tudo o que é possível é dar a maior satisfação ao maior número e ferir os sentimentos do menor número de pessoas. Mas essa é uma tarefa muito difícil e é fácil errar de um lado ou do outro. Há que ter cuidado em primeiro lugar para evitar a profusão. A tendência para expandir, devo dizer inflacionar, diluir a moeda através de motivos generosos, é muito forte. Quando a Ordem do Tosão de Ouro foi fundada, o seu primeiro lema foi "Não haverá outro" ("autre n'aurai"). Mas isto provou ser uma política demasiado austera para os imperadores, reis e heróis envolvidos, e o lema foi muito rapidamente alterado para uma forma muito menos autodenegada e sem compromisso, "Aceitei-a" ("Je l'ai empris").

As distinções alemãs têm sido geralmente muito generosamente atribuídas. Quando Voltaire foi convidado a visitar a Corte da Prússia, estipulou que todas as despesas deveriam ser pagas, e que a Ordem de Mérito deveria estar inclusa. Ambas foram concedidas. Assim, havia, antes de 1914, como é sabido, muitas medalhas e ordens alemãs. No entanto, durante a última guerra os alemães criaram cerca de 80 cruzes, medalhas e decorações diferentes, incluindo vários tipos para os diferentes Ducados e Principados, e cerca de 20 distintivos diferentes de carácter semelhante. No início da última guerra, a Cruz de Ferro era uma condecoração muito apreciada, mas em 1918 tinha sido concedida tão livremente que era pouco valorizada, exceto, creio, por Herr Hitler, que alegadamente a deu a si próprio algum tempo mais tarde. Após o Armistício, os alemães, que são um povo muito adaptável, fabricaram grandes números de Cruzes de Ferro para venda às tropas francesas como lembranças. Na guerra atual, já têm cerca de 15 novas medalhas e 29 novos distintivos. Ainda não chegaram à fase de as fabricar para venda aos Aliados.

Teria sido muito mais fácil deixar todo este assunto de um lado até que chegassem mais tempos de lazer. Por outro lado, esta guerra já se arrasta há 54 meses. Muitas campanhas famosas têm sido travadas, várias foram levadas a bom termo. Em muitas partes do mundo foi prestado um serviço dedicado e corajoso em terra, no mar, no ar. Vários milhões de soldados, marinheiros e aviadores foram enviados para o estrangeiro, onde permaneceram por longos períodos, suportando duras provações, prestando um serviço fiel e alcançando resultados esplêndidos. Eles valorizam muito a distinção que uma fita lhes confere.4

Eis, senhores, em apertada síntese, como no juridiquês é costume dizer, as razões pelas quais não somente aceitei a “honra ao mérito do livro”, da Biblioteca Nacional, como reitero que, em regime democrático, as “tartines” devem ser fruto de saudável compreensão do múnus público, sem a criação de bodes expiatórios e com mais assunção a compromissos cotidianos com a cidadania por parte de todos e cada um e não somente “dos outros”.

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1 As explicações do presidente da FBN se encontram em seu discurso. Disponível em: https://www.bn.gov.br/acontece/noticias/2022/07/medalha-biblioteca-nacional-retomada-honraria. Acesso em: 03 jul. 2022.

2 Ver ARGON, Maria de Fátima Moraes. A escrita de si no percurso biográfico de D. Isabel. In: ANTUNES DE CERQUEIRA, Bruno da Silva; ARGON, Maria de Fátima Moraes. Alegrias e Tristezas. Estudos sobre a autobiografia de D. Isabel do Brasil. São Paulo: Linotipo Digital e Instituto Cultural D. Isabel, 2019, p. 86.

3 MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Teoria do Medalhão. In: Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar 1994. v. II. Publicação original do texto ocorrida em 1881, na Gazeta de Noticias.

4 Disponível em: https://api.parliament.uk/historic-hansard/commons/1944/mar/22/war-decorations-and-medals. Acesso em 02 jul. 2022. Traduziu-se.

Bruno da Silva Antunes de Cerqueira
Advogado, historiador, especialista em Relações Internacionais, indigenista da Funai, gestor cultural.

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