Este ensaio tem por objetivo analisar o julgamento antecipado parcial de mérito e o acórdão da 3ª turma do STJ no RESp 1.845.542 (Rel. min. Nancy Andrighi – J. em 11/5/21 – DJe de 14/5/21) - instituto que faz parte, juntamente com a tutela provisória e a improcedência liminar, das técnicas de aceleração decisional.1
Vale lembrar os objetivos traçados pelo legislador de 2015 no que respeita ao fracionamento do julgamento litigioso, permitindo a quebra da unicidade do julgamento meritório e a entrega (total ou parcial) da tutela jurisdicional definitiva, com cognição exauriente e estabilização apta à formação de coisa julgada (arts. 355 e 356, do CPC/15).
Neste contexto, não há dúvida acerca da importância do julgamento antecipado de mérito (total ou parcial) como instrumento de aceleração da tutela jurisdicional, desde que atendidos os requisitos previstos na legislação processual e não haja necessidade de produção probatória (AgInt no AREsp 1287578 / RJ – rel. min. Ricardo Villas Bôas Cueva – 3ª T – J. em 08/06/2020 - DJe 18/6/20).2
Em termos legais, pedido incontroverso é aquele reconhecido ou mesmo não impugnado, podendo ocorrer quando, havendo cumulação simples de pedidos, o réu impugna apenas um deles, ou em caso de pedido único, a irresignação alcança apenas parcela dele.3 A aplicação da técnica, portanto, requer cumulação de pedidos autônomos ou, em caso de pedido único, seja desmembrável ou decomponível.4
De fato, se um dos pedidos ou parcela resta incontroverso, deve o magistrado resolvê-lo imediatamente, e com isso diminuindo, em relação a este, o pesado ônus decorrente da tramitação processual. A questão a ser tratada, com referência ao recente precedente advindo da 3ª turma do STJ, é se o julgamento parcial de mérito pode ser aplicado pelos tribunais, em causas de competência originária ou na apreciação recursal.
A hipótese do art. 356, I, do CPC/15 trata de antecipação parcial do mérito mediante técnica de aceleração decisional, com cognição exauriente apta à estabilização decorrente da coisa julgada, abreviando o início da fase de cumprimento da decisão (que tecnicamente não é sentença5).
Ora, se o sistema processual permite, e até estimula, a cumulação de pedidos, o amadurecimento precoce de um deles enseja o desmembramento da tutela definitiva. Esta afirmação serve para se concluir que a sentença, por vezes, é o pronunciamento que encerra no máximo a fase cognitiva do procedimento (art. 203, §1º, do CPC/15); contudo, nos casos de pedidos cumulados, sendo um deles apreciado precocemente, rejeitado ou acatado, tal decisão não se configura sentença, assim decisão interlocutória definitiva, sujeitando-se a interposição de agravo de instrumento (art. 1015, II, do CPC/15).6
Da mesma forma, o CPC/15 permite a “extinção parcial do processo” (art. 354, §único), com o desmembramento do objeto litigioso e, se for o caso, irresignação por meio de agravo de instrumento e formação de coisa julgada parcial nos casos previstos no art. 487, II e III, do CPC/15.
Aliás, os pontos ora apresentados trazem importantes consequências, uma vez que a coisa julgada não ocorrerá apenas em um só momento, o que reflete na fluência do prazo decadencial para o ajuizamento da ação rescisória e na possibilidade de cumprimento de decisão judicial em momentos diferenciados. Enfim, a resolução parcial de mérito prestigia as normas fundamentais do processo civil (celeridade, a duração razoável do processo e primazia da resolução de mérito), com clara técnica de aceleração decisional e fracionamento do momento do cumprimento do julgado.
A questão que merece enfrentamento específico é se o art. 356, do CPC/15, é aplicável apenas aos juízos de primeiro grau ou também no âmbito dos tribunais (competência originária ou recursal).7
Não resta dúvida que pelos menos três dispositivos o CPC/15 devem ser analisados como técnicas também aplicáveis às causas de competência originária dos tribunais, apesar da legislação mencionar o cabimento de recursos típicos contra decisões de primeiro grau, a saber: I) art. 332 (improcedência liminar - §2º indica cabimento de apelação); II). art. 354 (extinção total ou parcial do processo – com menção ao cabimento de apelação ou agravo de instrumento; III) art. 356 (julgamento antecipado parcial de mérito –§6º menciona o cabimento de agravo de instrumento).
