Migalhas de Peso

A abordagem policial de suspeitos não é mais possível sem mandado?

A identificação de uma atitude suspeita não é baseada apenas na aparência do indivíduo, caso assim o fosse, estaríamos admitindo a teoria absurda de Cesare Lombroso.

26/5/2022

No julgamento do recurso em habeas corpus 158580/BA, a 6º turma do STJ, sob a relatoria do ministro Rogério Schietti Cruz, entendeu que “a busca pessoal somente é possível diante da existência de fundada suspeita (justa causa), baseada em um juízo de probabilidade, descrita com a maior precisão possível, aferida de modo objetivo e devidamente justificada pelos indícios e circunstâncias do caso concreto – de que o individuo esteja na posse de drogas, armas ou de outros objetos ou papéis que constituam corpo de delito, evidenciando-se a urgência de se executar a diligência1.

Ainda de acordo com aquele julgado: “o art. 244 do CPP não autoriza buscas pessoais praticadas como ‘rotina’ ou ‘praxe’ do policiamento ostensivo, com finalidade preventiva e motivação exploratória, mas apenas buscas pessoais com finalidade probatória e motivação correlata”.

Em que pese o respeitável entendimento, a decisão acima colacionada é mais um exemplo do descompasso entre a concepção de mundo dos tribunais Superiores e a realidade concreta do plano inferior.

É o que Platão chamava de embate entre o plano superior e o plano inferior, no qual a verdade supostamente situar-se-ia no plano das ideias.

Todavia, no mundo real, os profissionais que integram as forças de segurança e que, diariamente, arriscam as suas vidas para realizar um policiamento ostensivo em centros urbanos cada vez mais violentos, não dispõem de condições de, antes de cada ação, fazer uso da dialética.

Evidente que a abordagem policial deve ser realizada da forma menos invasiva possível, a fim de preservar os preceitos e as garantias fundamentais dos indivíduos, contudo, não é por meio de um controle excessivo da atuação policial – com a total supressão da autonomia do agente – que esse fim será alcançado.

No Brasil, infelizmente, a atividade policial é pouco compreendia e, sobretudo, não conta com nenhum reconhecimento, o que apenas contribui para a desvalorização dessa nobre carreira e o aumento da sensação de insegurança.

Segundo o coronel da PM de São Paulo, Nilson Giraldi, em artigo publicado no site da FENAPEF – Federação Nacional dos Policiais Federais, “a atividade policial é altamente complexa, estressante, difícil e mal compreendida. O policial tem regime de trabalho totalmente diferenciado dos demais trabalhadores. Não é regido pela CLT. Não tem número de horas para trabalhar, nem horários fixos. Não recebe horas extras. Não tem horário para se alimentar. Entra de serviço sem saber quando vai terminar. Nunca pode assumir compromisso social e ter certeza de que irá cumpri-lo, pois, quando menos espera, tem que dobrar o horário, cumprir escalas extras imprevisíveis, cumprir trabalhos emergenciais” .2

Tudo isso, aliado ao fato de que os agentes não contam com treinamento adequado, não dispõem de equipamentos modernos e suficientes para todo o efetivo, bem como recebem remuneração baixa frente aos riscos e complexidades da profissão, cria um cenário perfeito para uma tragédia, que, em muitas situações, o policial também é vítima.

Como observa Nilson Giraldi, “no Brasil, são assassinados, proporcionalmente em um ano, mais policiais do que nos Estados Unidos em 15 anos, uma estatística que, de acordo com ele, não há como comparar com países europeus, onde a violência contra o policial é quase zero. No Japão, por exemplo, faz 46 anos que nenhum policial é assassinado. Já no Brasil, quando o policial sai de casa, sua família nunca sabe se é a última vez que o está vendo vivo, diz”.

Não se pretende, com tais dados, justificar uma abordagem truculenta e desrespeitosa por parte da polícia, mas apenas demonstrar que a atuação policial envolve uma série de fatores e problemas, altamente complexos, e que não podem ser resolvidos com meras digressões filosóficas.

Os agentes, constantemente submetidos a um ambiente de estresse excessivo, dispõem, na maioria das vezes, apenas do tirocínio policial para, em frações de segundos, decidir abordar ou não um indivíduo.

Por outro lado, também não há como desconsiderar a existência do denominado “racismo estrutural”, contudo, não é certo dizer que este pauta a atuação policial.

