Migalhas de Peso

Feminismo, gênero, sexo e outras dificuldades

A persistente discriminação com a mulher e as teorias sociais feministas produzindo ótima teorética, mas ainda insuficientes como contributivas efetivas a uma mudança nos atores coativos.

23/5/2022

A evolução internacional das teorias sociais feministas, descrita pelos sociólogos alemães Joas e Knöbl1, permite duas sensações. A satisfação de se perceber um tratamento crítico e metodológico do complexo conhecimento que o tema envolve e demanda; bem como um olhar residualmente preocupante sobre certa incompletude possivelmente desestabilizadora, nalguma medida, a respeito dos rumos teóricos e possíveis conclusões, todavia não sedimentados. É um cenário que estimula digressões.

1. Três previedades

Antes de tudo, e por primeiro, é inquestionável a legitimação teórica, sob alguns aspectos. O tema do feminismo é histórico e por isso necessário, sendo que, entretanto, continua sem uma potência universalizante que paralise ou iniba, de alguma forma, o preconceito contra a mulher. Por outro lado, como a pesquisa internacional é autoralizada, em grande medida, por mulheres, ficam excluídas eventuais suspeitas de defeito substancial da abordagem – de gênero, ou sexistas mesmo- um traço importante em assunto tão axiologicamente sensível. Ainda na questão da legitimação, o tema se vê como indispensável para a sociedade como um todo, sob duas perspectivas: a temática exige tanto o enfrentamento e constante pesquisa com divulgação de resultados; como a questão da mulher, como um todo – principalmente nos últimos anos- volta a ser severamente estigmatizada pelo discurso competente2– instituído-.

Por segundo, percebe-se, na constante evolução das teorias feministas, a existência de um radicalismo teorético quase confesso, mas em grande medida excludente e nulificador de olhares concorrentes, também legitimados, considerados ou insuficientes, ou equivocados, reparando-se que essa dificuldade se potencializa porque, às mais das vezes, é verificada na própria interrelação legitimada, uma teoria combatendo outra. Classicamente, em sede de ciência não há espaço para discussões sexistas na questão autoral da pesquisa em si, mas aqui talvez ocorra a única dificuldade conceptiva de o próprio objeto de estudo ser o sexo, o gênero e visões teóricas sobre um ‘si próprio’ e suas construções, desconstruções, funcionalidades e conceitos. Feitas as advertências, a situação não melhora, porque quando uma teoria feminista inviabiliza a teoria vizinha – e essa parece ter sido uma constante-, restam prejudicadas concepções ontológicas essencialistas que, então, autorizam tergiversações e olhares efetivamente díspares, de novo, todos eles legitimados. Se por um lado a pluralidade representa riqueza e complexidade, por outro talvez comprometa, nalguma medida, um desejável processo de maturação ou mesmo visão sedimentada que interviesse beneficamente sobre a situação da mulher como um todo.

Por terceiro e em razão de o que se anota acima, acaba verificando-se uma uniformidade entre as teorias, mas não muito além da principiologia, ou seja, como se os movimentos ainda digladiassem teoricamente entre si, não propriamente sobre a luta da mulher – o princípio-, mas sobre quais seriam os elementos e fatores – aposterísticos e desdobrados do objeto em si, a teoria feminista mesmo-. Se ainda se percebem dificuldades com uma conformidade ligada às próprias premissas, visão de mundo, estruturas iniciais, não se evolui com segurança a elementos funcionais e práticos derivados da teoria. É como que se não se afetasse o princípio, a necessidade da discussão feminista como parti pris, mas é igualmente como se não se conseguisse evoluir grandemente a partir deste ponto maiêutico. Historiadores e filósofos da ciência exigirão sedimentação temporal para a perfectibilização de um paradigma na área, na concepção kuhniana3 - o problema da universalidade do reconhecimento-, mas o estancamento do preconceito e resultados efetivos sobre a situação discriminatória reclamam pressa.

2. Uma riqueza da sociologia

Conquanto se consiga perceber riqueza e multidisciplinariedade nos dicotômicos tratamentos do tema, paradoxalmente as dificuldades tornam-no ainda aberto e dúctil, como típico de uma sociologia de outrora – vaga-, referida por Mario Bunge4 ao estudar ‘modelos em sociologia’. Se há, então, um feminismo conceptivamente clivado no aspecto teórico, mas fundamentado com esta plurissignificatividade a percepções dicotômicas das próprias pesquisadoras, fica efetivamente aporética a situação de se avaliar a ‘correção’ eletiva de uma ou outra teoria feminista, abordagem ou análise temática, de uma ou outra autora, se, como ocorre, todas as teorias expõem seus planos conceptivos com ótimos fundamentos e degraus epistemológicos demonstrados. Alguém poderá advertir que este meandro metodológico é próprio da sociologia e sua riqueza está precisamente aí. Mas, inquestionavelmente, no caso concreto, ele acaba criando dificuldades como se verá abaixo.