Portanto, estes dispositivos devem ser analisados e aplicados em causas de competência originária dos tribunais (como, por exemplo, ação rescisória e mandado de segurança)8, provocando a interposição de recursos como agravo interno, especial, extraordinário, ordinário, embargos de declaração, etc. No tema vale citar passagem da ementa do acórdão proferido no REsp 1761211 / SP (STJ – 1ª turma – rel. min. Sérgio Kukina – J. em 07/11/2019 – DJe 12/11/2019):
“1. Consoante aval da doutrina e da jurisprudência, a técnica da liminar improcedência do mérito da ação, como prevista no art. 285-A do revogado CPC/73 (replicado, com inovações, no art. 332 do CPC/15), é perfeitamente aplicável nas demandas de competência originária dos tribunais, aí incluída a ação rescisória”.
Aliás, também em sede recursal não vislumbro qualquer impedimento para a aplicação destes dispositivos da legislação processual em vigor. Em relação especificamente ao art. 356, do CPC/15, é importante ressaltar que, se a legislação processual permite o fracionamento do objeto com resolução de um dos pedidos já pronto para julgamento, nada impede que o órgão recursal, ao julgar o recurso contra decisão proferida em primeiro grau, resolva o mérito da parte já pronta para julgamento e determine, se for o caso, o retorno da outra parte para o juízo de origem complementar a instrução.
Um exemplo pode auxiliar na análise da questão aqui discutida: imagine demanda proposta em primeiro grau com pedido de rescisão contratual cumulado com danos morais e materiais. O juízo de primeiro grau, no momento do julgamento conforme o estado do processo, acolhe a preliminar suscitada pelo réu, com extinção do processo sem resolução de mérito (arts. 354 c.c 485, IV, do CPC/15). Ao apreciar o recurso de apelação do autor e aplicando inclusive a teoria da causa madura (art. 1.013, §3º, I, do CPC/15), o relator monocraticamente ou o órgão fracionário do tribunal, pode reformar a sentença e afastar a preliminar, julgando procedente o pedido de rescisão contratual (que está pronto para julgamento meritório), e determinando o retorno do feito à origem para adentrar na fase instrutória em relação ao pedido de danos morais e materiais.
Ou seja, a técnica do fracionamento da resolução de mérito é plenamente aplicável no âmbito recursal, desde que atendidas as disposições do art. 356, do CPC/15: a leitura deste dispositivo e admissão do fracionamento do objeto do processo com técnica de aceleração decisional não está restrita ao juízo de primeiro grau.
Neste sentido, importante destacar o acerto de recente decisão da 3ª turma do STJ, relatada pela Exma. min. Nancy Andrighi (REsp 1.845.542 (J. em 11.05.2021 – DJe 14.05.2021). No caso concreto, além de enfrentar a aplicação do art. 356, do CPC/15, aos tribunais, foram analisadas outras questões importantes como: complementação de provas pelo tribunal, fixação de honorários advocatícios no julgamento parcial; sucumbência recíproca, afastamento da unicidade da sentença etc.
