Migalhas de Peso

Violência de gênero

Uma triste realidade na luta contra o preconceito.

17/6/2022

O intuito deste artigo não é esgotar o tema, mas sim contribuir para que a violência de gênero possa ser entendida e combatida, permitindo maiores debates e soluções sobre a questão. A melhor maneira de se adentar ao tema é a própria definição encontrada no dicionário Aurélio, que através de duas vertentes, expõe com maestria sua definição.1

Desta forma, o gênero está relacionado com sua identidade, ou seja, a forma como a pessoa se reconhece. Esse reconhecimento pode ser como homem, como mulher, como ambos ou como nenhum deles. A partir dessa premissa, podem-se destacar os cisgêneros, os transgêneros e os não binários. O cisgênero é aquele que se identifica com seu gênero de nascimento (se sente bem com os órgãos sexuais de nascimento); enquanto que o transgênero (pessoa que nasce com o gênero feminino ou masculino) não se identifica com o sexo de nascimento, se identificando, geralmente, com o gênero oposto de seu nascimento. Já o não binário pode ser caracterizado como uma mistura entre o gênero masculino e feminino, ou mesmo a total indiferença entre eles. Na verdade esses indivíduos não podem ser atribuídos aos gêneros masculino e feminino, criando, assim uma nova identidade que transcende ao conceito padrão de homem e mulher. Para ilustrar o exemplo de não binário, urge a citação do seguinte entendimento:2

Neste hiato, as diferenças que emanam sobre o gênero são condições essenciais para que possamos discorrer sobre a violência de gênero. Como falar sobre violência de gênero, se muitas vezes não há o entendimento sobre a etimologia dessa palavra e suas variações no universo cultural e jurídico?

Desta forma, deve-se demonstrar a diferença entre identidade de gênero e orientação sexual. A identidade de gênero é a forma como a pessoa se enxerga, se reconhece, independentemente de sua orientação sexual (gay, bissexual, heterossexual, assexual, etc). É perfeitamente possível um homem transgênero (que nasceu com órgão sexual feminino, mas que se identifica como gênero masculino), ter qualquer tipo de orientação sexual. Veja-se que o fator que define a orientação sexual nada mais é do que o tipo de atração sexual que a pessoa sente. Portanto, uma vez registrada essa diferença, o conceito e entendimento de identidade e orientação passam a ser enxergadas de uma forma mais natural. Não se pode deixar de mencionar, que o decreto 8.727/16 dispôs sobre o uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas e transexuais no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional. Assim, o uso do nome social foi contemplado pelo decreto citado, o que ocasiona a ideia de que mesmo que a pessoa trans não tenha, ainda, a modificação em seu registro, deverá ser respeitada sua vontade, devendo ser inserido em seus documentos escritos e no atendimento em geral, seu nome social. O respeito e a preservação do nome social sempre devem estar acima de qualquer coisa, eis que é a manifestação da vontade e da forma como a pessoa se enxerga, através de sua identidade que culmina na preservação do princípio da dignidade da pessoa humana, que salvaguarda sua identidade de gênero.

Não se pode deixar de mencionar os documentos internacionais sobre diversidade e sua aplicação, eis que tais documentos protegem a vida em sociedade. Nesta esteira, não se pode olvidar do documento que foi o marco inicial para que os direitos e liberdades pudessem ser reconhecidos mundialmente. Trata-se da Carta das Nações Unidas que foi criada no ano de 1945. Tal declaração se fez necessária, para que existisse uma diretriz no pensamento e na liberdade do ser humano, principalmente após as atrocidades cometidas na segunda guerra mundial. O próximo passo foi a criação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948. Cumpre destacar, documento inserido no cenário internacional, no qual foi assinado pelo Brasil em 2006, intitulado como Princípios de Yogyakarta. Esse documento elenca 29 princípios que devem ser aplicados na legislação internacional dos direitos humanos em relação à orientação sexual e à identidade de gênero. Sobre o tema em comento, destacam-se os ensinamentos elaborados no art. Proteção das Minorias no Direito Internacional.3    

A violência de gênero, infelizmente, é uma triste realidade em nosso país e acaba afetando além da dignidade e bem estar das vítimas, a sociedade como um todo, de tal sorte, que este enfrentamento é dever e compromisso de todos, na salvaguarda dos direitos fundamentais.

