1. Déficits e equacionamento
As notícias de sucessivos déficits nos planos de benefícios definidos são recorrentes. Atos ilícitos na gestão dos investimentos, mas, principalmente, múltiplos fatores econômicos e atuariais que passam ao largo da gestão resultaram em déficits que devem ser equacionados por patrocinadores, participantes e assistidos, na forma descrita no art. 21 da LC 109/01.1 Reagindo ao que parece ser uma injustiça, é natural que os participantes busquem a tutela do Judiciário ao ver contribuições extraordinárias ou benefícios reduzidos.
Ao obter uma decisão favorável, entretanto, os participantes involuntariamente prejudicam a coletividade que permanece contribuindo para o equacionamento. Assim, mais participantes são estimulados a ingressar em juízo o que, de maneira inevitável, agrava a situação do plano já deficitário.
2. Análise econômica do direito (law & economics)
Para avaliar esse problema, há que se fazer uma breve incursão sobre alguns pontos teóricos. De maneira bastante simplificada, a análise econômica do direito é uma prática crítica que pretende eliminar soluções jurídicas economicamente ineficientes. O que se deseja é encontrar mecanismos dissuasores da prática de atos que tem potencial de gerar resultados ineficientes para a coletividade de participantes. Esse passo conduz até a Toria dos Jogos e, mais especificamente, para uma formulação denominada de Tragédia dos Comuns.
3. Teoria dos Jogos
Com efeito, a Teoria dos Jogos é um ramo da matemática aplicada que estuda o resultado de estratégias na qual a ação de um indivíduo é interdependente da escolha de outro agente. Uma de suas imagens mais representativas é o dilema do prisioneiro. Nessa modelagem, dois prisioneiros têm que decidir se confessam um crime. Para essa tomada de decisão, eles estão impedidos de se comunicar e sabem que: a) Se nenhum confessar, ambos serão presos por um ano; b) Se apenas um confessar, aquele que confessou será solto, e o que não confessou será preso por sete anos; e c) Se ambos confessarem, ficarão presos por três anos.
A teoria parte do pressuposto de que os presos querem o melhor para si. E, sem comunicação, a decisão racional é tida pelo que se chama de estratégia dominante. Se o preso um pensar que o preso dois confessou, a estratégia dominante é confessar, pois a pena de três anos é menor que a pena de sete anos. Se o preso um pensar que o preso dois não confessou, a estratégia dominante também é confessar, porque a liberdade é melhor que a prisão por um ano. Portanto, a estratégia dominante é sempre confessar. Ao agir desse modo, cada indivíduo obtém o melhor resultado para si e provoca o pior resultado para o outro.
Sem entrar no mérito da solução matemática, uma das chaves da resolução é que os agentes estão impedidos de se comunicar em um chamado jogo não cooperativo. Além disso, essa decisão é tomada para uma única rodada. 2 A linha de raciocínio muda quando há sucessivos acordos. Como se deduz, caso uma das partes não coopere em uma rodada de negociações, a outra parte tende a não colaborar na próxima rodada. Logo, as partes podem optar por abrir mão momentaneamente de um benefício individual em troca de um benefício coletivo no futuro.
4. Tragédia dos Comuns
Para perceber as possíveis consequências dos comportamentos não cooperativos, remetemos à noção da Tragédia dos Comuns. [tragédia dos recursos compartilhados]. Trata-se de uma hipótese na qual o termo tragédia significa um destino inevitável. O paradigma clássico é um grupo de criadores que leva seu gado para pastar em uma área comum. Se um criador específico introduzir mais alguns animais, fatalmente aumentará seu lucro. Porém, a relativa escassez de pasto fará com que seus animais fiquem um pouco menos gordos. Caso outros criadores passem a agir da mesma forma, o grupo inteiro irá perecer. Em síntese, alega-se que a decisão racional por maximizar o resultado individual diante de um recurso compartilhado e esgotável provoca consequências em duas vertentes. A componente positiva é a maximização do resultado individual. Os aspectos negativos são o compartilhamento de um prejuízo e o esgotamento dos recursos a longo prazo. Troca-se, portanto, uma vantagem integralmente recebida no curto prazo por uma fração de desvantagem no longo prazo. Por esse ângulo, parece que a decisão racional seria a que proporciona o maior resultado. Todavia, na medida que todos os indivíduos tomam uma decisão igual, o esgotamento dos recursos compartilhados se acelera.