Vale transcrever passagem do voto da exma. min. relatora:
“18. Com efeito, o art. 1.013, § 3º, do CPC/2015, autoriza o tribunal a julgar o mérito caso tenha reformado a sentença prolatada sem exame do mérito, constatado a omissão no exame de um dos pedidos (sentença citra petita), decretado a nulidade da sentença por falta de fundamentação ou porque é ultra ou extra petita. Em acréscimo, o § 5º do mesmo dispositivo legal também permite ao Juízo de segunda instância proceder dessa forma, se possível, quando reformar a sentença que reconheceu a decadência do direito ou a prescrição da pretensão. Trata-se da teoria da causa madura, cuja aplicação pressupõe que as partes não tenham nada mais a alegar ou a provar a respeito da matéria. 19. Imagine-se, por exemplo, uma ação na qual foram cumulados dois pedidos. Após oferecida a contestação, sem que tenha se adentrado a fase instrutória, o juízo de primeiro grau reconheceu a prescrição da pretensão com relação a ambos os pleitos e, então, julgou-os improcedentes. Interposta a apelação, o tribunal concluiu que o pedido A estava prescrito, mas não poderia ser analisado sem a produção de provas, mas o pedido B não estava prescrito e a prova documental acostada aos autos era suficiente para seu julgamento. 20. Nesse caso, congregando-se a teoria da causa madura e a técnica do julgamento antecipado parcial do mérito, infere-se ser mais coerente com o sistema possibilitar que o tribunal casse a sentença apenas parcialmente, para determinar que o juízo de primeiro grau dê prosseguimento ao processo com relação ao pedido A, e julgue imediatamente, no mérito, o pedido B. 21. A cisão do julgamento, em situações como a narrada, viabiliza a prestação, desde logo, de parte da tutela jurisdicional e está em consonância com os princípios da eficiência, da razoável duração do processo e da economia processual”.
Trata-se de importante precedente advindo da Corte de Justiça e que auxilia na compreensão do diálogo entre dois importantes institutos processuais, a saber, a teoria da causa madura e o julgamento antecipado parcial de mérito. Em suma: o art. 356, do CPC, permite o alcance das normas fundamentais processuais citadas anteriormente e não está adstrito às causas em tramitação junto ao juízo de primeiro grau.
Nos tribunais, há a necessidade de análise acerca do desmembramento do objeto litigioso, com a cisão meritória e aplicação, se for o caso, da teoria da causa madura, refletindo nas fases processuais subsequentes (recursos e cumprimento de decisão de forma parcial). Como mencionado no exemplo anterior, nada impede que um capítulo do mérito seja apreciado imediatamente pelo tribunal, com determinação de devolução ao primeiro grau, de outros ainda pendentes de aprofundamento probatório.
A hipótese citada no item 19 do voto da min. Nancy Andrighi também é muito importante, especialmente considerando o disposto no art. 1013, §4º, do CPC (aplicação da teoria da causa madura aos casos de prescrição e decadência): afastamento da prescrição declarada em primeiro grau, com apreciação meritória de um dos capítulos já pronto para julgamento e determinação de retorno do outro para devida instrução probatória.
Claro que, para a aplicação do art. 356, do CPC, há a necessidade de atendimento dos requisitos mencionados no item 10 do voto da exma. min. relatora:
“Além da independência dos pedidos ou da possibilidade de fracionamento da pretensão, é imprescindível que se esteja diante de uma das situações descritas no art. 356 do CPC/2015, a saber: um ou mais pedidos ou parcela deles (i) é incontroverso (inciso I) ou (ii) está em condições de imediato julgamento, em razão da desnecessidade de produção de outras provas ou devido à revelia, desde que acompanhada dos efeitos previstos no art. 344 do CPC/2015 (inciso II)”.
Portanto, se deve fazer a leitura do art. 356, do CPC/15 como técnica voltada à primazia da resolução de mérito em várias fases procedimentais, cabendo ao magistrado e/ou ao órgão colegiado verificar a existência dos requisitos legais para o desmembramento do objeto e a aceleração do provimento meritório.
Aliás, não se deve esquecer que, na legislação de 2015, existem duas situações que provocam o desmembramento do processo na etapa denominada julgamento conforme o estado do processo, a saber: a) a extinção do processo parcial (art. 354, §único); b) o julgamento antecipado parcial de mérito (art. 356, do CPC/15).
Por derradeiro, interessante é destacar que os arts. 485 e 487, do CPC/15, não indicam mais o termo extinção, levando em conta que, em caso de decisão parcial, o processo ainda tem prosseguimento em relação aos capítulos não atingidos pelo desmembramento decisional.
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1 ARAÚJO, José Henrique Mouta. O fracionamento do objeto litigioso e as técnicas de aceleração decisional no CPC/15 . Disponível em https://www.migalhas.com.br/depeso/346587/o-fracionamento-do-objeto-litigioso. Acesso em 1.06.2022.