Acaba havendo, então, certa sobreposição teórica de elementos, mas repare-se, então válidos, de uma ou outra teoria corrente que se buscou criticar, sabendo-se, outrossim, que teorias concorrentes podem se manter como um todo, ‘perdendo’ apenas nalgum aspecto pontual que acabou sendo efetivamente criticado. Esta coexistência teorética, se não disser respeito a algum princípio, mas meramente a um de seus desdobros, certamente é uma possibilidade, ou quem sabe até uma necessidade na área.

3. Método

O método, desde o quadra de preceitos de Descartes, até modelos complexivos da pós-modernidade, por todos, Edgar Morin5, como instituição salvívica – permita-se a aleivosia, com abstrações aos deliciosos ‘anarquismos’ feyerabendianos, bem como ao que Marirela Chaui refere acerca de ‘um mundo que cultua a patologia da cientificidade’, op. cit.-, poderia sugerir contribuições densificadas, afinal o método não se sujeita – ou se sujeitaria ‘pouco’- à valoração do objeto sensível que é a discussão sobre o feminismo. Adorno6 assegura que tudo que diz respeito ao método é inofensivo em toda sua extensão. Mas, no caso das teorias feministas, talvez não baste apenas a suplantação do ‘abismo’ entre as ‘Naturwissenschaften’ e as ‘Geistewissenschaften’ referido por Bunge, op. cit. Uma ponta de casuísmo, de uma mundana visão de gênero, parece ficar a pairar relativamente a ‘quem’ escreve, produz ou mesmo fala sobre o feminismo. Numa discussão metodológica, algumas próprias etnometodólogas discreparam entre si, e não apenas elas, mas entraram filósofas, sociólogas e historiadoras ainda com outros modelos e sistemas próprios, todos efetivamente contributivos. Anotam Joas e Knöbl que os debates feministas estão não somente na sociologia, mas na psicanálise, na antropologia, na história, na filosofia e na teoria política. E certamente o direito, pega carona para legiferar avanços e necessidades sob a rubrica de uma legalidade social então indispensável na proteção compensatória da mulher.

Como grande pano de fundo a todas as tratativas feministas, anota a filósofa Alison M. Jaggar que existiria a dualidade de 1) criticar relações de poder e dominação, discriminatórias ou repressoras das mulheres, e 2) provocar uma libertação da mulher deste tipo de relação.

4. Sete disjunções e o ‘inimigo fácil’

Sete fatores, ou até visões de mundo, nalguns casos, foram escolhidos aqui, como potenciais fragmentadores pós-principiológicos.

1. O ‘ímpeto político normativo característico das teorias feministas’, e que ‘se tornou moda nas últimas décadas’ conforme anotam a socióloga Regina Becker-Schmidt e o cientista social alemão Gudrun-Alexy Knapp. Conquanto o contexto descritivo do termo ‘moda’ aí, possa ser mera referência de cunho epocal ou histórico, permanece um resíduo incômodo de superficialidade do sentido da observação. Qualquer risco de desaderência à teorização intrínseca, mesmo considerando-se certa busca por um viés normativo, é excesso a ser coarctado. Como a problemática da mulher ultrapassa qualquer discussão de relativização de gravidade, fissuras de abordagem acabam tendo o poder de impedir um paradigma.

2. A incorporação, pelas ‘feministas de ambições teóricas’ (Joas e Knöbl, p. 466), das análises de gênero, no sentido de que favoreceria a própria concepção do feminismo, sendo que as próprias ‘feministas definiram isso de maneira diversa’ (Joas e Knöbl, p. 466). A diversidade conceptiva nunca foi problema na ciência, a menos quando se utiliza o objeto acessorial ferramentalmente como apoio declarado. Mas se o apoio acaba sendo conceitualmente discutível pelas próprias teorias, por meio de definições contrárias, além de não ajudar, exporá alguma estrutura mambembe no próprio objeto principal. Ver-se-á, abaixo, que a inserção do gênero na questão do sexo, e mesmo na teoria feminista, nunca foi objeto de pacificação. Além do que o próprio conceito de ‘gênero’ também acabou se mostrando controverso.