Frise-se que o fato de as abordagens policiais recaírem com mais frequência sobre pessoas jovens, do sexo masculino, negras e de baixa renda e escolaridade não é simplesmente fundado em preconceito ou em uma suposta “estratégia da corporação”, voltada a reprimir as comunidades carentes, mas decorre apenas da própria dinâmica da criminalidade. Infelizmente, por fatores históricos, culturais, sociais e econômicos, pessoas com estes perfis foram marginalizadas e se encontram mais suscetíveis a integrarem as estatísticas de criminalidade.

Por isso, não é certo afirmar que o policiamento segue uma estratégia baseada no racismo estrutural, até porque grande parte do efetivo militar é composta de pessoas que integram esses segmentos sociais marginalizados.

No mais, a identificação de uma atitude suspeita não é baseada apenas na aparência do indivíduo, caso assim o fosse, estaríamos admitindo a teoria absurda de Cesare Lombroso. Na realidade, o agente analisa a situação com base em uma percepção adquirida com a experiência prática.

Trata-se de uma ação seletiva que adota critérios considerados como suspeitos, dentre os quais: expressão física (semblante), atitude, comportamento, local da ocorrência, horário, circunstância, dentre outros.

Destaque-se que essa discricionariedade do agente é mitigada, afinal, está subordinada à lei, assim como qualquer ato administrativo vinculado. Também não se desconsidera que a realização indiscriminada de abordagens policiais sem qualquer critério contribui apenas para o reforço de estereótipos sociais, culturais, geográficos e econômicos, o que não é positivo para a sociedade e para a própria imagem da corporação.

Não obstante, limitar a atuação da polícia, por meio de “protocolos teóricos”, criados por hermeneutas jurídicos, pode tolher do agente de segurança a autonomia de tomar decisões baseadas na sua expertise adquirida após anos de atuação, o que poderia importar na adoção de uma conduta que não se amolda, adequadamente, à realidade prática, gerando uma situação de risco e de vulnerabilidade ao indivíduo abordado e ao próprio agente público.

No julgamento do recurso em habeas corpus 158580/BA, também se adotou a posição de que provas obtidas sem o preenchimento do “standard probatório de fundada suspeita” também devem ser reconhecidas como ilícitas, e resultar, assim, na absolvição do indivíduo, ainda que a abordagem tenha resultado na apreensão de drogas.

Ora, respeitado o entendimento adotado pela colenda 6º turma do STJ, nesta situação há uma clara subversão de valores, em que a forma se sobrepõe ao conteúdo.

Inegável que no Estado Democrático de Direito a persecução penal deve seguir um procedimento muito bem definido para evitar a violação de preceitos e de garantias fundamentais, contudo, no processo penal, onde se busca a verdade real e não a ficta, não se mostra razoável desconsiderar a realidade fática e se apegar ao suposto descumprimento de um requisito formal, meramente procedimental.

Nesta esteira, nos deparamos com a situação absurda de um indivíduo, após ser abordado pela polícia e ser preso em flagrante, por estar na posse de 50 pequenas porções de maconha, 72 pequenas porções de cocaína, uma balança digital e dinheiro em espécie, ser absolvido do crime de tráfico de drogas sob o simples fundamento de que a busca pessoal (abordagem) teria sido ilegal, pois não cumpriu com os requisitos de “standard probatório”, ou seja, não foi precedida de uma “fundada suspeita (justa causa) – baseada em um juízo de probabilidade, descrita com a maior precisão possível, aferida de modo objetivo e devidamente justificada pelos indícios e circunstâncias do caso concreto – de que o indivíduo esteja na posse de drogas, armas ou de outros objetos ou papéis que constituam corpo de delito, evidenciando-se a urgência de se executar a diligência”.

De fato, uma célebre frase atribuída a Antonio Carlos Jobim é perfeitamente aplicável ao complexo sistema jurídico brasileiro: “o Brasil não é para principiantes”. Neste país singular é possível absolver o bandido se a abordagem policial não cumprir com o padrão “standard” de qualidade.

______________

1 Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/SiteAssets/documentos/noticias/RHC%20158580%20Ministro%20Rogerio%20Schietti%20Cruz.pdf. Acessado em 19/05/2022, às 1730.

2 Disponível em: https://fenapef.org.br/ser-policial-no-brasil-e-uma-atividade-de-alto-risco-2/. Acessado em 20/05/2022, às 10h21m.

Ivan Sartori
Desembargador, formado em Direto pela Universidade Mackenzie. Ingressou na Magistratura Paulista em janeiro de 1981 com 23 anos. Foi eleito e reeleito para compor o Órgão Especial daquela Corte, instância máxima do Judiciário Paulista. Foi o relator do atual Regimento Interno do Tribunal. Tornou-se o mais jovem Presidente da história do maior tribunal do mundo (TJ/SP), biênio 2012/13.

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