Migalhas de Peso

A prática do crime de pirâmide por meio de criptoativos

Para alguns, o aumento de ocorrência do crime de pirâmide financeira por meio das chamadas criptomoedas decorre da falta de uma melhor regulamentação sobre o assunto pelo sistema financeiro.

5/7/2022

Embora haja projeto de lei tramitando no parlamento para a tipificação específica da pirâmide por meio de criptoativos, atualmente essa conduta pode ser subsumida ao tipo penal no art. 2º, IX, da lei 1.521/1951, que prevê:

“Art. 2º. São crimes desta natureza:

(...)

IX - Obter ou tentar obter ganhos ilícitos em detrimento do povo ou de número indeterminado de pessoas mediante especulações ou processos fraudulentos ("bola de neve", "cadeias", "pichardismo" e quaisquer outros equivalentes)”.

Trata o dispositivo da chamada exploração fraudulenta de credulidade pública, conduta criminalizada desde o Decreto-lei 869/1938, primeiro diploma legal que versava sobre os crimes contra economia popular.

O tipo tem como núcleos verbais “obter” e “tentar obter”, caracterizando-se como autêntico crime de atentado, em que o legislador iguala a reprovação entre a forma consumada e tentada e, dessa forma, ignora a diferença de pena que a modalidade tentada geralmente enseja.

Como explica Fabio Guaragni: “O objeto material da conduta consiste em ‘ganhos ilícitos’, obtidos em ‘detrimento’ – prejuízo – do povo, isto é, número indeterminado de pessoas. (...) Se o objeto material da conduta – ganhos ilícitos – depende da concorrência dos meios apontados em lei, é dizer, serão ilícitos os ganhos obtidos mediante especulações ou processos fraudulentos, importa descartar o que eles são. Com efeito, são processos fraudulentos aqueles capazes de ilaquear a boa-fé das pessoas, induzindo-as ou mantendo-as em erro. Daí dizer Elias de Oliveira que o artigo prevê uma espécie de estelionato contra um indeterminado número de pessoas.1”.

A incriminação apoia-se sobretudo na especulação ou processos fraudulentos que pressupõem atuação ilusória do agente acerca do negócio jurídico encetado, além da boa-fé, ingenuidade e ignorância das vítimas.

A fraude é praticada mediante algum artifício (objetos, artefatos ou máquinas), ardil (conversas mentirosas e enganosas) ou qualquer outro modo que engane a vítima de modo a induzi-la ou mantê-la em erro e convencê-la a celebrar o suposto negócio.

Os elementos normativos do tipo “especulação ou processo fraudulentos” permitem uma abrangência típica apta a subsumir uma gama grande de comportamentos ilícitos, o que nos leva a caracterizar este como sendo um crime de ação livre, ou seja, que pode ser praticado por qualquer meio de execução.

O dispositivo indica ainda dois meios de obtenção de ganhos ilícitos: mediante especulações ou por via de processos fraudulentos.

A especulação deve ser entendida como cobrança de preços exorbitantes que vise a lucros extraordinários em razão das condições da mercadoria, geralmente escassa ou extinta, mas revestido de ilicitude.

O processo fraudulento deve ser entendido como conjunto de atos enganosos que viciam a percepção da vítima de modo conferir-lhes uma aparência de licitude. As várias espécies de golpes contidas na parte final do tipo penal serve para, exemplificativamente, identificar aqueles mais conhecidos à época da edição da lei 1.521/1951, e por isso não esgota rol de condutas criminosas. Por isso já se reconheceu caracterizado o delito na conduta do comerciante que fecha seu posto de gasolina antes da hora habitual só para poder locupletar-se com o aumento no preço dos combustíveis (TACrimSP, Ap. 765151, Rel. Eduardo Pereira).

A prática conhecida como pirâmide financeira caracteriza o crime em estudo, porque se insere no conceito de cadeia acima descrito. Também conhecido como esquema Ponzi2 ou pichardismo, é um sistema reintefrativo que, segundo José Geraldo da Silva advém do golpe aplicado pelo italiano Manoel Severo Pichardo, caracteriza-se pela falsa promessa de restituição do dinheiro da venda de produtos após algum tempo, o que não ocorre, lesando o patrimônio coletivo e possibilitando ganho excepcional para o organizador da fraude3.

