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Afinal, quem pode pedir recuperação judicial?

Em suma, clareza e a estabilidade do regime de insolvência, reforçadas por uma jurisprudência uniforme, permitem aos agentes econômicos avaliarem corretamente a dimensão dos riscos padecidos por seus créditos no contexto da crise empresarial, já os precificando ex ante.

27/6/2022

A lei 11.101/05 cria uma microssistema excepcional para a regulação da situação de crise por meio das ferramentas de recuperação judicial, extrajudicial e falência. Desse modo, as disposições preliminares da legislação são taxativas ao fixar o universo de agentes que podem acessar as benesses da lei:

Art. 1º. Esta Lei disciplina a recuperação judicial, a recuperação extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária, doravante referidos simplesmente como devedor.

Art. 2º. Esta Lei não se aplica a:

I – empresa pública e sociedade de economia mista;

II – instituição financeira pública ou privada, cooperativa de crédito, consórcio, entidade de previdência complementar, sociedade operadora de plano de assistência à saúde, sociedade seguradora, sociedade de capitalização e outras entidades legalmente equiparadas às anteriores”.

As alterações advindas da lei 14.112/20, apesar de substanciais para a consolidação de diversas questões, não promoveram quaisquer alterações nas disposições preliminares do capítulo I da lei 11.101/05, fato esse que, consequentemente, impôs a tarefa de dirimir os embates e celeumas postas à prova ao poder Judiciário.

Nessa perspectiva, é notório que um sistema de insolvência se destina a ofertar ferramentas de superação de uma crise econômica – seja pelo soerguimento ou célere liquidação dos ativos para pagamento dos credores.

Ao longo dos anos, é possível colacionar decisões que promoveram a extensão do acesso ao instituto da recuperação judicial às sociedades cooperativas, associações e fundações, devidamente fundamentadas pela caracterização de sua organização, geração de empregos e receita gerada.

Várias dessas entidades têm significativa importância social e econômica: são em geral hospitais beneficentes que atendem a milhares de pacientes ou universidades com corpos docentes e discentes significativos. A sua insolvência ameaça a continuidade de atividades, sendo imprescindível buscar soluções para sua preservação. Além disso, sua liquidação desordenada tampouco atenderia ao interesse de seus credores. Portanto, observa-se que a pioneira jurisprudência ampliativa do modelo concursal brasileiro, nasce, justamente, na necessidade social de enfrentamento da crise pelas organizações, independentemente de sua forma jurídica.1

Seja entusiasta ou antagonista aos entendimentos recentes, o fato é que o descompasso entre a legislação e a jurisprudência, bem como as dificuldades inerentes à adequação da norma recuperacional aos “novos casos”, pode acarretar insegurança jurídica a uma situação de crise, refletindo, diretamente, na possibilidade de soerguimento da entidade.

Sob esse prisma, orienta Paulo Fernando Campos Salles de Toledo (2021)2:

“[...] o direito concursal propicia procedimentos e soluções perfeitamente compatíveis para a superação da crise organizacional. Mas não se pode olvidar que a aplicação da lei não se pode se fazer em fatias ou pedaços: aqueles que defendem a possibilidade de requerer recuperação judicial de organizações quase-empresariais, têm, por coerência, de aceitar sua ampla sujeição falimentar, inclusive no que toca aos regimes de responsabilização, às ações revocatórias, e também aos crimes falimentares. De outra parte, não se podem admitir recuperações ou falências que contrariem as vedações cogentes do inciso II do artigo 2º. Ali tem-se sociedades empresárias, que pela natureza de sua atividade e objeto, foram proibidas de se servir do regime da Lei, por razões de política pública a que deve reverência o Poder Judiciário”.

(Sem grifo no original)

Em suma, clareza e a estabilidade do regime de insolvência, reforçadas por uma jurisprudência uniforme, permitem aos agentes econômicos avaliarem corretamente a dimensão dos riscos padecidos por seus créditos no contexto da crise empresarial, já os precificando ex ante.

