Em 3/6/22 entrou em vigor a lei 14.365, que alterou o Estatuto da Advocacia, o CPC e o CPP, incluindo disposições sobre a atividade privativa de advogado, limites de impedimentos ao exercício da advocacia, entre outros assuntos.
Longe de ter a pretensão de esgotar o assunto, o objetivo desse artigo é discorrer sobre uma das alterações implementadas pela lei supramencionada, qual seja, a possibilidade de os ocupantes de cargos ou funções vinculadas diretamente ou indiretamente a atividade policial de qualquer natureza e os militares de qualquer natureza, na ativa, poderem advogar em causa própria.
O autor da proposta, deputado Capitão Wagner (PROS/CE), esclarece que, com relação aos militares, ter um processo administrativo ou judicial instaurado em seu desfavor é “risco inerente à profissão”, haja vista a atividade diferenciada exercida por essa categoria, alegando também que nem sempre é fácil encontrar advogados especializados na advocacia militar.
Alega também que a contratação de bons advogados nem sempre é possível em razão do baixo salário de membros dessa categoria, afirmando que:
“(...)quase sempre, os policiais e militares se valem do próprio soldo ou salário para custear sua defesa administrativa ou em juízo, o que onera sobremaneira a sua defesa e, especialmente, leva, muitas vezes, ao próprio desestímulo para o exercício profissional dessas categorias, que não dispõem de remuneração adequada para custear este risco inerente à profissão… É fundamental ressaltar que, nos termos deste projeto de lei, o exercício da advocacia se dará estritamente em causa própria, facilitando a defesa daqueles que possuem a devida formação acadêmica em Direito e foram aprovados no Exame de Ordem.”
Não se deve ignorar que a mudança implementada nesse sentido toca diretamente ao direito de defesa do cidadão, ao status libertatis, um dos bens mais preciosos de que dispomos e porque não dizer a própria dignidade da pessoa humana.
É verdade que as atividades desenvolvidas pelos profissionais de segurança os colocam numa situação diferenciada, pois muitas vezes precisam fazer uso da força para fazer se cumprir a lei. Estão sempre transitando entre a legalidade e o abuso, justamente porque um eventual abuso pode ficar caracterizado em razão de erro de julgamento da autoridade responsável por apurar as intervenções feitas por esses profissionais na esfera de direitos de terceiros.
Outra coisa é o fato de que a hierarquia e a disciplina são princípios que fundamentam as instituições militares e são observados de forma contundente, o que acarreta uma maior probabilidade de esses profissionais serem submetidos a vários processos administrativos, os quais podem, em alguns casos, culminar até com o cerceamento da liberdade.
Realmente não existem muitos advogados que militam no direito penal militar, no direito administrativo militar e previdenciário militar e, sendo assim, é fácil perceber que em razão da falta de conhecimento das nuances que permeiam a atividade castrense, o advogado não seja capaz de explorar, em sua plenitude, as possibilidades existentes para o êxito na condução do processo, seja ele administrativo ou judicial e, nesse ponto, é fácil inferir que tal questão toca diretamente ao exercício da ampla defesa que há de ser realmente ampla e efetiva.
Naturalmente e até com certa razão, vozes se levantaram contra a possibilidade dessas categorias poderem exercer a advocacia, mesmo que somente em causa própria.
Nessa toada, vários foram os argumentos apresentados contra a mudança legislativa no tocante a esse tema. Uns afirmam que seria inconstitucional, outros afirmam que poderá haver prejuízo para o próprio militar que talvez não tenha a expertise necessária para fazer a própria defesa ou até mesmo, sendo réu/indiciado/sindicado e ao mesmo tempo defensor de seus interesses, poderia haver um apego exacerbado nas próprias convicções, o que poderia impedir a ele de ver, de forma crítica e técnica as circunstâncias que envolveriam o caso, objeto de discussão jurídica.
Há aqueles que alegam que a advocacia em causa própria é apenas um primeiro passo no sentido de se permitir a advocacia sem restrição num futuro não muito distante pelos agentes cuja atividade esteja voltada à segurança pública.
É notório que o tema não é tão simples e precisa de discussão para que possa ser amadurecido, todavia, cabe analisar a situação levando-se em conta normas constitucionais e processuais.
A CF/88 estabelece que:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;
LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;
Assim, verifica-se que o direito ao devido processo legal, à ampla defesa e ao contraditório são direitos e garantias fundamentais albergados na Carta Magna e devem ser respeitados.
Enquanto princípios, sua aplicação se dará “mediante ponderação: à vista do caso concreto, o intérprete irá aferir o peso que cada princípio deverá desempenhar na hipótese, mediante concessões recíprocas, e preservando o máximo de cada um, na medida do possível”, conforme ensina Luiz Roberto Barroso e Ana Paula de Barcelos.1
Para os que entendem ser a mudança inconstitucional, é necessário que se demonstre qual princípio está sendo violado, além de se perquirir quais princípios deverão prevalecer antes de se fazer um juízo de valor nas mudanças implementadas pelo legislador ordinário, no tocante ao assunto em pauta.
Cabe salientar, também, que há requisitos negativos e positivos para o exercício da advocacia, previstos no Estatuto da OAB:
Da Inscrição
Art. 8º Para inscrição como advogado é necessário:
I - capacidade civil;
II - diploma ou certidão de graduação em direito, obtido em instituição de ensino oficialmente autorizada e credenciada;
III - título de eleitor e quitação do serviço militar, se brasileiro;
IV - aprovação em Exame de Ordem;
V - não exercer atividade incompatível com a advocacia;
VI - idoneidade moral;
VII - prestar compromisso perante o conselho
Das Incompatibilidades e Impedimentos
(...)
