A lei 14.155/21 alterou o crime de invasão de dispositivo informático, melhorando sua redação e aumentando substancialmente suas penas (art. 154-A do CP). Além disso, finalmente, foram criados os crimes específicos de furto mediante fraude eletrônica (art. 155, § 4º-B do CP) e de fraude eletrônica (art. 171, § 2º-A do CP). A mesma lei ainda definiu o local competente para julgar os crimes de estelionato cometidos por meio de cheque sem fundos, com pagamento frustrado, ou por transferência de valores que passou a ser, nesses casos, o local da residência da vítima (art. 70, § 4º, CP).
Como visto, foi acrescentado no art. 171 do Código Penal, que define o crime de estelionato, o § 2º-A, uma modalidade de estelionato qualificado,1 a qual recebeu o nomen iuris de “fraude eletrônica”, cuja definição legal é a seguinte:
“A pena é de reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa, se a fraude é cometida com a utilização de informações fornecidas pela vítima ou por terceiro induzido a erro por meio de redes sociais, contatos telefônicos ou envio de correio eletrônico fraudulento, ou por qualquer outro meio fraudulento análogo”.
A inovação legislativa chegou com algum atraso, pois as condutas que se enquadram em sua definição, assim como as equivalentes ao furto mediante fraude eletrônica, causam intranquilidade há algum tempo2.
As referidas qualificadoras surgem como consequência das novas formas de comunicação e interação social e comercial. Há muito tempo era desejada a criminalização adequada de tais comportamentos. Até então, utilizávamos o nosso arcaico e “analógico” Código Penal para enquadramento da subtração e transferências patrimoniais das vítimas realizadas por meio de fraudes com a utilização de dispositivos informáticos ou telemáticos.
O legislador optou por criar criminalizações específicas, com penas próprias, inserindo as definições em figuras típicas já existentes, respectivamente, no crime de furto (art. 155, § 4º-B, CP) e no de estelionato (art. 171, § 2º-A, CP).
As penas foram especialmente aumentadas, de quatro a oito anos de reclusão além de multa. A pena mínima equiparou-se à do crime de roubo (art. 157 do CP) e é maior, por exemplo, que a do crime de aborto sem o consentimento da gestante (art. 125 do CP), superando em muito também a pena do homicídio culposo (art. 121, § 3º, do CP). Figuras criminosas análogas em legislações de outros países preveem penas substancialmente mais baixas. Condutas assemelhadas são punidas na Argentina com pena de prisão de um mês a seis anos (art. 173, 16, CP) e na Itália com reclusão de um a cinco anos e multa (art. 640-ter, CP).
Apesar da demora na criação de tipos específicos para as referidas condutas, constatamos uma inconsistência na redação da fraude eletrônica (art. 171, § 2º-A, CP), pois, em nosso pensar, o legislador equivocou-se na definição da ação delitiva.
Conforme a definição legal, colacionada acima, ocorrerá o crime “se a fraude é cometida com a utilização de informações fornecidas pela vítima ou por terceiro induzido a erro por meio de redes sociais, contatos telefônicos ou envio de correio eletrônico fraudulento, ou por qualquer outro meio fraudulento análogo”.
Ao analisar o texto do dispositivo com atenção, percebe-se que não há uma ação criminalizada. Observe-se que a punição está condicionada ao cometimento da fraude (“se a fraude é cometida”) com a utilização de informações fornecidas pela vítima ou por terceiro induzido a erro pelos meios de rede sociais etc.
Ocorre que, consoante colocado no dispositivo em análise, a elementar “fraude” não se apresenta como verbo ou tempo verbal a designar ação ou comportamento humano. A elementar apresenta-se como um substantivo, ou seja, “qualquer ato ardiloso, enganoso, de máfé, com o intuito de lesar ou ludibriar outrem, ou de não cumprir determinado dever; logro” (Houaiss). O legislador utilizou a mesma construção do furto mediante fraude eletrônica (art. 155, § 4º-B): “se o furto praticado mediante fraude eletrônica é cometido”. Ocorre que, neste caso, há remissão expressa ao furto, ou seja, fica claramente subentendido que incidirá a qualificadora, quando ocorrer “subtração de coisa alheia móvel para si ou para outrem” cometida por meio de informação obtida sem consentimento por meios informáticos ou telemáticos ou informáticos, ocorrerá o furto mediante fraude eletrônica.
No entanto, em relação à fraude eletrônica não existe semelhante referência ao estelionato e não existia (e data venia ainda não existe), uma figura criminosa de “fraude”. Ao contrário, a elementar (normativa) fraude é encontrada em diversos dispositivos do Código Penal sempre no sentido substantivo, equiparado a um ato praticado para enganar, ardil, artifício e sem uma conotação de locupletamento, nunca como núcleo do tipo. Neste sentido, observe-se os dispostos nos artigos 149 (tráfico de pessoas); art. 155, § 4 º, II, e § 4º-C (furto mediante fraude); 203, § 2º (frustração de direito trabalhista); 215 (posse sexual mediante fraude); 230, § 2º (favorecimento à prostituição mediante fraude).