Diante dessa realidade fática e jurídica, conforme elucidado no tópico posterior, observa-se uma recente movimentação jurisprudencial no sentido de incluir agentes econômicos no rol de sujeitos da lei 11.101/05, com base em uma interpretação teológica, refere-se à finalidade almejada pela norma, ao suscitar a relevância econômica e social da manutenção daquelas atividades.

Adicionalmente, pontua a doutrina moderna3, que ainda que de forma mais tímida, o legislador tem elaborado projetos que buscam criar mecanismos para amparar os agentes excluídos pela Lei Recuperacional em caso de crise econômico-financeira, sendo que nenhuma das propostas recomenda a alteração da lei concursal de modo a ampliar o rol de devedores com direito ao pedido de recuperação judicial. À vista disso, alerta-se:

“[...] diante da provada relevância econômica e social de outros agentes que não apenas empresários e sociedades empresárias, é urgente uma reforma legal de modo a ampliar o rol de sujeitos com direito à recuperação judicial a fim de revisar os requisitos necessários ao acesso à lei. Até lá, deve-se ver com bastante cautela as decisões que autorizem o acesso ao benefício da recuperação judicial a devedores não abrangidos pelo Art. 1º e Art. 2º da Lei 11.101/2005 de modo a não prejudicar o fluxo de crédito no país, em especial, a outros agentes da mesma natureza”.

Os agentes legitimados para acessar os institutos da lei 11.101/05

Como lição histórica de José Xavier Carvalho de Mendonça: “Lei perfeita sobre essa matéria não existe”.4 À luz dessa premissa, é possível traçar uma breve análise acerca dos entendimentos dos tribunais pátrios que contribuíram para a expansão do rol dos agentes legitimados para acessar as benesses do sistema de insolvência empresarial brasileiro.

Na segunda quinzena de maio do corrente ano, o STJ fomentou o debate acerca dos legitimados ativos para a recuperação judicial ao firmar o primeiro precedente envolvendo o tema da incorporação imobiliária no contexto da recuperação judicial. Por unanimidade, os ministros confirmaram a decisão do TJ de São Paulo que havia afastado a recuperação judicial de incorporadoras, sob o formato de SPE – Sociedade de Propósito Específico.5

Nesse sentido, em análise pormenorizada da fundamentação, o decisum trouxe preciosas lições para área, dentre elas, a ausência de óbices ao processamento de recuperação judicial de SPE6, desde que inexistente o regime de patrimônio de afetação, senão vejamos:

“[...] conquanto a LREF tenha como princípio a preservação da empresa, dando a ideia de que se dirige a atividades com características de perpetuidade, não veda a sua concessão a sociedades constituídas por prazo determinado, como é o caso das SPEs. A atividade empresarial será prestigiada enquanto perdurar, gerando empregos, beneficiando consumidores e recolhendo tributos. É oportuno mencionar, ademais, que a atividade de incorporação se desenvolve como um todo. Finalizada uma obra, outra é iniciada, muitas vezes com os mesmos trabalhadores e fornecedores.

Sob essa perspectiva, trata-se de uma atividade contínua. Não bastasse isso, o deferimento do processamento da recuperação judicial não significa que a atividade conseguirá se soerguer, nem tampouco que, mesmo recuperada, será mantida posteriormente por seus titulares, o que não obsta que lhe seja concedida a recuperação. Assim, não parece haver impedimento para o pedido sob esse fundamento.

[...] No caso de a sociedade de propósito específico não administrar patrimônio de afetação, não há, a princípio, óbice para a novação dos créditos, sendo vedado apenas estruturar a recuperação em consolidação substancial”.

Assim, o caso em tela se une as últimas decisões no âmbito do universo de legitimados a propor a recuperação judicial, pautadas, em sua grande maioria, nas implicações sociais e poder econômico dessas – grandes – entidades não empresariais, o que justificaria o avanço para além da letra da lei.

À luz da jurisprudência ampliativa, cita-se, ainda, a notória decisão da 6ª câmara cível do TJ do Rio Grande do Sul, que admitiu o deferimento da recuperação judicial da Aelbra – Associação Educacional Luterana do Brasil – caso Ulbra (Apelação Cível n° 5000461-37.2019.8.21.0008/RS, relator Des. Niwton Carpes da Silva, j. 13.12.2019).

