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Big Data e lançamento tributário: novas perspectivas do processo e do procedimento administrativo fiscal

Apesar do CTN utilizar o termo procedimento, o decreto 70.235/72, que rege o PAF no âmbito Federal, adota o termo processo.

28/6/2022

No Brasil, a internet foi implementada em 1989, por meio da Rede Nacional de Ensino e Pesquisa. Seis anos mais tarde, a oferta de linhas discadas possibilitou o início da exploração comercial. Do ponto de vista constitucional, o país precisa lidar com o desafio de conciliar uma Carta extremamente analítica com um instrumento difundido após à promulgação da Constituição vigente. Quanto ao CTN, o desafio é quatro vezes maior, em razão dos 29 anos que o separa da era da internet. 

É perfeitamente compreensível que um texto redigido e aprovado na época em que os Beatles e Roberto Carlos ocupavam os primeiros lugares nas rádios tenha dificuldade em determinar qual tributo incide sobre streamings de música. O CARF e a Secretária da Receita Federal sequer existiam. A continuidade da guerra fiscal, já disputada na época do Imposto de Vendas e Consignações, era uma possibilidade pessimista demais para a Comissão Especial do CTN não receber com grande expectativa a criação do Imposto sobre Circulação de Mercadorias.

Nesta estranha, porém não tão antiga, realidade, o CTN estabeleceu, em seu art. 142, que:

Art. 142. Compete privativamente à autoridade administrativa constituir o crédito tributário pelo lançamento, assim entendido o procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo caso, propor a aplicação da penalidade cabível.

Parágrafo único. A atividade administrativa de lançamento é vinculada e obrigatória, sob pena de responsabilidade funcional.

Apesar do CTN utilizar o termo procedimento, o decreto 70.235/72, que rege o PAF no âmbito Federal, adota o termo processo. Além da legislação, a doutrina também diverge a respeito da utilização e distinção dos termos procedimento e processo administrativo fiscal. Cabe ressaltar que o debate sobre o tema não se trata de mera predileção por um termo específico, mas do reconhecimento de uma fase administrativa única ou de duas fases distintas: uma inquisitorial e outra que permite maior participação do contribuinte.

A fase inquisitorial, ou procedimento, consiste em uma série de situações administrativas que não se submetem à incidência do Princípio do Devido Processo Legal. Por sua vez, o termo processo refere-se ao momento que se inicia quando o contribuinte apresenta à administração tributária seu pedido de revisão, devendo ser observado o direito à ampla defesa e ao contraditório.

De maneira geral, o PAF (seja ele procedimento ou processo administrativo fiscal) rege a determinação e exigência dos créditos tributários e o controle da legalidade dos atos administrativos de exigência fiscal. É o instrumento pelo qual a administração tributária verifica a ocorrência do fato gerador, e torna o crédito líquido, certo e exigível, por meio do lançamento tributário.

No sistema tributário brasileiro, a classificação das modalidades do lançamento é atribuída de acordo com o grau de participação da administração tributária e do contribuinte. Conforme o texto do CTN, o lançamento pode ser de ofício, por declaração ou por homologação.

O procedimento ocorre de ofício, nos termos do art. 149 do CTN, quando o lançamento é efetuado nas hipóteses em que cabe à administração tributária proceder de ofício ao lançamento e ou em casos nos quais cabe à mesma autoridade efetuar a revisão do lançamento anteriormente realizado. Nos moldes do referido artigo, não se trata apenas de um procedimento originário, mas também de uma hipótese de procedimento revisional, cabível quando o lançamento originário tiver sido realizado em desconformidade com o CTN. O IPTU e o IPVA são conhecidos exemplos de tributos sujeitos ao lançamento de ofício.

No lançamento por declaração, previsto pelo art. 147 do CTN, a constituição do crédito resulta de uma atuação conjunta do contribuinte com a administração tributária. O contribuinte fornece informações à administração tributária, que apura o montante devido e constitui o crédito tributário. A comunicação da transação, no caso do ITBI, e da utilização da terra, no caso do ITR, são tributos sujeitos ao lançamento por declaração.

O último e mais conhecido lançamento, em razão do IR, é o lançamento por homologação. Apesar da “declaração” de IR, a hipótese de lançamento prevista pelo art. 150 do CTN não se confunde com o lançamento por declaração do art. 147 do CTN. As principais diferenças entre as duas hipóteses são a constituição do crédito e o pagamento. No lançamento por declaração o contribuinte apenas transmite informações à administração tributária. No lançamento por homologação, o contribuinte apura o montante devido, constitui o crédito e recolhe o tributo previamente, cabendo à administração tributária “homologar” em até cinco anos, ou realizar a revisão de ofício prevista pelo art. 149 do CTN.

Na prática, o grau de participação na apuração do crédito não importa apenas para classificar o lançamento, mas também para consumir em média 1.958 horas e R$ 60 bilhões gastos com a complexidade tributária do Brasil.