Esse problema teórico se manifesta de diversas maneiras. Rotineiramente, são mencionados os problemas ambientais. Aqui, incluo o objeto de estudo deste artigo: o equacionamento de déficits. Evidente que, como os planos de benefícios definidos são formados por recursos compartilhados e finitos, cada participante que obtém algum tipo de privilégio, tem seu privilégio suportado pelo conjunto dos participantes. Ou seja, sua vantagem integralmente recebida no curto prazo significa apenas uma fração de desvantagem no longo prazo. No entanto, a tragédia do esgotamento dos recursos compartilhados será fatal.
Voltando na história, a Tragédia dos Comuns originalmente apresentava o crescimento populacional como um grave problema. Seu pensamento neomalthusiano preconizava que a “liberdade para procriar é intolerável” e que era inútil apelar à consciência das pessoas.3 Deste modo, para lidar com o destino inevitável da tragédia, eram propostas duas soluções alternativas. Uma seria adotar medidas de coerção/proibição para restringir o acesso aos recursos compartilhados. A outra proposta seria entregar os recursos para exploração por particulares.4 Nenhuma dessas opções é plausível diante de um equacionamento. Felizmente, as previsões de aumento populacional não se confirmaram e as tentativas de solução teóricas foram importantes para o desenvolvimento dos conceitos de cooperação que foram apresentados posteriormente.5
5. Efeitos da não cooperação
Ora, do ponto de vista da moral, é bastante claro que a não cooperação é entendida como uma conduta indesejável. Provoca a quebra da confiança e gera efeitos nas relações de longo prazo. Assim, colaborar e proteger a confiança entre as partes é um valor fundamental para promover eficiência no desenvolvimento de um ambiente saudável. Observe-se que, segundo HARARI,6 os humanos foram capazes de dominar o mundo justamente por sua aptidão em confiar em estranhos. O autor acredita que, com base em conceitos criados pelos próprios humanos, foi possível colaborar ainda que os “outros” não fizessem parte de sua tribo ou círculo familiar. Segundo tal raciocínio, a contrario sensu, a quebra do elemento da confiança impediria a cooperação mútua que é a principal vantagem competitiva diante de outros animais.
Significa dizer, em outras palavras, que a ninguém interessa um ambiente cercado pela desconfiança.7 Nesse sentido, estudos econômicos apontam que a desconfiança generalizada gera a redução de bons negócios.8, Por esse motivo, ao projetar o comportamento contaminado pela desconfiança para o feixe relações entre a EFPC e seus participantes, e considerar que os relacionamentos envolvem a realização de acordos sucessivos, poderia haver um provável ciclo de seleção adversa. Em sequência, os prejuízos para os planos de benefícios deficitários podem se agravar.
6. Cooperando com recursos compartilhados
Ora, na Tragédia dos Comuns inexiste vantagem para as partes colaborarem no longo prazo. Entretanto, OSTROM dedicou-se ao tema e apontou uma falha na hipótese. Defendia a professora que há muitas possíveis soluções que envolvem comunicação e colaboração.9 Assim, a resposta para evitar o suposto destino inevitável da tragédia poderia estar justamente no entendimento das partes de que a cooperação é mais “lucrativa” para todos os envolvidos.
Sob esse argumento, há que relativizar a busca desenfreada pela vantagem individual. E esse comportamento não tem base apenas em fundamentos morais, mas no firme propósito de uma sustentabilidade a longo prazo. Ainda interessante notar que a teoria foi desenvolvida a partir do estudo de episódios concretos de cooperação em que a tragédia anunciada simplesmente não ocorria.10
7. O papel do administrador de EFPC
O administrador da EFPC, como já escrevi, não pode falhar em seus deveres fundamentais de cuidado e lealdade. E, esses deveres não são poucos. O administrador de EFPC deve ser ativo e probo. Isso significa que só cumpre seus deveres se: atuar sempre no melhor interesse dos planos administrados e; nos processos decisórios, utilizar informação suficiente e consistente para decidir com racionalidade econômica.11 Significa dizer que deve decidir mediante processo formalizado com metodologia adequada para decisões complexas. E, sempre buscar proporcionar uma maior expectativa de solução eficiente para o interesse dos planos administrados.
Assim, o administrador de EFPC deve racionalmente: a) buscar e considerar informações em quantidade e qualidade suficientes; b) avaliar juízos de risco e retorno; c) adequar suas decisões ao perfil de risco do plano; d) ter por interesse de referência a rentabilidade financeira para poder honrar as obrigações de pagar benefícios aos seus participantes; e e) também observar princípios de segurança, solvência, liquidez e transparência.
Por certo, no âmbito de um equacionamento, medidas judiciais no interesse dos planos de benefícios são indispensáveis. Contudo, uma estratégia de sucesso só terá efeito se envolver ampla comunicação institucional com destaque ao atendimento ao princípio da transparência.
