ICMS – Créditos e seus diversos conceitos
Plínio Gustavo Prado Garcia *
Esse problema toma maior vulto, quando se trata de determinar a natureza jurídica desses créditos e débitos e se cabe ou não atualização monetária de seus valores. Principalmente no contexto do ICMS.
Assim, muitas são as referências, na doutrina e na jurisprudência, a “créditos escriturais”, “créditos extemporâneos” e “créditos físicos” ou “créditos meramente físicos”. Nenhuma referência se vê, entretanto, à expressão “créditos escrituráveis”, e pouco ou nada se tem falado ou escrito sobre qual a consistência ou a natureza jurídica de todos esses créditos.
Diante disso, entende este autor haver necessidade de fixar-se uma conceituação que nos permita afastar as descabidas confusões e imprecisões doutrinárias e terminológicas, nesse particular. Inclusive no sentido de demonstrar que a adjetivação do termo “crédito” não induz sua natureza jurídica. Daí propor-se, aqui, as conceituações seguintes e também, uma análise sobre o tema da atualização de valor ou correção monetária desses créditos, e do instituto da compensação.
Créditos escriturais – Por créditos escriturais devem ser entendidos os créditos que se escriturem dentro de cada período de apuração do ICMS (período de competência). Todo crédito escritural deriva da condição de crédito escriturável. É, pois, crédito escriturável antes de se transformar em crédito escritural ou escriturado.
Créditos escrituráveis – Por créditos escrituráveis devem ser entendidos os créditos de ICMS passíveis de escrituração, ainda que não o tenham sido no respectivo período de competência. Se o crédito não for escriturável, não poderá ele converter-se em crédito escritural.
Créditos extemporâneos – Por créditos extemporâneos devem ser entendidos os créditos escrituráveis que não hajam sido escriturados no respectivo período de competência.
Créditos físicos – Essa expressão deve ser rejeitada, pois na relação fisco-contribuinte, todos os créditos são créditos de natureza financeira e de fundo econômico. E, por isso mesmo, são exigíveis tanto pelo Fisco contra o sujeito passivo, como deste contra aquele.
Créditos meramente escriturais. – Essa expressão também deve ser rejeitada, pois o crédito nasce não em razão de sua escrituração fiscal, mas por motivos alheios a essa escrituração, em virtude de fatos anteriores que a lei reconhece como fatos geradores do crédito no contexto tributário, seja esse crédito do sujeito ativo contra o sujeito passivo, seja deste contra aquele.
Saldo credor – É o montante do crédito do sujeito passivo perante o sujeito ativo (Fazenda), que resulte ao fim de cada período de apuração do ICMS, ou ao longo de mais de um desses períodos. Pode-se, assim, falar-se em “saldo credor do período” ou em “saldo credor acumulado”, quando abranja mais de um período de apuração.
Saldo devedor – É o montante do crédito do sujeito ativo perante o sujeito passivo, que resulte ao fim de cada período de apuração do ICMS. O saldo devedor não pago no vencimento sujeita-se a atualização monetária, além das cominações legais.
Créditos escrituráveis não escriturados no período de competência, também denominados “créditos extemporâneos” – Cabe aqui destacar que não é adequada a denominação ou expressão “créditos extemporâneos”, já que extemporâneo é apenas o momento em que venha a ser utilizado o crédito. Extemporâneo é, assim, o aproveitamento do crédito. O fato é que o crédito se reporta ao momento de seu surgimento (período de competência), e que, seja qual for o motivo, não foi aproveitado na compensação sistêmica do ICMS. Desse modo, o “crédito extemporâneo” é crédito escriturável não escriturado, e que vem e pode vir, por isso mesmo, a ser escriturado extemporaneamente, observado o período de prescrição.
A questão da atualização dos valores monetários (correção monetária) dos créditos e débitos no contexto tributário
É necessário fazer-se aqui uma distinção entre os momentos nos quais caberá ou não caberá a atualização dos valores monetários desses créditos e desses débitos.
Correção monetária de créditos escriturais – A correção monetária de créditos escriturais depende de expressa previsão legal, eis que os créditos e débitos surgidos e registrados dentro do período de apuração do ICMS são tomados por seu valor nominal. Essa ausência de direito a correção monetária se explica, assim, nesse contexto, pois mantém Fisco e contribuinte (sujeito ativo e sujeito passivo) em igualdade de posição, sem prejuízo a qualquer das partes.
Assim, em situação paritária, na apuração sistêmica do tributo (ICMS, por exemplo), se o crédito não tem o benefício da atualização de valor monetário, não o deverá ter, também, o débito. Inversamente, se a lei autoriza esse procedimento a favor do credor, mas não o faz a favor do devedor, a omissão da lei não pode impedir a invocação da analogia pelo devedor, em relação a seus próprios créditos contra seu credor.
