Da origem do latim “usus fructos”, que significa “uso dos frutos”, o usufruto é um direito real outorgado pelo proprietário – que se torna, por consequência, nu proprietário - ao usufrutuário a fim de que este possa exercer as faculdades de usar e fruir da coisa. No caso de um bem imóvel, a constituição do usufruto ocorre com o registro do título na matrícula do imóvel.
Em termos práticos, tal ato possibilita que o usufrutuário possa usar o local e aproveitar de seus frutos, mesmo que não seja o proprietário. Esse direito pode ser temporário ou vitalício.
Mas afinal, neste caso, de quem será a responsabilidade pelo pagamento do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU)?
Conforme preceitua a Constituição Federal, o núcleo da hipótese de incidência do IPTU é a propriedade, a posse ou o domínio útil do imóvel, razão pela qual os sujeitos passivos do referido imposto serão o proprietário, o possuidor ou o titular de domínio útil.
Neste ínterim, por muito tempo, o entendimento jurisprudencial seguiu no sentido de que, em se tratando de imóvel gravado com usufruto integral e vitalício, o usufrutuário é quem ostenta, com exclusividade, o direito de usar e fruir do bem (ou seja, possuidor do domínio útil), sendo que o nu-proprietário fica totalmente privado da posse direta do bem, e, por consequência, isento de responsabilidade pelo pagamento do IPTU.
Tal percepção teria respaldo nos artigos 34 do Código Tributário Nacional e 1.043 do Código Civil, os quais dispõem, in verbis:
Art. 34. Contribuinte do imposto é o proprietário do imóvel, o titular do seu domínio útil, ou o seu possuidor a qualquer título.
Art. 1.403. Incumbem ao usufrutuário:
(...) II - as prestações e os tributos devidos pela posse ou rendimento da coisa usufruída.
O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (“TJ/SP”), a exemplo, vem seguindo há anos essa compreensão:
“Tributário. IPTU (exercícios de 2003 a 2007). Processo de execução fiscal extinto sem resolução do mérito, com fundamento na ilegitimidade passiva (artigo 267, inciso VI, do Código de Processo Civil), em seguida a pedido de inclusão no polo passivo dos donatários do imóvel tributado, sobre o qual os doadores reservaram usufruto vitalício. Pretensão à reforma. Cabimento parcial. O usufrutuário é sujeito passivo do IPTU, não se cogitando, segundo precedentes do Superior Tribunal de Justiça, de solidariedade passiva entre ele e o nu proprietário. (...).”
(TJSP. 18ª Câmara de Direito Público. Apelação nº 0502942-54.2008.8.26.0361; rel. Des. Mourão Neto; j. 12/09/2013).
Agravo de instrumento – Execução fiscal– IPTU – Exercícios de 2014 a 2017 – Executado que figurou como proprietário e, posteriormente, como usufrutuário do bem gerador do débito - Faculdade de o Município-exequente eleger o sujeito passivo com vistas a facilitar o procedimento de arrecadação – Súmula 399, do C. STJ em consonância com art. 34, do CTN e art. 1.245, do Código Civil – Aplicação ao caso do decidido no REsp 1.111.202/SP, sob o regime dos repetitivos – Usufrutário que detém legitimidade passiva para figurar no polo passivo da execução de IPTU – Inteligência dos arts. 1.394 e 1.403 do CC c.c art. 34 do CTN- Decisão mantida – Agravo desprovido.
(TJ-SP - AI: 21250544420208260000 SP 2125054-44.2020.8.26.0000, Relator: Roberto Martins de Souza, Data de Julgamento: 14/10/2020, 18ª Câmara de Direito Público, Data de Publicação: 14/10/2020)
APELAÇÃO CÍVEL – Ação Declaratória de Inexistência de Relação Jurídico-Tributária e Anulatória de Débitos – IPTU dos exercícios de 2013 a 2016 – Preliminar de cerceamento de defesa afastada – Usufruto vitalício gravado na matrícula do imóvel, em favor do autor, registrado no Cartório de Imóveis de Tambaú, antes dos fatos geradores dos débitos tributários – Imóvel tributado sem matrícula própria e individualizada, inserido em área maior sobre a qual incide o direito real de usufruto – IPTU único – Ação julgada improcedente – Manutenção do decisum – Usufrutuário é o contribuinte do IPTU em questão – Art. 34 do CTN c.c Art. 1.403, II, do Código Civil – Sucumbência recursal – Recurso não provido.
(TJ-SP - AC: 10015046920168260614 SP 1001504-69.2016.8.26.0614, Relator: Silvana Malandrino Mollo, Data de Julgamento: 12/11/2020, 14ª Câmara de Direito Público, Data de Publicação: 01/04/2021)
Vale trazer à baila, inclusive, recentíssimo julgado proferido pela Ilustre Desembargadora Mônica Serrano, da C. 14ª Câmara de Direito Público TJ/SP, oportunidade na qual foi negado provimento ao recurso de Apelação interposto pela Prefeitura Municipal de São José do Rio Preto:
APELAÇÃO – EXECUÇÃO FISCAL – – Exceção de pré-executividade – Ilegitimidade passiva – IPTU – Agravante que é nu-proprietário do imóvel - Ilegitimidade configurada – Precedentes – Decisão mantida - RECURSO NÃO PROVIDO
Conforme previsto no art. 1.403 do Código Civil, cabe ao usufrutuário o pagamento das "prestações e os tributos devidos pela posse ou rendimento da coisa usufruída", logo, quem ususfrui é parte legítima para responder pela dívida de IPTU, e não os nu-proprietários.
(...)