A definição de violência de gênero, nada mais é do que várias espécies de agressões. Essas agressões ocorrem em âmbito físico, psicológico, sexual e até mesmo simbólica (vulnerabilidade na identidade de gênero ou orientação sexual). As estatísticas sobre esse tipo de violência vêm crescendo exponencialmente, estando em primeiro lugar desse ranking, as mulheres, não se esquecendo de que homens, minorias sexuais e de gênero também são alvos de agressões. Com o fito de tentar coibir a violência, o direito penal direciona os infratores para os artigos de lei que versam sobre as penas existentes na particularidade de cada crime. Assim, o homicídio é a capitulação para aquele individuo que tira a vida de outrem (art. 121 do CP). Todavia, se o agressor realiza o crime contra a mulher (por conta da condição de sexo feminino), estamos diante de um homicídio qualificado (feminicídio), além de ser considerado crime hediondo. Não se pode renegar, que nas estatísticas que envolvem agressões em mulheres, a comunidade LGBT, não pode ser esquecida, pois existem muitas mulheres trans que são agredidas e mortas. Neste panorama, as agressões também envolvem além de mulheres trans, homens trans, além de lesbocídio, não deixando de mencionar que as pessoas pretas sofrem muito mais agressões do que pessoas brancas. O panorama não é diferente quando as agressões são de cunho sexual, com proteção da lei penal tipificando os crimes de estupro, ato libidinoso, importunação sexual, além de outros crimes contra a dignidade sexual que estão catalogados no CP (art. 213/234-B), além de leis extravagantes (como exemplo cita-se o Crime de Stalking – perseguição – lei  14.132/21). Existem também agressões virtuais no âmbito da liberdade sexual, como a pornografia de vingança, na qual o agressor ameaça e publica seus vídeos ou fotos íntimas pela internet, expondo a vítima perante um sem número de pessoas. Impende evidenciar que a Lei Maria da Penha (lei 11.340/06 e suas alterações), protege a mulher (sujeito passivo) na cadeia do crime. Neste bordo, de bom alvitre citar o magistério de Maria Berenice Dias.4

Sobreleva, o pensamento da excelentíssima desembargadora Ely Amioka, que através do seguinte acórdão, assim lecionou.5

No bojo do acórdão 2021.00010058756, encontra-se citação doutrinária da lavra dos juristas Rogério Sanches Cunha e Maria Berenice Dias, que assim ensinam.

Para finalizar, não se pode deixar de transcrever trecho do acórdão 2021.0000822692.7

Denota-se das informações trazidas, de que o Estado e o direito vivem em constante evolução e ambos, devem se amoldar às novas realidades que permeiam a vida cotidiana. Assim, depreende-se que mesmo com as mudanças e alterações legislativas consigam demonstrar que os conceitos e ideias não são imutáveis, ocorrendo uma dicotomia estrutural na sociedade, o que ocorre, na verdade, é o preconceito que entremeia as relações em todas as suas vertentes. Portanto, para se combater a violência de gênero, será crucial a aceitação do gênero e suas identidades e que todos merecem respeito._____

1 GÊNERO: “Conceito generalista que agrega em si todas as particularidades e características que um grupo, classe, seres, coisas têm em comum”. “Diferença entre homens e mulheres que, construída socialmente, pode variar segundo a cultura, determinando o papel social atribuído ao homem e à mulher e às suas identidades sexuais”. Dicionário Aurélio online.

2 “A pessoa não binária é aquela que não se identifica nem com o gênero masculino, nem com o gênero feminino. Sua identidade de gênero não se encaixa 100% dentro do binário de gênero. Isso significa que a pessoa não binária não se identifica necessariamente como homem ou mulher, podendo assumir um gênero neutro, transitar entre os gêneros ou mesmo mesclá-los (dentre outras possibilidades). Costuma-se dizer que o não binário é um termo “guarda-chuva”, capaz de abrigar dentro de si uma infinidade de identidades de gênero. O nome genderqueer (ou gênero queer) também é utilizado para nomear toda a multiplicidade de identidades não binárias (...) O site Orientando, cuja missão é ensinar as pessoas sobre temas como orientação sexual e identidade de gênero, reúne 300 identidades não binárias. Mas adverte que a lista não está completa, já que outras formas de identificação são possíveis. (...)”.Retirado do seguinte texto da internet: https://www.significados.com.br/tipos-de-pessoas-nao-binarias.

3 Oliva, Thiago Dias e K:unzli, Willi Sebastian in www.revistas.usp.br. R. Fac. Dir. Univer. São Paulo, v. 113, p.703/719, jan/dez 2018.

4No que diz com o sujeito passivo, ou seja, a vítima da violência há a exigência de uma  qualidade especial: ser mulher. Assim, lésbicas, transexuais, travestis e transgêneros, que tenham identidade social com o sexo feminino estão sob a égide da Lei Maria da Penha” Dias, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na justiça: a efetividade da Lei 11.340/2006 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012. 3ª edição, pp. 61/62.

5 “Assim é que a Lei nº 11.340/06 não visa apenas a proteção à mulher, mas sim à mulher que sofre violência de gênero (...). Tem-se que a expressão “mulher”, contida na lei em apreço, refere-se tanto ao sexo feminino quanto ao gênero feminino. O primeiro diz respeito às características biológicas do ser humano (...) enquanto o segundo se refere à construção social de cada indivíduo (...)”.2 Mandado de Segurança nº 2097361-61.2015.8.26.0000, 9ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, j. 08/10/2015.