Em resumo, em nosso entendimento, não há previsão ou remissão clara de conduta (ação humana) na qualificadora criada pelo art. 171, § 2º-A, do CP, o que viola os preceitos, constitucional, do art. 5º, inciso XXIX da Constituição e, legal, do art. 1º do Código Penal, os quais proclamam que “não há crime sem lei anterior que o defina”.
O ideal seria utilizar a mesma construção do furto mediante fraude eletrônica, com remissão expressa ao estelionato, por exemplo, “se o estelionato é cometido”; ou utilizar os núcleos penais que compõem o estelionato “se a obtenção de vantagem indevida é obtida”. Ao criar um tipo penal (fraude eletrônica) com definição inserida em outro (estelionato), criou-se a confusão, pois, diferentemente de outros países (Itália, por exemplo), nós não possuíamos um delito autônomo de fraude. O estelionato, segundo a legislação brasileira, não é simplesmente o cometimento de fraude, mas a obtenção de vantagem indevida (consumada ou tentada) por meio dela.
Cabe alertar que o tipo do estelionato (art. 171, caput, CP) sequer utiliza a expressão fraude, menciona “artifício, ardil ou outro meio fraudulento” como meios de execução do comportamento reprovado penalmente, a obtenção de vantagem indevida.
Em complemento, a qualificadora estabelecida no art. 171, § 2º-A do Código Penal, não pode ser considerada uma norma penal em branco, pois nesta espécie de construção normativa, em nenhuma hipótese, a complementação normativa pode incidir sobre o núcleo do tipo. Ademais, ainda que se admitisse, por absurdo, tal hipótese não há no ordenamento um conceito normativo de “fraude” que permita uma complementação com conclusão razoável sobre o comportamento delitivo incriminado. Incabível, assim, o que a doutrina denomina de autointegração ou heterointegração normativa.3
O erro na terminologia utilizada, em nosso pensar, prejudica o perfeito entendimento do enunciado e viola o princípio da legalidade.
Não se pode perder de vista a finalidade garantidora do tipo penal (lex stricta et certa), a impedir qualquer tipo de interpretação extensiva ou analógica para buscar definição típica de uma finalidade que não está prevista, explícita ou implicitamente, na lei: a obtenção de vantagem patrimonial indevida.
Como recorda Bacigalupo:4
“O princípio da legalidade impõe suas exigências não apenas ao juiz que aplica a lei, mas também, ao Parlamento que a dita. Em outras palavras: do princípio da legalidade surgem consequências para a criação da lei e para sua aplicação. As exigências referentes ao Parlamento têm por objetivo reduzir ao mínimo razoável a possibilidade de decisão pessoal (subjetivismo) dos tribunais na configuração concreta do fato que se proíbe. O cumprimento dessas exigências por parte da lei ditada pelo Parlamento é pressuposto da eficácia da função garantidora da lei penal. Neste sentido, a lei criada pelo Parlamento somente estará de acordo com o princípio da legalidade se contiver uma descrição das proibições e das sanções previstas para sua violação que possa ser considerada exaustiva. Em princípio serão exaustivas aquelas disposições que contenham todos os pressupostos que condicionam a pena e determinem a consequência jurídica”.
As condutas que possam caracterizar fraude eletrônica, no feitio legal atual - obtenção de vantagem indevida realizada por meios de mídias sociais, contatos telefônicos ou mensagens eletrônicas fraudulentas - devem ser enquadradas na figura simples do crime de estelionato, pois melhor se enquadram ao disposto no caput do art. 171 do Código Penal.
Em conclusão, conforme exposto, diante da deficiência terminológica, pensamos ser inconstitucional o dispositivo legal que criou o crime de fraude eletrônica (art. 171, § 2º-A, CP), por ofensa ao princípio legalidade.
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1 Mutatis mutandis, tal como o latrocínio (art. 157, § 3º, II, CP) que, apesar do nome próprio, é um roubo qualificado pela morte da vítima.
2 Para efeitos comparativos, a Argentina criou figura típica análoga em 2008, o Peru em 2013 e o Chile em 2015.
3 Como ensina Bobbio, a autointegração opera mediante recurso a ordenamentos diversos ou fontes dominantes (outras leis ou Constituição) por meio da analogia ou dos princípios gerais do Direito, enquanto a heterointegração opera, em caso de lacuna da lei e o recurso seria o poder “criativo do juiz” (Teoria do Ordenamento Jurídico, Bauru: Editora Edipro, 2020, p. 137-41).
4 BACIGALUPO, Henrique. Direito Penal – Parte Geral. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 109. Grifos não existentes no original. considerada exaustiva. Em princípio serão exaustivas aquelas disposições que contenham todos os pressupostos que condicionam a pena e determinem a consequência jurídica”.