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Criminalização postiça do falso testemunho

Apesar de possuir um fundamento de legitimação da atividade jurisdicional de colheita de prova, o delito de falso testemunho necessita de uma readequação à luz da lógica processual inserida no sistema jurídico brasileiro sob pena de, conforme apresentado, constituir-se apenas em uma criminalização postiça, esvaziada de um conteúdo repressor coerente.

19/5/2022

Em procedimentos judiciais e administrativos, sejam eles criminais ou não, a produção probatória que justifica o engendramento de um conjunto de atos direcionados para a elucidação de uma situação fática acaba por ser o principal problema da marcha processual.

Isto porque o cerne do desenvolvimento de qualquer processo é a fabricação de elementos que apontem para a correta solução de um conflito que foi apresentado perante a autoridade julgadora, seja ela judicial ou administrativa.

Neste contexto, a prova testemunhal - admitida em quase todas as espécies de procedimentos nos quais há a garantia da ampla defesa e do contraditório - toma um lugar de destaque a frente dos demais instrumentos de prova disponíveis para subsidiar o convencimento do juiz, o que se deve ao fato de que a presença de uma pessoa que testemunhou os acontecimentos que estão sendo debatidos costuma trazer um grau maior de segurança, na mesma medida em que alarga os espaços de convencimento.

Contudo, em processos criminais, é comum que se tenha a disposição das partes apenas as testemunhas que teriam presenciado os atos ilícitos apurados e, muito frequentemente, de forma apenas indireta, através de “ouvi-dizer” (hearsay), caso em que se deverá evitar a sua integração a um processo criminal, pela fragilidade das declarações.

Desta feita, a colheita da prova testemunhal deve ser guiada por parâmetros básicos, voltados a garantir uma maior fidedignidade dos depoimentos prestados, como a boa-fé da testemunha ouvida – parte-se do princípio de que a pessoa ali presente está agindo de boa-fé com o acusado e todos os agentes envolvidos no ato – e o compromisso com a verdade, que deve ser prestado antes da colheita da prova.

Neste sentido, a violação do compromisso com a verdade por parte do depoente pode tipificar o crime de falso testemunho, previsto no art. 342 do Código Penal Brasileiro, caso a pessoa compromissada negue ou cale a verdade de determinado ato, ou faça alguma afirmação falsa.

Acredita-se que o intuito do legislador foi trazer um peso maior ao compromisso à verdade atribuído à pessoa que foi colocada na condição de vítima em procedimentos judiciais ou administrativos, sendo plenamente justificável em processos criminais, nos quais um testemunho falho pode levar a uma condenação injusta, ocasionando repercussões equiparáveis as que se verificariam caso o crime tivesse sido realmente cometido nas condições originalmente apresentadas.

Isto é, uma condenação injusta pode ser pior do que a condenação justa.

Entretanto, apesar do crime de falso testemunho possuir em si um fundamento de legitimação da própria atividade probatória, ele também apresenta uma essência de contradição com o próprio sistema dogmático em que está inserido.

Deste modo, posto que o início de uma ação penal já pressupõe, por si só, a falta de um referencial de verdade seguro sobre os atos a serem averiguados, não seria possível dizer o que é uma declaração falsa sobre determinados acontecimentos se há, no momento de sua colheita, um desconhecimento acerca de qual seria a versão verdadeira.

Consequentemente, seria no mínimo lúdico declarar que determinada pessoa está prestando uma descrição enganosa a respeito de episódios diante dos quais nem se sabe ao certo se ocorreram da forma apresentada.

Por outro lado, é necessário que se esclareça que toda pessoa, em qualquer procedimento judicial ou administrativo, criminal ou não, tem em seu favor a garantia de não produzir provas contra si mesmo, podendo utilizar seu direito ao silencio e, até mesmo, omitir e mentir em relação a fatos sobre os quais lhes é questionado, para que não conceda quaisquer elementos que possam lhe incriminar.

Nesta linha, os tribunais superiores tem entendido que o direito a não autoincriminação exonera a pessoa depoente do dever de depor sobre circunstâncias cujo esclarecimento porra acarretar a sua responsabilização criminal.

Por conseguinte, estando a testemunha intencionada a não revelar fatos que possam incrimina-la, poderá calar ou faltar com a verdade, estando plenamente acobertada pela garantia constitucional e, ainda que não estivesse inserida na situação ilustrada, é incompreensível que seja acusada de prestar declarações enganosas sobre ocorrências das quais se desconhece a veracidade.

Por via do exposto, apesar de possuir um fundamento de legitimação da atividade jurisdicional de colheita de prova, o delito de falso testemunho necessita de uma readequação à luz da lógica processual inserida no sistema jurídico brasileiro sob pena de, conforme apresentado, constituir-se apenas em uma criminalização postiça, esvaziada de um conteúdo repressor coerente.

Leonardo Tajaribe Jr.
Advogado Criminalista. Especialista em Direito Penal Econômico (COIMBRA/IBCCRIM). Pós-Graduado em Direito Penal e Processual Penal (UCAM). E-mail: leonardotajaribeadv@outlook.com

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