6 “(...) no caso de transexual que formalmente obtém o direito de ser identificado civilmente como mulher, não há como negar a incidência da lei penal porque, para todos os demais efeitos, esta pessoa será considerada mulher.” (in Manual de Direito Penal, Parte Especial. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 66).  “(...) a família não é constituída por imposição da lei, mas, sim, por vontade dos seus próprios membros. O preceito teve enorme repercussão. Como é assegurada proteção legal a fatos que ocorrem no ambiente doméstico, isso significa que o legislador reconhece as uniões de pessoas do mesmo sexo como entidade familiar. Depois do julgamento com efeito vinculante proferido pelo Supremo Tribunal Federal que reconheceu as uniões homoafetivas como entidade familiar e da Resolução do Conselho Nacional de Justiça impedindo que seja negado acesso ao casamento e o conceito legal de família trazido pela Lei Maria da Penha, não se justifica que o amor entre iguais seja banido da proteção jurídica. As desavenças envolvendo uniões homoafetivas em que a vítima é lésbica, travesti ou transexual são reconhecidas como violência doméstica.” (in A Lei Maria da Penha na Justiça. 6ª ed. ver. e atual. Salvador: Editora JusPodivm, 201, p. 62). Paulo São Paulo. Data:, 10 de dezembro de 2021.FREITAS FILHO, Relator.

7 “(...) Registre-se que a transexualidade singulariza o desejo de viver e ser aceito enquanto pessoa do sexo oposto, sendo que a transexual do gênero feminino não se comporta ou age, em momento algum, como um homem, razão pela qual eventual relação com parceiro do mesmo sexo é vista como de natureza heterossexual. Logo, a transexual feminina pertence ao gênero feminino, ou seja, ela é mulher e, em razão disso, busca, persistentemente, a adequação a esse gênero, seja do ponto de vista físico seja social. Consequentemente, no caso dos autos, em respeito à sua identidade de gênero, não há que se falar em inaplicabilidade da Lei nº 11.340/06. (...); “A transexualidade é uma divergência entre o estado psicológico de gênero e as características físicas e morfológicas perfeitas que associam o indivíduo ao gênero oposto. Caracteriza-se por um forte conflito entre o corpo e a identidade de gênero e compreende um arraigado desejo de adequar hormonal e cirurgicamente o corpo ao gênero almejado. Existe uma ruptura entre o corpo e a mente, o transexual sente-se como se tivesse nascido no corpo errado, como se esse corpo fosse um castigo ou mesmo uma patologia congênita. O transexual se considera pertencente ao sexo oposto, entalhado com o aparelho sexual errado, o qual quer ardentemente erradicar. Enquanto o homossexual aceita seu sexo biológico, o transexual rejeita seu próprio sexo anatômico. O transexual masculino tem ego corporal e psíquico femininos. Com o transexual feminino, ocorre o contrário.” (in Homoafetividade e os direitos LGBTI. 6ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. pps. 43 e 269). Em vista disso, justamente os artigos 2º e 5º, parágrafo único, da Lei Maria da Penha, vedam qualquer forma de discriminação em razão da orientação sexual, sendo inconteste que as transexuais estão em situação de dupla vulnerabilidade, pois suportam a discriminação tanto pelo gênero quanto pela orientação sexual. Então, deve-se ter em mente que, ao passo que a sociedade evolui, a legislação tem que acompanhar as mudanças e é indevido deixar à margem da proteção legal aqueles que se reconhecem como mulher, sendo dever do Estado, ainda, garantir a integridade física e psíquica de qualquer forma de família. Isto posto, o sujeito passivo da Lei nº 11.340/2006 abrange lésbicas, transexuais, travestis e transgêneros, que possuam identidade social com o sexo feminino, estando, assim, sob a égide da Lei Maria da Penha e a agressão contra elas, no âmbito familiar, constitui violência doméstica. Nessa lógica, o Grupo Nacional de Direitos Humanos (GNDH) e o Fórum Nacional de Juízes e Juízas de Violência Doméstica e Familiar Contra Mulher (FONAVID) aprovaram os seguintes entendimentos: ENUNCIADO 30: “A Lei Maria da Penha pode ser aplicada a mulheres transexuais e/ou travestis, independentemente de cirurgia de transgenitalização, alteração do nome ou sexo no documento civil.” (Aprovado na I Reunião Ordinária do GNDH em 05/05/2016 e pelo Colegiado do CNPG em 15/06/2016). ENUNCIADO 46: “A lei Maria da Penha se aplica às mulheres trans, independentemente de alteração registral do nome e de cirurgia de redesignação sexual, sempre que configuradas as hipóteses do artigo 5º, da Lei 11.340/2006.” (APROVADO no IX FONAVID Natal). ENUNCIADO 46: “Aplica-se a Lei Maria da Penha a qualquer violência praticada por homem, no âmbito das relações domésticas e familiares de parentesco, contra vítima do gênero feminino, sendo presumida a vulnerabilidade.” (Aprovado na I Reunião Ordinária do GNDH, em 08/03/2018) (...). Apelação Criminal nº 1500718-39.2020.8.26.0545. 3ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo São Paulo. Data: 6 de outubro de 2021. TOLOZA NETO – Relator.

Maurício Luís Maranha Nardella
Advogado criminalista com cursos de extensão em processo penal, direito penal, execução penal e tribunal do júri.

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