É necessário perceber que uma eventual postura de estratégia dominante desestimula a colaboração. Em vista disso, deve-se privilegiar atos de conjugação de interesses perpassados pela lealdade dispensada a todos os sujeitos envolvidos.12 Portanto, mediar a cooperação entre todos os stakeholders, ao que tudo indica, é a chave da compreensão do papel do administrador durante um processo de equacionamento.
Nessa “mesa de negociações” compete ao administrador também insistir para que o Judiciário fundamente suas decisões considerando suas consequências práticas. 13 Claro que não se espera que o magistrado se aventure por sofisticados cálculos atuariais. Por outro lado, o juiz necessita reconhecer os planos de benefícios definidos como um exemplo de recursos compartilhados e finitos. Só assim poderá vislumbrar a consequência prática de uma decisão de suspender a cobrança de contribuições extraordinárias que se destinam ao custeio de déficit.
Ainda não se deve esquecer que, em alguns casos muito específicos, é possível vislumbrar o alcance a determinado agente externo como parte da solução. Algum patrocinador, por exemplo, que tenha praticado interferência ilegal na administração da EFPC pode ser responsabilizado. Neste ponto, em particular, haveria uma soma de recursos aos recursos compartilhados o que poderia mitigar os efeitos do equacionamento.
_____
1 Art. 21. O resultado deficitário nos planos ou nas entidades fechadas será equacionado por patrocinadores, participantes e assistidos, na proporção existente entre as suas contribuições, sem prejuízo de ação regressiva contra dirigentes ou terceiros que deram causa a dano ou prejuízo à entidade de previdência complementar.
2 […] repeated games. Suppose that the prisoner’s dilemma were to be played not just once but a number of times by the same players. Would that change our analysis of the game? If the same players play the same game according to the same rules repeatedly, then it is possible that cooperation can arise and that players have an incentive to establish a reputation—in this case, for trustworthiness. An important thing to know about a repeated game is whether the game will be repeated a fixed number of times or an indefinite number. Cooter e Ulen - Law & economics. p. 36.
3 “Freedom to breed is intolerable” […] The argument has here been stated in the context of the population problem, but it applies equally well to any instance in which society appeals to an individual exploiting a commons to restrain himself for the general good-by means of his conscience. To make such an appeal is to set up a selective system that works toward the elimination of conscience from the race. Hardin, The Tragedy of the Commons. p.1246.
4 Cooter explica esse argumento dizendo que os indivíduos teriam o incentivo apropriado para preservar o uso e excluir terceiros. Vide Cooter e Ulen, Law & economics. p. 140.
5 Está longe de ser o tema do artigo, mas há evidências de que medidas de coerção para evitar a natalidade têm papel limitado. Há, entretanto, uma grande correlação entre o nível educacional e taxas de natalidade mais baixas, o que pode indicar que a educação seja um fator mais relevante.
6 “The global trade network of today is based on our trust in such fictional entities as the dollar, the Federal Reserve Bank and the totemic trademarks of corporations.” Harari, Sapiens: a brief history of humankind. p.43.
7 “Em termos antropológicos e sociológicos, podemos dizer que, desde a sedentarização, a espécie humana organiza-se na base de relacionamentos estáveis, a respeitar. No campo ético, cada um deve ser coerente, não mudando arbitrariamente de condutas, com isso prejudicando o seu semelhante.” Menezes Cordeiro, Do abuso do direito: estado das questões e perspectivas.
8 “segundo Akerlof, acaba reduzindo a oferta, que fica limitada a veículos de pior qualidade e, assim, exacerba, ainda mais, a seleção adversa com que se deparam os compradores” In Comissão de Valores Mobiliários, Direito do Mercado de Valores Mobiliários. p.70.
9 Aligica, Encyclopedia of Law & Economics – Governance. p.999.
10 “a demonstration that the “tragedy of the commons” could be and has been avoided in many cases, without making use of state-based mechanisms and enforcement. […] conditions and mechanisms motivating the commons users to behave cooperatively. E. Ostrom identified a set design principles, noting that they characterize robust institutions used by communities managing common-pool resources such as forests or fisheries. With that, the notion of “governance” has also come to be associated to the notion of “institutional design” Aligica, Encyclopedia of Law & Economics – Governance. p.999.
11 Gomes dos Santos, Do que devemos falar antes de processar um administrador de EFPC? Revista da ABRAPP maio/junho 2021 p.47/50 https://biblioteca.sophia.com.br/terminal/9147/VisualizadorPdf?codigoArquivo=56052
12 Ferreira Gomes - Responsabilidade civil dos administradores: ilicitude e culpa p. 279-307.
13 LINDB Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.