Em 1966, quando o dinheiro era predominantemente físico e o pagamento era efetuado “em moeda corrente, cheque ou vale postal”, era justificável a administração tributária impor ao contribuinte o dever de conhecer e cumprir todas as obrigações acessórias previstas pela legislação tributária. Atualmente, o internet banking, as criptomoedas e a popularização do PIX e das máquinas de cartão de crédito e débito fazem com que seja cada vez menos plausível exigir que o contribuinte assimile mais de 3.790 normas tributárias.

Nos tempos atuais, a constante circulação e armazenamento de dados torna cada vez mais difícil segregar as transações monetárias e as declarações fornecidas à administração tributária. Quanto mais as transações se tornam digitais, menos vai tendo importância a vontade do contribuinte de declarar ou não seus tributos. À época da aprovação do CTN, o ato declaratório era consciente, ainda que não inteiramente voluntário. Hoje, mesmo que inconsciente, ocorre em tempo real.

A quantidade e a velocidade dos dados transacionados diariamente pelos contribuintes permitem que a administração tributária tenha acesso direto e constante à um imensurável volume de dados – denominado Big Data.

O termo Big Data refere-se à um grande volume de dados gerados por pessoas, empresas e equipamentos. Para que a coletividade de dados seja caracterizada como Big Data, é necessário observar a existência de três V’s: Volume, Velocidade e Variedade. Uma variedade de dados, coletados em grande volume e transmitidos em tempo real.

De acordo com o professor Marco Aurélio Greco, o Big Data é um conjunto intangível, constituído pela informação e pelo processamento da informação. Não apenas a coleta dos dados, mas também sua organização e catalogação, possibilitando a criação de um novo conhecimento ou produto. Para o autor, o termo trata da habilidade de utilizar a informação para fazer o que outros não conseguem.

Conforme a definição do Big Data, apesar do termo estar mais ligado à coleta e armazenamento de dados, é inevitável não relacionar o objeto ao seu propósito: a análise e processamento dos dados.

A análise do Big Data, denominada Data Analytics, ou, no caso da administração tributária, Audit Analytics, consiste em uma célere análise integral de informações financeiras dos contribuintes, qual fornece importantes diagnósticos para auxiliar na tomada de decisão. Combinando o Big Data com Audit Analytics, é possível realizar análises em intervalos menores, viabilizando auditorias contínuas.

Em um primeiro momento, é compreensível que a possibilidade da realização de auditorias contínuas cause uma certa repulsa. Livros e filmes, sejam eles históricos ou de ficção científica, sempre alertaram para o risco de institucionalizar a violação da intimidade e da privacidade. Ocorre que não se trata mais de um exemplo de episódio histórico ou enredo científico e sim, da realidade atual.

Independentemente do direito à inviolabilidade do sigilo e da intimidade, previstos pelos incisos X e XII do art. 5º da CF/88, os dados pessoais já são utilizados e inclusive comercializados sem o consentimento do usuário, resguardado pelo art. 7º, I da LGPD. Com o crescimento e popularização das redes sociais, é cada vez mais difícil distinguir quando o dado não é divulgado publicamente e quando o dado se enquadra na exceção de necessidade do consentimento de que trata o art. 7º, § 4º da LGPD.

O volume e a importância dos dados coletados pelas redes sociais são tão substanciais que hoje o dado se tornou um bem, mesmo que intangível, conforme ressaltado pelo professor Marco Aurélio Greco. Discute-se inclusive a possibilidade de tributar o dado enquanto riqueza, tendo em vista seu valor para empresas interessadas em engajar mais o consumidor para potencializar os lucros. Entretanto, apesar da “comoditização” dos dados e de seu indiscutível valor para o mercado, não são apenas empresas que utilizam dados pessoais para melhorar a performance.

A Receita Federal afirmou, em mais de uma oportunidade, que a administração tributária já utiliza as redes sociais para coletar informações sobre possíveis sonegadores, que ostentam bens, mas os omitem da declaração de ajuste anual. Entre as práticas mais comuns identificadas pela Receita, a que predomina é a de alienar bens para que não sejam penhorados em caso de dívida fiscal.

No atual cenário, onde todos que entregam o ajuste anual são fiscalizados além da declaração, parece cada vez menos fazer sentido que o contribuinte invista em softwares de contabilidade. Independentemente se a Comissão Especial do CTN aprovou o texto dos arts. 147 a 150 do CTN porque não havia possibilidade de fiscalizar com a mesma sofisticação do Big Data e Audit Analytics, ou por escolher prestigiar a confiança no contribuinte, é necessário repensar a necessidade de continuar a exigir que os brasileiros continuem a gastar tanto tempo e dinheiro com auditoria privada.

Para o professor Richard Thaler, ganhador do prêmio Nobel de Economia em 2017, regras só são eficazes se forem plausíveis, isto é, se o regulado for convencido de que a regra é razoável. O professor Miguel Reale, por sua vez, esclarece que a norma é a indicação de um caminho, partindo de um fato, rumo a determinado valor. Dito isto, qual o valor e/ou plausibilidade de uma regra que obriga o contribuinte a gastar várias horas e bilhões de reais para fornecer informações que a administração tributária já é capaz de obter por meios mais céleres? O questionamento se torna ainda mais problemático ante o fato da racionalidade do contribuinte estar intrinsicamente ligada à consciência fiscal.