3. Utilizando-se das diferenças biológicas entre homens e mulheres, a ativista Shulamith Firestone se insurgiu contra a orientação marxista, priorizando o conflito entre sexos como mais fundamental do que a luta de classes, explicando o machismo a partir desta visão. Mesmo que num contexto de feminismo de segunda onda, relativamente a um pós-guerra ainda crítico e ao mesmo tempo revolucionário de um pós-1960, Firestone insere nova dificuldade tipológica na questão ao trazer, refutando, o marxismo para o debate, pois as teorias já se viam encharcadas de dificuldades: a) os conceitos não tinham uniformidade; b) exigia-se um passaporte de fala, como legitimador para o tema, em oposição ao inimigo fácil, o homem; c) havia um grau de novidade e instabilidade relativamente a conceitos utilizados como apoio – por todos o gênero-. Assim, esta nova frente comparada – conflito entre sexos e luta de classes-, ligando o feminismo à clássica relação marxista gerava um risco de atrelamento a um pensamento neoconservador, tornando discutível até as próprias pautas progressistas que historicamente se funcionalizaram sempre como óptimo apoio à questão feminista.

4. Por seu turno, a socióloga Nancy Chodorow invocando a identidade de gênero que, para ela, começaria por volta dos 5 anos de idade, tentou construir o porquê de mulheres serem historicamente afetadas no plano psicológico, a que a filósofa e professora de Harvard Carol Gilligan discrepou de uma forma ‘muito diferente’ (Joas e Knöbl, p. 469), inclusive lançando mão da referida ‘reserva’ feminina para negar validade ao trabalho do psicólogo e amigo Lawrence Kohlberg – cujo trabalho influenciou Jürgen Habermas-, afirmando haver aí uma ‘perspectiva profundamente masculina’ (Joas e Knöbl, p. 471), e por isso uma falha conceptiva. Aqui algumas camadas tectônicas se movem, e fazem estrago. Não se trata somente de divergências teóricas, mas crises fundantes que inautorizam ou mesmo dificultam o estabelecimento de princípios. A invocação do masculinismo como imprestabilizador da legitimidade teorética é questão das mais sensíveis e o risco maior é de uma antropofagia teórica na área legitimada, ou um fogo amigo, o que acaba sendo combustível para um reverso machismo patrulhador, oriundo da própria mulher.  

5. A filósofa e feminista Martha Nussbaum desconstrói o status biológico das ‘emoções porque mulheres’, bem contextualizando as emoções às construções sociais. Também não liga emoções à irracionalidade, mas apenas à maneira de ver o mundo, uma forma espetacular de considerar uma possível diferença advinda de uma desigual distribuição de emoções na sociedade.

6. Verifica-se, pelos idos de 1980, certa empolgação teórica com a dicotomia sexo (diferenças anatômicas e fisiológicas) e gênero (status social e cultural adquirido), precisamente para que feministas possam contrapor uma típica construção argumentativa masculina acerca da ‘natureza’ (inferior) da mulher. Ocorre que pouco tempo depois o debate se reenquadra ‘abolindo completamente a distinção entre sexo e gênero, dessa vez adotando uma nova perspectiva radical’ (Joas e Knöbl, p. 475). Novas sociólogas entram em cena, Suzanne J. Kessler e Wendy McKenna, para confirmar a desconstrução da distinção entre sexo e gênero, demonstrando que mesmo o ‘sexo biológico’ não é, afinal, tão nítido como se pensa. Junta-se a socióloga americana Carol Hagemann-White com a formulação da ‘hipótese nula’ no sentido de que inexistiria o ‘binarismo de gênero prescrito pela natureza’, sabendo-se que a distinção sexo e gênero é fundamental para muitas feministas. Ainda aqui, pesquisadoras alemãs, Regine Gildemeister e Angelika Wetterer, acompanharam no sentido de que ‘a distinção entre sexo é gênero é apenas uma solução aparente’ (Joas e Knöbl, p. 479). Percebem-se, pois, sérias desavenças teóricas entre as construções relacionais e mesmo conceituais no plano estrutural da própria existência, entre sexo e gênero.