2 Ainda no tema, vale citar o item da Ementa 4 do Acórdão proferido no AgInt nos EDcl no REsp 1451163 / PR (1ª Turma – Rel. Min. Sérgio Kukina – J. em 20/04/2020 – DJe 24/04/2020): “Se os elementos constantes dos autos são suficientes à formação da convicção, tal como verificado na hipótese dos autos, é lícito ao juiz conhecer diretamente do pedido, proferindo julgamento antecipado da lide, sem que isso implique cerceamento de defesa”.
3 ARAÚJO, José Henrique Mouta. Tutela antecipada do pedido incontroverso: estamos preparados para a nova sistemática processual? Revista de processo. n. 116. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 217.
4 ARAÚJO, Luciano Vianna. O julgamento antecipado parcial sem ou com resolução de mérito. Revista
da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro. Vol. 22, n. 1, jan.-mar/2020, p. 107.
5 Quando aplicado o art. 356, do CPC/15 pelo magistrado de 1ª Instância, a decisão é interlocutória de mérito. Por outro lado, quando este dispositivo por aplicado Tribunais, o pronunciamento pode ser denominado de decisão monocrática ou mesmo acórdão. Portanto, a rigor, apenas da disposição do CPC/15 manter o entendimento de que se trata de sentença, a ordem de cumprimento, advinda do desmembramento do objeto litigioso, pode advir de outras espécies de pronunciamentos judiciais.
6 Vale citar passagem do Acórdão do STJ da 3ª Turma do STJ que, em 2015, já apontava para a discussão ligada ao conceito de sentença: “4. A novel legislação apenas acrescentou mais um parâmetro (conteúdo do ato) para a identificação da decisão como sentença, pois não foi abandonado o critério da finalidade do ato (extinção do processo ou da fase processual). Permaneceu, dessa forma, no Código de Processo Civil de 1973 a teoria da unidade estrutural da sentença, a obstar a ocorrência de pluralidade de sentenças em uma mesma fase processual. 5. A sentença parcial de mérito é incompatível com o direito processual civil brasileiro atualmente em vigor, sendo vedado ao juiz proferir, no curso do processo, tantas sentenças de mérito/terminativas quantos forem os capítulos (pedidos cumulados) apresentados pelo autor da demanda. 6. Inaplicabilidade do art. 273, § 6º, do CPC, que admite, em certas circunstâncias, a decisão interlocutória definitiva de mérito, visto que não foram cumpridos seus requisitos. Ademais, apesar de o novo Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/2015), que entrará em vigor no dia 17 de março de 2016, ter disciplinado o tema com maior amplitude no art. 356, permitindo o julgamento antecipado parcial do mérito quando um ou mais dos pedidos formulados na inicial ou parcela deles (i) mostrar-se incontroverso ou (ii) estiver em condições de imediato julgamento, não pode incidir de forma imediata ou retroativa, haja vista os princípios do devido processo legal, da legalidade e do tempus regit actum”. (REsp 1281978 / RS – 3ª Turma/STJ – Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva – J. em 05/05/2015 - DJe 20/05/2015 - RT vol. 958 p. 511).
7 Em razão do espaço aqui disponível, a análise será restrita aos Tribunais Ordinários (recursos com ampla devolutividade).
8 Quanto ao art. 332, do CPC/15 e sua aplicação pelos Tribunais, Jorge Amaury Maia Nunes e Guilherme Pupe da Nóbrega ensinam que: “uma hipótese de improcedência liminar do pedido em segundo grau, viabilizada pela aplicação da teoria da causa madura, em homenagem à razoável duração do processo e à segurança jurídica, na medida em que prestigiadora dos precedentes judiciais”. Julgamento antecipado do mérito pelo tribunal de segundo grau mediante aplicação da teoria da causa madura: uma proposta em favor de sua viabilidade. Disponível em https://www.migalhas.com.br/coluna/processo-e-procedimento/285362/julgamento-antecipado-do-merito-pelo-tribunal-de-segundo-grau-mediante-aplicacao-da-teoria-da-causa-madura--uma-proposta-em-favor-de-sua-viabilidade. Acesso em 28.07.2021.