No caso em questão, em síntese, ocorrera a transformação da associação civil sem fins lucrativos em sociedade anônima, com registro na junta comercial, alguns meses do ajuizamento do pedido. O relator enfatiza que as atividades eram as mesmas que vinham sendo prestadas antes do registro, afirmando o preenchimento de dois anos de atividade posta no art. 48. Enfatizou-se a excepcionalidade do caso, em que a universidade tem 60 mil alunos, gera quatro mil empregos diretos e 100.000 indiretos, e presta serviços assistenciais das mais variadas naturezas a mais de um milhão de pessoas.7

Outrossim, considerando-se o cenário de crise e impactos econômicos gerados pela atividade, em decisão emblemática proferida nos autos 5024222-97.2021.8.24.0023/SC pelo TJ-SC o Figueirense Futebol Clube se tornou o primeiro clube a protocolar um plano de recuperação extrajudicial perante o poder Judiciário.

Dessarte, à luz da análise econômica da questão, constata-se que a influência jurídica - das leis 14.193/21 e 11.101/05 - a partir da ampliação do rol de legitimados dos instrumentos de recuperação extrajudicial e judicial, pode ser eficaz não apenas para contribuir na profissionalização dos clubes esportivos brasileiros e superação de crises econômicas sanáveis, como também na manutenção de um dos objetos de maior afeição da sociedade brasileira.8

Isto posto, à título de considerações finais, denota-se que o campo da insolvência empresarial é um direito vivo, em constante adequação e modernização com vistas ao aprimoramento das soluções de enfrentamento às crises econômicas e financeiras da sociedade contemporânea.

Em que pese não exista uma legislação perfeita sobre a matéria, é salutar que a compreensão e análise dos precedentes ampliativos promove a efetiva aplicação da análise econômica do direito pelos tribunais brasileiros, fundamentando-se nos impactos sociais e grande peso econômico das entidades não empresariais.

_____

1 TOLEDO, Paulo Fernando Campos Salles de. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas [livro eletrônico] / Paulo Fernando Campos Salles de Toledo, coordenador. – 1ª ed. - São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021.

2 Idem.

3 MENDES, Hugo Cavalcanti Vaz. A expansão do universo de sujeitos da recuperação judicial considerando a finalidade e princípios do instituto. In: SACRAMONE, Marcelo Barbosa; NUNES, Marcelo Guedes. Direito societário e recuperação de empresas: estudos de jurimetria. São Paulo: Editora Foco, 2021.

4 CARVALHO DE MENDONÇA, José Xavier. Tratado de Direito Comercial Brasileiro, 5ª. Edição. São Paulo: Livraria Freitas Bastos, 1954, Vol VII.t

5 Inédito: STJ afasta recuperação judicial de incorporadora imobiliária. Migalhas, São Paulo, 17 de maio de 2022. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/366195/inedito-stj-afasta-recuperacao-judicial-de-incorporadora-imobiliaria. Acesso em: 21 mai 2022.

6 Sociedade de Propósito Específico, conforme denota sua própria nomenclatura, é uma pessoa jurídica constituída com uma finalidade restrita de executar um determinado propósito ou projeto, devendo assumir uma das formas de sociedade previstas no ordenamento jurídico brasileiro.

7 TOLEDO, Paulo Fernando Campos Salles de. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas [livro eletrônico] / Paulo Fernando Campos Salles de Toledo, coordenador. – 1ª ed. - São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021.

8 CABRAL FILHO, Gustavo A. Heráclio; JAYME, Diogo Siqueira; MOURA, Letícia Marina da S.; TULIO, Alexandry Chekerdemian Sanchik. A regra é clara! Um breve olhar sobre a recuperação judicial dos clubes de futebol. Portal Migalhas, 9 de abril de 2022. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/363474/um-breve-olhar-sobre-a-recuperacao-judicial-dos-clubes-de-futebol. Acesso em: 8 jun. 2022.

Letícia Marina da S. Moura
Advogada e jornalista. Especialista em Direito Empresarial e Falência e Recuperação de Empresas. Membro do Grupo de Estudos Avançados em Processo Recuperacional e Falimentar da Fundação Arcadas/USP.

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