De acordo com John Scholz e Neil Pinney, professores de ciência política, o risco subjetivo de ser autuado pela administração tributária está mais relacionado à consciência fiscal do que com fatores de risco objetivo. Em outras palavras, contribuintes com consciência fiscal mais desenvolvida tendem a superestimar o risco de serem autuados. Por outro lado, contribuintes com menor consciência fiscal e maior tentação de sonegar tendem a tomar decisões mais racionais, buscando comparar possível ganho monetário com o risco objetivo de ser autuado.

Aliada ao comportamento do contribuinte, a manutenção da exigência de informações cada vez menos essenciais para a administração tributária (pelo menos do ponto de vista da autuação) faz com que o risco de auditoria seja potencializado, podendo reduzir a consciência fiscal dos adimplentes e possibilitar que sonegadores tenham oportunidade de praticar qualquer irregularidade.

No Brasil, o cruzamento de dados deve otimizar também a declaração, não apenas a fiscalização. Se a administração tributária já possui meios de identificar a real propriedade de um bem, por que não desenvolver e aplicar a declaração como um procedimento? Ao contribuinte caberia apenas se manter inerte, em caso de anuência, ou impugnar o resultado da auditoria administrativa, dando origem a um processo.

Entretanto, se o CTN dispõe expressamente que o lançamento é obrigatório, privativo e vinculado à autoridade administrativa tributária, como pode ser transferida para o contribuinte a discricionariedade de constituir ou não o crédito tributário?

Primeiramente, é necessário explicar que há um problema semântico com o termo “lançamento”. De acordo com o professor Paulo de Barros Carvalho, o termo era originalmente voltado para o uso técnico-comercial-contábil, podendo ser: I) ação ou; II) efeito de escriturar uma verba em livros de escrituração comercial; III) a própria verba que se escritura; e IV) efetuar o cálculo, conferir liquidez a um crédito ou débito.

Quando o termo foi incorporado à doutrina e aos textos legais, foram acrescentados seis novos significados: V) procedimento administrativo da autoridade competente, processo, com o fim de constituir o crédito tributário mediante a postura de; VI) um ato-norma administrativo, norma individual e concreta, produto daquele processo; VII) procedimento administrativo que se integra com o ato-norma administrativo de inscrição em dívida ativa; VIII) ato-fato administrativo derradeiro da série que se desenvolve um procedimento com o escopo de formalizar o crédito tributário; IX) atividade material do sujeito passivo de calcular o montante do tributo devido, juridicizada pela legislação tributária, da qual resulta uma; X) norma individual e concreta expedida pelo particular que constitui o crédito tributário no caso dos chamados “lançamentos por homologação”.

Com tantas definições, surgem três dúvidas: I) o lançamento é a auditoria, a constituição do crédito ou ambos? II) o que é privativo da administração tributária é a auditoria, a constituição do crédito ou ambos?; III) nas hipóteses de lançamento por declaração e por homologação, pode o contribuinte ser responsabilizado funcionalmente, mesmo quando não pertencer à administração tributária?

Para o professor Paulo de Barros Carvalho, é necessário interpretar o termo à luz do art. 142 do CTN, adotando a 5ª definição: procedimento administrativo da autoridade competente, processo, com o fim de constituir o crédito tributário.

No Brasil de 1966, quando não havia internet nem Big Data, as hipóteses de lançamento por declaração e por homologação já eram bastante peculiares. Atualmente, com a possibilidade de coleta e transmissão em tempo real de um grande volume de dados, as hipóteses são ainda mais estranhas. Apesar das hipóteses de lançamento previstas pelos arts. 147 e 150 do CTN, a realidade criada pelo Big Data se aproxima muito mais do lançamento de ofício, mesmo que por revisão.

Desta forma, por que não aplicar Big Data e Audit Analytics, para desenvolver uma auditoria contínua e estruturada, economizando tempo e dinheiro do contribuinte com consciência fiscal mais desenvolvida e diminuindo as chances de sucesso do contribuinte tentado a sonegar?

Por fim, ante as reflexões sobre a possibilidade de automação das declarações e do cumprimento das obrigações acessórias, resta avaliar as possibilidades de defesa do contribuinte.

O art. 151, III do CTN estabelece que:

art. 151. Suspendem a exigibilidade do crédito tributário:

III - as reclamações e os recursos, nos termos das leis reguladoras do processo tributário administrativo;

Mesmo após a utilização do Big Data e Data Analytics pela administração tributária, caso o contribuinte impugne o crédito tributário, conforme, por exemplo, prevê o art. 15 do decreto 70.235/72, ele não poderá ser cobrado sem a resolução da controvérsia.

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Pedro Henrique Vieira Greca Monteiro
Advogado formado pelo IBMEC/RJ e pesquisador na área de Finanças Comportamentais. Autor do livro "Tributário Cognitivo Comportamental - Introdução ao Tema"

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