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O encerramento irregular da empresa e os riscos ao patrimônio dos sócios e administradores

O atendimento da legislação societária para o encerramento das atividades de uma empresa e sua dissolução é fundamental para minimizar os riscos sobre o patrimônio dos sócios e administradores.

20/5/2022

As boas práticas de gestão empresarial apontam para a importância de, antes de iniciar um novo empreendimento, ser realizado um “business plan” para se definir, além da identidade do negócio, o mercado alvo, os investimentos a serem realizados, as metas de curto, médio e longo prazo, além de trazer as projeções financeiras e outros elementos relevantes para o início da atividade, sendo tal instrumento um importante balizador para viabilização do negócio pelos sócios.

Já na ponta oposta da vida de uma empresa, ao se caminhar para o término do empreendimento, seja em razão do exaurimento do seu fim, por consenso ou deliberação dos sócios, vencimento do prazo da sociedade ou extinção de sua autorização para funcionar1, era esperado que, do mesmo modo que se organizou o seu início, também houvesse um cuidado em planejar o encerramento das atividades.

Nessa linha, a regular dissolução de uma sociedade empresária deve passar pelo crivo da legislação societária, que dentre os procedimentos para uma a dissolução é prevista a liquidação2, processo no qual se nomeia um liquidante, arrecadam-se os bens, livros e documentos da sociedade, elaborando ainda um inventário e o balanço geral, com a finalização dos negócios sociais, realização do ativo, pagamento dos passivos e, se houver, partilha do ativo remanescente entre os sócios3.

Há assim um ritual a ser seguido, sendo que as sociedades em processo liquidação devem restringir os atos de administradores e do liquidante aos negócios inadiáveis, sendo vedada a realização de novas operações4, que nas palavras de Alfredo de Assis Gonçalves Neto, “a sociedade deixa de perseguir aquele [objetivo social] que justificou sua constituição para se voltar à prática de atos que a levarão à extinção”5.

Eventualmente, se os ativos forem insuficientes para honrar com todas as obrigações, e não houver acordo com os credores, respeitados aqueles preferenciais, a dissolução deverá ser concluída por meio da falência que deverá ser confessada diante do “exaurimento dos recursos da liquidação”6, constituindo essa confissão em um “dever funcional acidental”7 do liquidante.

Porém, o fato é que em muitas operações não se vislumbra o cuidado no planejamento desse encerramento das atividades da empresa, sendo que a dissolução é realizada sem qualquer critério, não se respeitando a ordem de credores, procedendo assim o encerramento de forma atabalhoada, sem observar os ritos previstos na legislação.

Há casos em que a sociedade simplesmente deixa de exercer as atividades no local, sem, contudo, apresentar qualquer informação aos órgãos públicos de registro e controle, descumprindo ainda obrigações fiscais e previdenciárias, destinando os seus ativos de forma desordenada, inclusive em prejuízo de credores preferenciais, o que acaba por configurar a dissolução irregular da sociedade.

Nessas hipóteses, o Judiciário tem adotado a posição que os sócios e administradores podem ser responsabilizados em caso de dissolução irregular da empresa, respondendo assim pelos passivos existentes ante a falta de ativos suficientes a suportar as obrigações da sociedade, se destacando entendimento do STJ expresso na súmula 4358 e o tema repetitivo 6309, ambos envolvendo obrigações tributárias, sendo que a Justiça do Trabalho também tem partilhado dessa posição, com diversos precedentes10.

Oportuno destacar que um importante precedente deverá se formar após a conclusão do julgamento do tema repetitivo 98111 pelo STJ, que teve a sua afetação pela primeira seção entorno da questão do redirecionamento de execução fiscal contra sócio que detinha poderes de administração quando da dissolução irregular da sociedade, tenha ou não praticado atos de gestão na data do fato gerador (tributário) inadimplido. Tal decisão certamente fixará critérios mais objetivos para a atribuição de tal responsabilidade, considerando marcos temporais e a prática de determinados atos, o que contribui para a construção de uma maior previsibilidade e segurança jurídica aos empreendedores e ao mercado como um todo.

O fato é que as referidas decisões judiciais e o caminho em que a jurisprudência tem sido sedimentada, nos ensinam que o empresário deverá agir de forma prudente não apenas quando do início, mas também para encerrar as atividades da sociedade, tomando assim o mesmo cuidado que teve quando da constituição da empresa, planejando o seu término com o auxílio de profissionais da área contábil e jurídica que possam colaborar sobretudo na estruturação de um processo de liquidação dentro dos limites legais, de forma a resguardar não apenas os interesses dos credores da sociedade, mas também preservar o patrimônio pessoal dos sócios e administradores contra os infortúnios de uma dissolução irregular.

_________

1 Código Civil, artigo 1.033.

2 Código Civil, artigo 1.102.

3 Código Civil, artigo 1.103.

4 Código Civil, artigo 1.036 c/c artigo 1.103, IV.

5 Gonçalves Neto, Alfredo de Assis. Tratado de Direito Empresarial. Vol. II. Empresa Individual de Responsabilidade Limitada e Sociedade de Pessoas. Coord. Modesto Carvalhosa. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2016, p. 674.

6 Coelho, Fabio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. Direito de Empresa. Sociedades. Vol. 2. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 474.

7 Barbosa Filho, Marcelo Fortes. Código Civil Comentado. Coord. Ministro Cezar Peluso. São Paulo: Manole, 2021, p. 1015.

8 STJ. Súmula 435: “Presume-se dissolvida irregularmente a empresa que deixar de funcionar no seu domicílio fiscal, sem comunicação aos órgãos competentes, legitimando o redirecionamento da execução fiscal para o sócio-gerente.”

9 STJ. Tema Repetitivo 630. Tese firmada: “Em execução fiscal de dívida ativa tributária ou não-tributária, dissolvida irregularmente a empresa, está legitimado o redirecionamento ao sócio-gerente.”

10 TST. (1) RR - 1497-07.2012.5.10.0008 Data de Julgamento: 08/02/2022, Relator Ministro: Guilherme Augusto Caputo Bastos, 4ª Turma, Data de Publicação: DEJT 11/02/2022; (2) AIRR - 10667-31.2014.5.18.0001 Data de Julgamento: 27/04/2022, Relator Ministro: Augusto César Leite de Carvalho, 6ª Turma, Data de Publicação: DEJT 29/04/2022

11 STJ. Tema Repetitivo 981. 1ª Seção. Afetação do REsp 1645333/SP, REsp 1643944/SP e do REsp 1645281/SP.

Enio Lima Neves
Advogado do escritório Enio Neves Advocacia, com MBA em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e Especialização em Direito Tributário pela FACAMP.

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