Migalhas de Peso

NFTs além de gatos e macacos

O que mais pode ser feito com os chamados tokens não-fungíveis?

21/6/2022

Em 2019, durante o curso “Programação de Smart Contracts em Blockchain para profissionais do direito”, na PUC-SP, fiquei intrigado com um padrão de smart contracts chamado ERC-721 porque permitia a criação e registro de itens digitais únicos em blockchain, ao contrário do padrão ERC-20 usado para criar itens similares.

Esse padrão me chamou a atenção exatamente pelo fato de que a espécie de smart contract por ele prevista poderia ser utilizada para representar, de forma inquestionável e imutável, entre duas ou mais pessoas, direitos e obrigações sobre coisas ou sobre outros direitos e obrigações.

Enquanto se falava muito em criptomoedas e sobre as altas e baixas vertiginosas de suas cotações, característica também conhecida como volatilidade e que, hoje, mais uma vez, toma conta das notícias do setor, me impressionava a possibilidade de criar um arquivo que poderia representar qualquer outra coisa, digital ou não, de forma exclusiva, imutável, cujo registro ficaria disponível em uma cadeia pública (ou não) de informações (#blockchain) mantida por uma coletividade (rede) de pessoas totalmente desconhecidas entre si, usando seus computadores (nós da rede).

Três anos se passaram e, recentemente, o termo eleito pelo dicionário de inglês Collins como a palavra do ano de 2021 foi, exatamente, NFT – ou Non-Fungible Token, termo que define os itens digitais gerados em blockchain seguindo o mencionado padrão ERC-721 – superando, dentre outras, #metaverso e até mesmo #crypto.

Isso se deve ao fato de naquele ano ter ocorrido um verdadeiro boom nas vendas de itens de arte colecionáveis por meio de plataformas digitais desenvolvidas para essa finalidade; itens estes que, em diversos casos, alcançaram elevadíssimas cifras – gastas, tanto por conhecidos ilustres, quanto por ilustres desconhecidos – para a adquirir os mais diversos tipos de trabalhos artísticos digitais.

Dentre tais itens, ficaram famosas duas coleções em específico: a dos CryptoKitties1, uma espécie de releitura mais bem sucedida em forma de gatos dos antigos tamagotchi2; e a Bored Ape Yatch Club3, coleção de simplórios desenhos de macacos entediados.

A “moda” virou trend e esta virou hype, elevando o volume de dinheiro movimentado em torno de itens como os pequenos felinos e os aborrecidos primatas da casa dos U$ 106M em 2020 para chimpanzescos U$ 44B em 2021, justificando, assim, a consagração do termo como palavra do ano.

O que se pode esperar dessa cartola além de gatos e macacos?

Praticamente qualquer coisa, literalmente.

Desde uma bolsa digital mais cara que sua própria versão real4 (estranho caso em que o item não era, sequer, um NFT), até unidades imobiliárias virtuais (em metaversos como Decentraland5 e The Sandbox6) e condomínios reais7 em endereços luxuosos em Nova Iorque, passando por iates virtuais8 e até uma mensagem de Twitter vendida por U$ 2,9M.9

Entretanto, apesar de todo o frenesi e dos monstruosos volumes de dinheiro movimentados pelo universo NFT até o momento, acreditamos que as efetivas utilidades e a real importância dos tokens não-fungíveis parecem ainda não ter sequer sido começadas a serem exploradas.

Isso porque, em nossa opinião, a tendência é que tais valores venham a cair também de forma vertiginosa, já que os ativos que hoje figuram nas transações acima mencionadas, apesar de serem, de fato e de direito, infungíveis na acepção jurídica do termo – por possuírem um código insubstituível e imutável, valendo como original aquele que tiver sido registrado há mais tempo em alguma blockchain – fato é que, diferentemente de uma Mona Lisa de Leonardo da Vinci, ou de uma Venus de Milo, quase a totalidade desses gatos, bolsas e macacos pode ser facilmente reproduzível.