7. Chega-se à filósofa Judith Butler, desconstruindo em certa forma foucaultianamente o conceito de sujeito para argumentar que ‘a categoria mulher simplesmente não existe’ (Joas e Knöbl, p. 484), já que a identidade de gênero é altamente variável no plano cultural. Mas Butler – que atraiu críticas contra si, pelo ‘uso’ de Foucault- afirma que o sexo pautado pela biologia não é pré-discursivo, mas sim uma categoria de gênero, entretanto o gênero será ‘um jogo relativamente desestruturado de identidades, que são, em última análise, construções linguísticas’ (Joas e Knöbl, p. 485). Para Butler a meta política do feminismo é fugir da noção dicotômica de gênero estabelecida por estratégias paródicas, para confundir o binarismo de gênero. Ela também maximiza a questão da linguagem, sugerindo ironia para se lidar com os diversos preconceitos, inclusive o racista, encapsulando a resistência num plano estritamente pessoal, frontalmente criticado por Martha Nussbaum, ferrenha opositora de Butler.

Pois bem, agora subsumam-se todas essas dificuldades científicas e teóricas das pesquisadoras, e seus caminhos díspares, que se justificam, cada um de per si, e autorizam compreensões também absolutamente diversas, às opiniões e radicalismos só que populares, das gentes, e descompromissados com a ciência e presumidamente sem fundamentações e até comprometidos com preconceitos. O que mais se ouvirá ou perceberá nas esquinas do mundo ‘vulgar’ é que homem não pode falar de mulher, o atalho escapista do ‘inimigo fácil’, pela ausência de passaporte de fala. Se já se verifica certa colisão no campo teórico científico, com acusações irônicas e desconcertantes, no seio popular a situação se degrada formidavelmente, com, às mais das vezes, a barreira de entrada ao masculino.

5. Divisões, popularismos e identitarismo

Talvez aqui se potencializasse o delicado assunto do artigo. Uma cisão, inclusive à luz da filosofia da ciência, entre o conhecimento, ainda que sob defensável radicalismo das feministas teóricas, e opiniões assistemáticas de um ‘mero’ radicalismo popular que, além de não suportar divergências teóricas, preconceitualiza sobre o outro, se ele não compuser identitariamente. Mas um dos problemas é que não haverá apenas um identitário, mas vários, e todos legítimos, desde que não preconceituosos, obviamente.

São conhecidos, na filosofia da ciência, interessantes atritos entre o cientista de bancada e o filósofo da ciência. Já se publicou que o cientista resiste ao que o filósofo diga, e questionando se o ato científico de bancada pode ser [apenas] pensado sobre quem não o realiza; a que o filósofo desdenha do ato físico, para contestar que sem pensar o ato não existe ação, e aí não será o ato de bancada em si, mas o ato de pensar a bancada que produzirá um elemento prestante. Não há estanqueidade nessas competências epistemologicamente separadas, mas historicamente situações estridentes entre autores já houve, o que chama a atenção.   

Insira-se aqui a antiga e justa reivindicação de negras e lésbicas, por meio do bastante discutido conceito de Identitarismo, com o Combahee River Collective, desde 1974, em não se verem representadas pelo movimento feminista. Ou seja, há polêmicas estruturais e internas, desde conceitos e princípios – definição de objeto em si-, bem como conjunturais, por novéis interesses que legitimamente vão surgindo com a riqueza social.

6. O ‘passaporte de fala’

Paradigmaticamente seria o caso de se submeter as teorias feministas a alguém que não possua o passaporte de fala – o ser mulher- e, num cenário não de academia, o conflito estaria pressuposto. Nesta ótica deturpada, jamais o de gênero masculino pode tratar das teorias feministas porque, em qualquer lugar da análise o homem sempre poderá ser acusado de ser homem, o que se mostra um argumento insuficiente. Se houver uma imputação fundamentada oriunda de uma construção visceralizada à origem masculina, a crítica se sustenta. Mas se a ‘crítica’ quiser ser o 39º estratagema schopenhaueriano de vencer uma discussão sem ter razão, apelando-se para um útero ideológico, a conversa viola princípios e se perde.

Um dos defeitos desse embate popular (!) – e não propriamente ligado ao conhecimento metodológico- seria aquele que circunscreve a questão à seguinte ordem autoritária e patrulhadora: eu mulher deixo você homem falar de mulher desde que só elogie; se apuser qualquer crítica, imediatamente lhe acuso de um dos signos da atualidade: misógino ou machista.

Entre pares profissionais de estudiosos a coisa não anda, em hipótese alguma, desta maneira. Mas no debate popular a coisa se descamba.

O machismo é uma realidade torturante, perversa e até aqui incurável para a mulher, que a vitima sob diversas formas, como alguns outros preconceitos criminosos, racismo, homofobia etc.