A atualização de valor monetário dos créditos e débitos gerados, apurados e escriturados dentro de cada período de apuração do ICMS, também conhecida por “correção monetária de créditos escriturais de ICMS” dependeria de lei nesse sentido, como já ficou consagrado na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.
É nesse estrito contexto que se deve entender a vedação contida no disposto no §2º do artigo 38 da Lei nº 6.374/89 (clique aqui), do Estado de São Paulo, que determina a escrituração dos “créditos escriturais” pelo seu valor nominal.
A correção monetária dos saldos credores de ICMS
Como já destacamos acima, inexistem “créditos físicos” de ICMS, porquanto o são, sempre, financeiros, de fundo econômico.
Se inexiste atualização de valor quanto aos “créditos escriturais” de cada período de apuração, não se pode extrair daí a ilação de que houvesse ou haja necessidade de lei para a atualização do valor monetário dos créditos do sujeito passivo diante do Fisco, que sobejem ao período de apuração ou se acumulem ao longo do tempo, em períodos posteriores. São os conhecidos “saldos credores”.
Assim, enquanto o crédito do sujeito ativo junto ao sujeito passivo do ICMS, não pago no vencimento, se submete a atualização do valor monetário, negar-se a aplicação da analogia em favor do sujeito passivo na atualização do valor de seus créditos contra o Fisco é propiciar a este enriquecimento sem causa. Ora, a falta de atualização de valor ou atualização meramente parcial importa em permitir-se apenas o aproveitamento parcial desses créditos, dado que a atualização de valor não acarreta aumento de valor, mas sua falta, implica descabida perda parcial imposta ao titular desse crédito.
Logo, a atualização monetária dos saldos credores que não sejam ou não tenham sido utilizados de imediato na compensação sistêmica do ICMS deve ser reclamada judicialmente pelo sujeito passivo com base na analogia (antes do advento do Código Civil de 2002) (clique aqui) -- quando a lei já autorizava essa correção monetária a favor do sujeito ativo -- e na vedação do enriquecimento sem causa (art. 884 do Código Civil de 2002, que prevê, ademais, a atualização do valor monetário do crédito do lesado). Vê-se, assim, a desnecessidade de invocar-se quebra do princípio constitucional da não-cumulatividade do ICMS ou da isonomia, para que pudesse o sujeito passivo evitar lesão patrimonial ou buscar a reparação da perda sofrida por falta de atualização do valor monetário de seu crédito. E, por isso mesmo, a questão pode ser dirimida pelo próprio Superior Tribunal de Justiça, sob essas novas luzes, já que não compete ao Supremo Tribunal julgar negativa de vigência de lei federal. Não pode o Fisco invocar a inexistência de lei como argumento para obter o enriquecimento sem causa, mesmo porque se tal lei autorizasse o enriquecimento sem causa inconstitucional seria por ferir vários dos princípios constitucionais, entre eles o da moralidade da Administração Pública (art. 37 da CF/88),(clique aqui).
Já que, como contribuinte de direito, o sujeito passivo da obrigação tributária no âmbito do ICMS é mero arrecadador do imposto a ser repassado à Fazenda Pública, não deve ele suportar a carga desse tributo. Assim, a rigor, deveria a Fazenda Pública restituir-lhe a cada período seguinte ao da apuração, o montante desses saldos credores. E, como não é isso o que ocorre na prática, tem-se, aí, portanto, mais um argumento a justificar a necessidade de atualização do valor monetário desses créditos, evitando-se de impor ao contribuinte de direito indevida perda patrimonial.
A atualização do valor dos créditos extemporâneos
Considerando-se o fato de que o “crédito extemporâneo” é crédito escriturável não escriturado, e que vem e pode vir, por isso mesmo, a ser escriturado extemporaneamente, surge a questão do cabimento ou não da atualização de seu valor.
Como a passagem do tempo tem efeito sobre o valor da moeda, manter-se o valor nominal do crédito, sem atualização desse valor monetário, é o mesmo que admitir-se aproveitamento apenas parcial desse crédito, na compensação (do ICMS, neste caso), com evidente enriquecimento sem causa da Fazenda Pública, em flagrante violação ao disposto no artigo 884 do Código Civil vigente. Caso em que já cabia a invocação da analogia (art. do Código de Processo Civil) com o art. 109 da Lei nº 6.374/89 e o art. 5º do Decreto estadual paulista nº 30.356/89, base legal da correção monetária do débito tributário de ICMS, mediante adoção da UFESP, atualização essa julgada constitucional pelo Supremo Tribunal Federal no RE-AgR 172197/SP (clique aqui) – São Paulo, em 09 de maio de 2006, Primeira Turma, Relator: Min. CEZAR PELUSO, Agravante: Estado de São Paulo; Agravada: Papelok S/A Indústria e Comércio.