Trata-se de um “modelo de negócio” necessariamente insustentável, caracterizado (i) pela remuneração percebida pelos seus participantes baseada principalmente na quantidade de pessoas recrutadas à rede e na venda de produtos a essas pessoas; (ii) na existência de alto volume de estoque, com quantidade de produtos superior à possibilidade de venda; e (iii) baixo índice de venda no varejo. Como sintetiza Francisco Dirceu de Barros, “O modus operandi é simples, consiste na promessa fraudulenta, ao comprador, do fornecimento de determinada mercadoria, depósito de valor, acesso a site e, após algum tempo, restituir-lhe os valores pagos com muitos lucros, em sistema de "pirâmide" em que todos vão ficar ricos, milionários, em pouco tempo4”. O esquema se baseia assim no crescimento permanente da base do investimento de modo que os novos participantes financiam os mais antigos. Mas devido a inexistência de rendimentos reais e exigência de um inviável e progressivo aumento dessa base de investimento, a estrutura é incapaz de existir por muito tempo o que resulta no seu colapso e causação de prejuízos para um número significativo de pessoas.

Neste sentido, já se decidiu: “O ganho ilícito em detrimento de número indeterminado de pessoas, denominado ‘pirâmide’, encaixa-se na modalidade ‘cadeia’ do art. 2.º da Lei 1.521/51, pois sua formação é ad infinitum e a cada momento, cada partícipe surge como iniciador de nova pirâmide, porém à sua caracterização é necessária a verificação da fraude, do ardil engendrado e sua prática pelo acusado” (TACrimSP, RO 635.827, Rel. Marrey Leto).

Ainda: A Turma negou provimento a recurso de apelação interposta por réu condenado pela prática de crime contra a economia popular. Segundo a Relatoria, o acusado distribuía panfletos em via pública com propaganda de sistema conhecido por ‘pirâmide financeira’, em que uma pessoa convida outra, e assim sucessivamente, para realizar doação de módica quantia, prometendo, em contrapartida, lucros exorbitantes aos integrantes do grupo. Nesse contexto, a Julgadora explicou que a conduta de tentar obter ganhos ilícitos em detrimento do povo ou de número indeterminado de pessoas mediante especulações ou processos fraudulentos constitui crime contra a economia popular (art. 2º, inciso IX da lei 1.521/1951). Para os Julgadores, a ‘pirâmide financeira’ constitui método de captação de recursos voltado para ludibriar eventuais incautos mediante a promessa de ganho fácil que jamais se concretizará, a não ser em benefício daquele que encabeça o grupo. Dessa forma, ao reconhecer a ilicitude e reprovabilidade da conduta, o Colegiado confirmou a condenação pela prática de crime contra a economia popular. Acórdão n.524839, 20080310223220APJ, Rel. Diva Lucy De Faria Pereira, 1ª T. Recursal dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais do DF. J. 02/08/2011, p. no DJE: 08/08/2011. Pág.: 175.

Para alguns, o aumento de ocorrência do crime de pirâmide financeira por meio das chamadas criptomoedas decorre da falta de uma melhor regulamentação sobre o assunto pelo sistema financeiro, informalidade que cria um atrativo maior para os incautos e permite uma manipulação informacional ainda maior dos operadores do esquema.

______________

1 GUARAGNI, Fabio André. Cambismo nos Espetáculos Desportivos: afronta à proteção do consumidor e ao desenvolvimento socioeconômico. Revista de Direito do Consumidor. vol. 93/2014. p. 131 – 155. Maio - Jun / 2014. DTR\2014\2102. p. 11.

2 Nome pelo qual o sistema de pirâmide financeira é conhecido nos Estados Unidos, cujo nome remete ao imigrante italiano Charles Ponzi, na década de 1920.

3 SILVA, José Geraldo da; GENOFRE, Fabiano; LAVORETI, Wilson. Leis Penais Especiais Anotadas. Campinas: Millenium, 2002. p.232.

4 BARROS, Francisco Dirceu. O crime de pichardismo: golpe na net atrai milhares de pessoas. In: https://franciscodirceubarros.jusbrasil.com.br/artigos/121941072/o-crime-de-pichardismo-golpe-na-net-atrai-milhares-de-pessoas. Acesso em 23 out 2021.

Renee do Ó Souza
Membro do Ministério Público de Mato Grosso. Pós-graduado e mestre em Direito. Professor universitário.

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