7. Linguagem neutra

Correndo por fora, mas em certa espuma de modismo e não inserida nas preocupações feministas, aparece a chamada ‘linguagem neutra’ – a rigor fala, na distinção saussureana de fala e língua, apud Luiz Gonzaga de Mello7. Há provavelmente alguma errância com a tentativa que nasce atrelada a um patrulhamento de quem não usa o artifício falante neutral. Mas também parece haver algum preconceito às avessas. Na prometida ânsia de combater preconceitos, como se contíveis por um modo formalista e pré-intencionado de uma fala pronta, criou-se a corrente que, todavia, parece violar estruturas de linguagem.

Mesmo buscando-se em Valentin Volóchinov8 (Círculo de Baktin - Marxismo e Filosofia da Linguagem), vê-se no geral que ‘Cada época e cada grupo social possui o seu próprio repertório de formas discursivas da comunicação ideológica cotidiana’, não parecendo, num primeiro momento, ‘existir’ socialmente uma fala neutral como repertório próprio. Por segundo, o autor explica como surgem os signos condicionados, entre indivíduos socialmente organizados, por situações da própria interação, novamente, não se podendo infirmar que tal ocorrência seja uma realidade. E por terceiro, apresenta uma tríade metodológica fundamental como determinação causal geral para qualquer processo de transformação na linguagem, toda ela minimamente verificável, de novo, como uma existência social, o que no caso da fala neutra, nunca alcançou um status de ocorrência.

Daí, intercessões de efetivação social entre a fala neutra, sexo e gênero, como se tem visto nalgumas entrevistas de rádio ou TV que apelam para esta invocação, parecem não ter grandes chances de verificabilidade.

8. Algumas conclusões

Com a infeliz pluralização – ou publicização- das classes sociais preconceitualizáveis, ou seja, um aumento visível do preconceito, sendo a mulher uma das primeiras delas, torna-se, esta mulher, apenas mais uma na lista de vítimas do preconceito, demandando às pressas teorias sociais feministas eficazes e pragmáticas na tentativa de representar alguma resistência, inclusive em prol daquelas que não aceitam o feminismo, ou por conservadorismo ferrenho, ou por um machismo culturalmente imposto, o que, em termos de luta, dá no mesmo.

A história física triunfal do homem, com afetação psicológica sobre a mulher, e uma necessária equipolência entre ambos, paradigmatiza eficacialmente a mulher a outras tantas categorias relacionais que acabaram sendo compensadas exemplarmente no direito, assim, o menor, o idoso, o silvícola, o deficiente, o trabalhador, o consumidor, o negro, o homossexual etc.

Teorias sociais feministas têm pressa para compreender cientificamente as lacunas e dicotomias; sedimentar alguns paradigmas normativos; e impor efetiva ordem hábil à cessação de situações de violência e afetação à mulher, que não cessam. Mas talvez o mais difícil continue a ser a quebra basilar dos chamados ‘discursos competentes’, em sociedades como a brasileira atual, uma estabilização cultural sabidamente preconceituosa que, em tempos de uma desastrosa atualidade política, agudizou o preconceito e não se mostra gentil – ou inteligente- a mudanças.

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1 JOAS, Hans; KNÖBL, Wolfgang. Teoria social – vinte lições introdutórias. Petrópolis: Vozes, 2017.

2 CHAUI, Marilena. Cultura e democracia – o discurso competente e outras falas. 12 ed. São Paulo: Cortes, 2006, p. 19

3 KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. 3 ed. São Paulo: Perspectiva, 1992, p. 13.

4 BUNGE, Mario. Teoria e realidade. São Paulo: Perspectiva, 1974, ps. 41 e ss.

5 MORIN, Edgar. A religação dos saberes - o desafio do século XXI. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.

6 ADORNO, Theodor. Para a metacrítica da teoria do conhecimento. São Paulo: Unesp, 2015, p. 45

7 MELLO, Luiz Gonzaga de. Antropologia cultural. 3 ed. Petrópolis: Vozes, 1986, p. 456.

8 VOLÓCHINOV, Valentin. Marxismo e filosofia da linguagem. 3 ed. São Paulo: Editora 34, 2021, p. 109.

Jean Menezes de Aguiar
Advogado. Professor da Pós-Graduação da FGV e do IPOG. Parecerista da Coordenação de Publicações Impressas da FGV e da RDA - Revista de Direito Administrativo, FGV.

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