Destaque-se, ainda, que a atualização monetária deve ter como “dies a quo” o primeiro dia a contar do encerramento do período de competência do crédito não escriturado (já que não se atualizam os créditos e débitos dentro de um mesmo período de apuração), e como “dies ad quem” o dia ou período em que se tome o crédito extemporaneamente. Se acontecer de o crédito ter sido utilizado extemporaneamente, apenas por seu valor nominal, a diferença correspondente à atualização de seu valor será, ainda assim, cabível e escriturável, respeitado o período não prescrito.
Saliente-se, por último, que a reparação do lesado por motivo de enriquecimento sem causa não será integral se vier desprovida de atualização monetária, motivo pelo qual o mesmo artigo 884 do Código Civil determina a reparação com atualização dos valores monetários. E o Fisco não se exime de sujeitar-se a esse comando da lei.
Compensação Sistêmica e A-Sistêmica
No campo jurídico, compensação é um dos meios pelos quais se extinguem débitos e créditos recíprocos e, por conseqüência, a obrigação de pagar, tanto quanto o direito de exigir o pagamento.
Não se deve esquecer, no entanto, que a compensação é fato distinto dos motivos que lhe hajam dado causa. Assim, compensam-se valores, irrelevante o fato causador do crédito e do débito em questão, entre o credor e devedor recíprocos.
Dessa maneira, a compensação que se faça no contexto tributário, em relação a um determinado tributo, poder-se-á chamar de compensação sistêmica. Diversamente, será a-sistêmica a compensação em que o crédito a ser compensado não tenha sido originado de operação gerada no contexto do próprio tributo com o qual se fará o encontro de contas.
Será sistêmica a compensação feita, por exemplo, no âmbito do ICMS, em que os créditos do sujeito passivo derivem da saída de mercadorias ou mercadorias e serviços e venham a ser utilizados no contexto da não-cumulatividade desse imposto.
Será a-sistêmica a compensação na qual o sujeito passivo, como titular de crédito oponível à Administração, não oriundo do fato gerador do tributo em questão, utilize esse seu crédito, fazendo imputação de seu valor a favor da Fazenda Pública, a fim de que esta, constatada a validade e exigibilidade desse crédito do sujeito passivo, o acolha e, por isso mesmo, dê por feita a compensação pretendida.
A compensação a-sistêmica se fundamenta no fato de que, entre credores e devedores recíprocos, não há licitude alguma em invocar-se a causa do crédito como fator distintivo e impeditivo da compensação. Isso porque a compensação se refere a valores a serem compensados. Nunca ao fato anterior que haja dado origem ao crédito. Ademais, não há compensação de tributos, mas compensação de valores, seja qual for o contexto, tributário ou não tributário. O adjetivo não interfere na natureza jurídica do crédito ou do débito.
A transferibilidade de créditos acumulados
Como dito por este autor, os créditos e débitos na relação Fisco-contribuinte têm natureza financeira e fundo econômico.
Ademais, o contribuinte de direito do ICMS (assim como no caso do IPI), nessa sua condição, não passa de coadjuvante da administração pública. Age como auxiliar de arrecadação, mesmo não sendo remunerado por esses serviços.
Sendo assim, como é, sobressai o direito desse sujeito passivo da obrigação tributária de não ter de carregar em seu caixa e na sua contabilidade fiscal o ônus da manutenção desses créditos contra o Fisco. Como titular desse crédito contra o Fisco, faz jus ou a seu imediato ressarcimento ou a utilizá-lo como “dinheiro” na aquisição de mercadorias ou bens, ou, ainda, ao direito de cedê-lo e transferi-lo a terceiros, sem oposição da Administração Tributária.
Ao Fisco não cabe vedar essa cessão e transferência de um direito de crédito, já que o direito é desse titular e não do Fisco. A cessão e transferência de direito de natureza financeira e fundo econômico é instituto previsto na legislação civil, que, por isso mesmo, não pode ser atingido por vedações no campo tributário. Ao Fisco só há de caber a verificação da existência e da validade do crédito, conferir seu montante e alegar eventual prescrição.
Todo e qualquer dispositivo legal que negue ao sujeito passivo (contribuinte de direito) a utilização de créditos acumulados de ICMS ou sua cessão e transferência a terceiros estará eivado de nulidade e inconstitucionalidade, dado que teria o mesmo efeito de empréstimo compulsório ou de confisco.
Ademais, quem não paga o que deve, ou deixa de restituir o que restituído deve ser, não tem o direito de impor óbices à pretensão do titular do crédito, de receber o que é seu.
Conclusão
Esses são alguns dos motivos e argumentos com base nos quais esperamos contribuir para melhor encaminhamento doutrinário e jurisprudencial desses temas, que não se circunscrevem ao âmbito do ICMS. Isso porque, todo crédito e todo débito na relação Fisco-contribuinte implica valores monetários e a devida consideração do fator tempo sobre os atos e fatos jurídicos. Mormente sobre um valor a receber, que não é pago no vencimento, ou um valor a pagar, que seja pago a destempo.
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*Advogado do escritório Prado Garcia Advogados
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