E com os mesmos exatos materiais: zeros e uns.

Calma, não pretendemos dizer que o trabalho desses artistas não tenha seu honrado valor, tampouco apoiamos que tais obras sejam copiadas ou replicadas comercialmente em prejuízo de seus criadores. Apenas chamamos a atenção para o fato de que a escassez ou raridade que tais itens detêm não é do mesmo tipo que a de uma pepita de ouro, de um barco viking ou de um afresco de Michelangelo.

Estes últimos, por mais que possam ser imitados e copiados, jamais o serão em todos os mínimos detalhes e, muito menos, suas cópias terão a mesma importância histórica, artística e os mesmos elementos materiais e composições físico-químicas que seus originais.

Já os NFTs que hoje são amplamente negociados e passam por essa supervalorização jamais vista anteriormente podem, e de fato são, produzidos por literalmente qualquer um que se disponha a tanto, sem que haja necessidade imprescindível de qualquer conhecimento prévio, seja artístico, histórico ou mesmo filosófico.

Assim, por que um desenho qualquer, feito por uma pessoa qualquer (sem qualquer demérito, repita-se), em um momento qualquer de um lugar qualquer, teria “legitimidade” para deter um valor monetário tão alto como os que vêm sendo praticados atualmente?

Nada explica e muito menos justifica tamanha valorização.

Nada além do chamado F.O.M.O. – Fear Of Missing Out; ou medo de perder uma oportunidade – já que tais itens não possuem intrinsecamente nada que possa ser unanimemente considerado único ou especial (como um material raro), inovador (como uma técnica de pintura revolucionária) ou insubstituível (como uma característica física ou química).

A parte que é infungível em tais tokens não se refere realmente ao trabalho artístico neles externado. De fato – e com o devido respeito – qual seria a real importância técnica, utilidade ou valor cultural de se possuir o Bored Ape número tal, além de poder participar das festas e eventos do Yatch Club a que ele dá acesso? Perceba-se que, neste caso, nem a arte e nem mesmo a própria utilidade do token em si é algo insubstituível ou único.

Afinal, as figuras de tais símios são 100% reproduzíveis em todos os detalhes, por serem digitais; e, mesmo o serviço a elas vinculado, pode ser acessado por meio de outro token; ou seja, nem o item, nem a “experiência” a ele ligada é realmente insubstituível ou inacessível por outros meios.

Trata-se, portanto, de uma pseudo-infungibilidade do token, já que a única parte que é exclusiva nele é seu código hash10, não havendo propriamente algo insubstituível, tal como ocorre com o número de série que distingue uma cédula de uma moeda fiduciária física (fiat) de outra, sem alterar nem seu valor, tampouco sua utilidade prática final.

Vale ainda lembrar que, normalmente, quando se adquire um desses NFTs, não se está garantindo a exclusividade de qualquer direito autoral sobre o trabalho artístico nele representado; apenas se compra a detenção, ou posse, do código hash gerado na respectiva transação. A rigor, nem mesmo há garantia de imutabilidade do efetivo conteúdo artístico que se visualiza, já que o item digital representado (seja ele uma imagem, um som, um texto ou qualquer outra informação) encontra-se “depositado” “fora” do NFT, geralmente em uma URL11 cuja custódia cabe ao criador do token.

Em outras palavras, o que de fato é infungível é o próprio token, não o arquivo que ele representa; ou seja, no caso de se comprar tais gatos ou macacos virtuais, o que é realmente único e insubstituível é, apenas e tão-somente, sua numeração, nada mais.

De qualquer modo, o conceito em si dos NFTs é genial ainda há muito a ser explorado nesse campo; especialmente no que se refere a utility tokens, security tokens e equity tokens, já que nestes é de fato útil a característica de unicidade e exclusividade, seja para, respectivamente, garantir acesso a um serviço ou plataforma, representar um direito financeiro ou a titularidade societária dentro de uma organização ou empresa.