(TJ-SP - AC: 10039961720178260576 SP 1003996-17.2017.8.26.0576, Relator: Mônica Serrano, Data de Julgamento: 20/04/2022, 14ª Câmara de Direito Público, Data de Publicação: 25/04/2022)
No caso, em primeira instância havia sido proferida sentença que acolheu uma exceção de pré-executividade para extinguir execução fiscal, sem resolução de mérito, nos termos do art. 485, VI, do CPC, por reconhecer que apenas o usufrutuário seria responsável pelo pagamento do IPTU, e não o nu-proprietário.
A Municipalidade, então, interpôs o recurso sob o fundamento de que o nu-proprietário seria parte legítima, pois tanto os usufrutuários como o nu proprietários, são devedores solidários, por uma interpretação conjunta dos dispositivos do Código Civil e do Código Tributário Nacional.
A Ilustre desembargadora fundamentou sua decisão com base no entendimento até então pacífico do C. Superior Tribunal de Justiça (“STJ”), de que não haveria que se falar em solidariedade do proprietário e do usufrutuário no pagamento do IPTU:
"RECURSO ESPECIAL. TRIBUTÁRIO. IMPOSTO PREDIAL E TERRITORIAL URBANO. USUFRUTO. LEGITIMIDADE PASSIVA DO USUFRUTUÁRIO. PRECEDENTE DESTE SODALÍCIO. Segundo lição do saudoso mestre Pontes de Miranda, "o direito de usufruto compreende o usar e fruir, ainda que não exerça, e a pretensão a que outrem, inclusive o dono, se o há, do bem, ou do patrimônio, se abstenha de intromissão tal que fira o uso e a fruição exclusivos. É direito, erga omnes, de exclusividade do usar e do fruir. O renomado jurista perlustra, ainda, acerca do dever do usufrutuário de suportar certos encargos, que "os encargos públicos ordinários são os impostos e taxas, que supõem uso e fruto da propriedade, como o imposto territorial e o predial". Na mesma linha de raciocínio, este Superior Tribunal de Justiça, ao apreciar a matéria, assentou que, "em tese, o sujeito passivo do IPTU é o proprietário e não o possuidor, a qualquer título (...) Ocorre que, em certas circunstâncias, a posse tem configuração jurídica de título próprio, de investidura do seu titular como se proprietário fosse. É o caso do usufrutuário que, como todos sabemos, tem a obrigação de proteger a coisa como se detivesse o domínio" (REsp 203.098/SP, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, DJ 8.3.2000). Dessarte, nas hipóteses de usufruto de imóvel, não há falar em solidariedade passiva do proprietário e do usufrutuário no tocante ao imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana quando apenas o usufrutuário é quem detém o direito de usar e fruir exclusivamente do bem. Recurso especial impróvido." (REsp 691.714/SC, Rel. Ministro FRANCIULLI NETTO, SEGUNDA TURMA, julgado em 22/03/2005).
Ocorre que tal compreensão já não é mais a mesma por parte do STJ.
Em 14/6/22 foi julgado pela 1ª Turma do STJ, o Agravo em Recurso Especial (“ARESP”) 1.566.893/SP, de relatoria do Ministro Gurgel de Faria. O ARESP foi interposto pela Municipalidade de São José do Rio Preto, em face da inadmissão de recurso especial que desafiou acórdão proferido pelo TJ/SP, que deu provimento ao Agravo de Instrumento interposto pelo contribuinte em face de decisão que não acolheu exceção de pré-executividade em que se questionava a legitimidade passiva do nu-proprietário para figurar como contribuinte do IPTU.
Conforme diversas decisões reproduzidas no presente artigo, o TJ/SP sustenta o parecer de que o nu-proprietário não seria contribuinte do IPTU sobre o imóvel objeto de usufruto, só recaindo a condição de contribuinte sobre o usufrutuário.
Vale relembrar que em 2009, ao apreciar os Recursos Especiaiss 1111202/SP e 1110551/SP (Tema Repetitivo 122), firmou-se a tese de que poderiam ser responsabilizados pelo pagamento do IPTU, tanto o promitente comprador (possuidor a qualquer título) quanto o promitente vendedor (proprietário do imóvel) em negócio que visa a transmissão da propriedade de imóvel.
Este resultado foi fruto do quanto consignado na Súmula 399, cuja definição foi de que, com o objetivo de facilitar o procedimento de arrecadação, ao legislador municipal caberá eleger o sujeito passivo do tributo do IPTU.
Essa foi uma das razões de decidir da 1ª turma ao dar provimento ao ARESP do Município. No mais, foi assentado que a definição de contribuinte é matéria reservada à lei complementar, nos termos do artigo 146, III, "a", da Carta Magna e, por esse motivo, o artigo 1.403, II, do Código Civil não poderia ser considerado como norma excludente de sujeição passiva para fins tributários, de modo que tal dispositivo deve ser interpretado como regra de direito privado que obriga o usufrutuário em relação ao proprietário, não vinculando o fisco.
Em conclusão, o ARESP foi conhecido para dar provimento ao RESP a fim de reconhecer que, à luz do art. 34 do CTN, o proprietário de imóvel gravado com usufruto é responsável solidário pelo pagamento do IPTU, e não apenas o usufrutuário. Venceu, portanto, a tese do Município de São José do Rio Preto.
Diante desse relevante julgado, é importante que os contribuintes estejam atentos, de modo que o Município poderá cobrar o IPTU do nu-proprietário ou do usufrutuário, bem como é possível que os Tribunais de Justiça Estaduais passem a aplicar essa concepção para proferir decisões a respeito da matéria.