Art. 28. A advocacia é incompatível, mesmo em causa própria, com as seguintes atividades:
(...)
V - ocupantes de cargos ou funções vinculados direta ou indiretamente a atividade policial de qualquer natureza;
VI - militares de qualquer natureza, na ativa;
(...)
§ 3º As causas de incompatibilidade previstas nas hipóteses dos incisos V e VI do caput deste artigo não se aplicam ao exercício da advocacia em causa própria, estritamente para fins de defesa e tutela de direitos pessoais, desde que mediante inscrição especial na OAB, vedada a participação em sociedade de advogados. (Incluído pela Lei nº 14.365, de 2022)
§ 4º A inscrição especial a que se refere o § 3º deste artigo deverá constar do documento profissional de registro na OAB e não isenta o profissional do pagamento da contribuição anual, de multas e de preços de serviços devidos à OAB, na forma por ela estabelecida, vedada cobrança em valor superior ao exigido para os demais membros inscritos.(Incluído pela Lei nº 14.365, de 2022)
Assim, notório que há uma presunção legal quanto a capacidade técnica do bacharel em direito, na medida em que, sendo aprovado no exame da ordem e atendendo outras exigências, poderá exercer a advocacia.
Num momento anterior o legislador entendeu que aqueles que exercem as atividades previstas nos incisos do art. 28 do Estatuto da OAB, não podem exercer a advocacia, o que não quer dizer que essas mesmas pessoas não tenham capacidade técnica para fazê-lo, pois, como dito, a formação em direito e a aprovação no exame da ordem faz presumir a existência dessa capacidade.
Ocorre que o legislador entendeu por bem excluir da lista de impedidos de exercer a nobre arte da advocacia, em causa própria, os profissionais previstos nos incisos V e VI do artigo supramencionado e, nesse ponto, não se vislumbra nenhuma inconstitucionalidade, seja formal ou material.
Não se pode presumir que, pelo fato de alguém querer utilizar-se de seus conhecimentos jurídicos para fazer sua própria defesa, fazendo parte da categoria que antes era impedida, ele não está apto para tal. Pensar assim é pura discriminação.
Além do mais, é um risco que o interessado deve correr se assim o desejar, cabendo pontuar que, na esfera penal, em razão dos interesses em jogo, o juiz poderá considerar o réu indefeso e constituir advogado àquele que não demonstrar conhecimento técnico suficiente.
A título de exemplo, imaginemos um militar acusado de determinado crime e contra o qual pairam indícios robustos de autoria. Imaginemos ainda que esse militar possua vasto conhecimento jurídico e seja completamente capaz de fazer sua própria defesa, resolvendo agir dessa maneira, na medida em que os advogados que militam na esfera militar e que poderiam fazer um bom trabalho na sua defesa cobrem honorários muito acima de suas possibilidades.
Ora, se ele não pode fazer sua própria defesa e nem tem condições de pagar um advogado especializado, sobrar-lhe-á a opção de contratar um menos experiente que o próprio militar, o que pode representar risco de prejuízos à sua defesa e uma futura condenação.
Analisando esse caso com um pouco mais de profundidade chegaremos à conclusão que essa situação atenta contra a dignidade da pessoa humana e contra o direito de defesa, na medida em que, a depender do caso, o militar terá que se desfazer de bens necessários à uma vida digna ou até mesmo solicitar empréstimos, os quais passará considerável tempo pagando, para arcar com as despesas com o advogado quando poderia ele mesmo se defender.
Não devemos nos esquecer que esse servidor tem seus próprios méritos, pois, assim como qualquer outro advogado, cursou uma faculdade, estudou, foi aprovado no exame da ordem, logo, impedi-lo de advogar em causa própria, seria por demais desarrazoado.
Resguardadas as devidas proporções, é quase a mesma coisa que impedir um médico de se tratar de uma doença.
Por sua vez, a alegação de que a possibilidade de esses profissionais exercerem a advocacia em causa própria abrirá precedentes, também não pode ser argumento que mereça prosperar, na medida em que, pelo menos em tese, a mudança legislativa é reflexo da evolução da sociedade.
Claro que para alguns a mudança trazida pela legislação pode ser considerada um retrocesso, mas sob o ponto de vista de outros, um avanço, logo, chegar a um consenso levará certo tempo.
Para os que entendem que no caso de advocacia em causa própria, poderia haver um apego exacerbado nas próprias convicções o que poderia impedir o indivíduo de ver, de forma crítica e técnica, as circunstâncias que envolveriam o seu caso, tal argumentação não faz nenhum sentido em razão de que é possível ao advogado, mesmo antes da mudança legislativa, ocorrida recentemente, advogar em favor de seus interesses.
Sendo assim, com todo respeito às opiniões em contrário e sem a pretensão de esgotar o assunto, verifica-se que a mudança legislativa que permitiu aos ocupantes de cargos ou funções vinculadas diretamente ou indiretamente a atividade policial de qualquer natureza e aos militares de qualquer natureza, na ativa, advogarem em causa própria, fomenta o atendimento a princípios constitucionais.
_____
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2008;
BARROSO, Luís Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de. Começo da história. A nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v.232, p.141-176, abr./jun. 2003;
Constituição de 1988. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituição/Constituição.htm/>Acesso em 09.06.22;
Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8906.htm. Acesso em: 09.06.22;
LENZA, Pedro. Manual de Direito Constitucional Esquematizado. 21ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2017.
1 BARROSO, Luís Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de. Começo da história. A nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v.232, p.141-176, abr./jun. 2003.