É claro, porém, que, se for possível vincular de forma indissociável o token ao item que ele representa, também haverá valor nele próprio; mas, para isso, seria necessário que o arquivo que se pretende representar com ele esteja armazenado em memória cuja custódia fique sob responsabilidade do adquirente do NFT: seja utilizando o chamado IPFS12, sistema que – tal como as blockchains em que se registram os hashs das transações – também é mantido de forma descentralizada e distribuída entre nós de uma rede impessoal peer-to-peer13 de computadores, garantindo sua imutabilidade e segurança; seja por estar armazenado em um domínio NFT14 cuja titularidade seja também de quem comprar o cripto-ativo em questão.

Por fim, acreditamos, também, que a maior utilidade dos NFTs se dará no âmbito de algum dos metaversos – ou, se preferir, metaclusters, como propusemos em artigo anterior15 – já que toda e qualquer relação jurídica que vier a ser realizada entre as pessoas (seja por si próprias, seja por seus avatares) em alguma dessas realidades paralelas, estará automaticamente registrada na respectiva blockchain e tal registro, sim, será um verdadeiro token não-fungível, já que conterá informações de um ato que jamais poderá ser revertido ou substituído e que, por ter ocorrido entre dois indivíduos, naturalmente gerará responsabilidades, direitos e obrigações entre eles.

O futuro é, de fato, bastante promissor a esse respeito e muito ainda acontecerá para ser analisado e comemorado (ou não). O que importa é estarmos com as mentes abertas para isso e com disposição para navegar e aprender sempre mais nesse multiverso de possibilidades que a cada dia nos apresenta uma nova e incrível característica.

_____

1 https://www.cryptokitties.co/

2 https://en.wikipedia.org/wiki/Tamagotchi

3 https://boredapeyachtclub.com/#/

4 https://www.esquiremag.ph/money/wealth/virtual-gucci-bag-roblox-a00304-20210526

5 https://decentraland.org/

6 https://www.sandbox.game/en/

7 https://www.forbes.com/sites/rachelwolfson/2018/10/03/a-first-for-manhattan-30m-real-estate-property-tokenized-with-blockchain/?sh=3880c3674895

8 https://www.tecmundo.com.br/mercado/229714-nft-iate-super-luxuoso-vendido-r-3-6-milhoes.htm

9 https://www.coindesk.com/business/2022/04/13/jack-dorseys-first-tweet-nft-went-on-sale-for-48m-it-ended-with-a-top-bid-of-just-280/

10 https://pt.wikipedia.org/wiki/Fun%C3%A7%C3%A3o_hash

11 Uniform Resource Locator, vulgo endereço do site.

12 InterPlanetary File System – ver: https://ipfs.io/

13 https://en.wikipedia.org/wiki/Peer-to-peer

14 https://unstoppabledomains.com/pt-br?utm_source=paid_google&utm_medium=paid_search&utm_term=nft%20domains&utm_content=130782535173&utm_campaign=AO_bau_con_paid_google_search_nb_KPI-su-pur-roas_keywords_T1-row&creative=580897132719&gclid=CjwKCAjwtcCVBhA0EiwAT1fY75TPG8bXoOqqwmVWc6FoW37AoB4iOuHIk_A9LVzYOVfigqeJWF1GlhoCg1sQAvD_BwE

15 https://www.linkedin.com/pulse/estamos-com-os-%25C3%25B3culos-certos-para-o-metaverso-de-castro-lopes/?trackingId=ADBsRPCQStaGnkaYHP10%2BA%3D%3D

Ricardo Augusto de Castro Lopes
Sócio-diretor de Castro Lopes Advogados Associados da área de contencioso estratégico, com foco em novas tecnologias, LGPD e propriedade intelectual. Especialista em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP, com master em Estudos da União Europeia pela Universidade Livre de Bruxelas - ULB e em Política e Relações Internacionais pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo - FESP-SP.

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