A mídia regular e jurídica especializada tem noticiado o caso de Santa Catarina, no qual uma Magistrada e um Membro do Ministério Público teriam induzido uma criança, vítima de estupro, a não abortar.
Em que pese os diversos argumentos e as reportagens que tendem a afirmar que seria um absurdo a Magistratura e o Órgão Ministerial agirem dessa forma (induzindo a manutenção da gestação). Penso diferente. Em minha opinião, o caso é ainda mais escandaloso, porém, os motivos para o escândalo, são outros.
Esse caso revela um problema corriqueiro no Brasil: isto é, que o Direito seria equivalente a uma opinião (cada um tem a sua) e que o Operador Jurídico pode decidir, livremente, de acordo com a sua consciência.
E por qual motivo isso é um problema?
Quando a interpretação é ilimitada, a primeira vítima é o princípio da separação dos poderes. Em outras palavras, o Operador Jurídico passa a atuar como se fosse o legislador criando um novo Direito, diferente daquele que foi produzido pelos representantes do povo.
A interpretação ilimitada também permite a perda de autonomia do direito, na medida em que as impressões subjetivas (políticas e ideológicas) do intérprete passam a se sobrepor às regras normativas.
Dessa forma, o Direito perde sua capacidade de universalidade e igualdade, transformando-se em algo casuísta que atende apenas o caso concreto e se modifica de acordo com o intérprete, com o humor e outros quejandos.
Na espécie, como isso pode ser observado? Basta verificar como ocorreu a suposta tomada de depoimento da criança. Existe um procedimento formal e específico para ouvir crianças vítimas de abuso sexual (Lei 13.431/17). Esse procedimento serve para proteger a criança, preservar sua integridade, bem como constitui-se em método epistêmico adequado para se alcançar a reconstrução (provável) dos fatos de forma segura.
Todavia, os arquivos de vídeo veiculados - se verdadeiros e sem edições - sugerem que o procedimento especial não foi observado, violando-se assim toda a sistemática de proteção da criança e adolescente existente tanto em normas internas, quanto internacionais.
Se verifica, portanto, que a metodologia jurídica brasileira não tem conseguido conduzir a uma interpretação do Direito de maneira apropriada e conforme a Constituição e os Tratados Internacionais, na medida em que os princípios reitores da interpretação estão no âmbito subjetivo do intérprete que conduz o Direito de acordo com sua própria ideologia, elegendo as regras e o método de interpretação ou o princípio da falta de princípios metodológicos.
Este modelo acaba por fazer prevalecer o estabelecimento de normas judiciais subjetivas ou inserções de complementariedade às normas criadas pelos representantes do povo, sem que, no entanto, se considere o propósito da lei e mesmo sua conformidade com as demais regras de direito interno e internacional, produzindo-se qualquer coisa diversa daquilo que estava previsto, favorecendo, em uma sociedade marcada pela complexidade, o desenvolvimento da insegurança jurídica, justamente, pela instituição que deveria ser responsável pela apaziguamento dos conflitos.
A notícia do ocorrido em Santa Catarina, como já advertia Bernd Rüthers, confirma que também o Brasil tem vivido sua noche de los cristales rotos.
É preciso, de uma vez, compreendermos que a forma é tão importante quanto o conteúdo. Tivesse a forma sido atendida, menor poderiam ser os problemas quanto a decisão de conteúdo. Houvesse uma interpretação de princípio e não ideológica, a criança não seria revitimizada, nem exposta. Ainda que a intenção seja boa, o conflito entre a boa-intenção e o direito positivo, deve garantir que o Direito tenha prioridade, inclusive, se não adequar-se à ideologia do intérprete.
Afinal, forma é garantia e com Agostinho Ramalho: quem nos protege da bondade dos bons?