É sabido que a ação de guarda de menores é uma das mais delicadas ações judiciais no âmbito do direito de família considerando que os menores, muitas das vezes, acabam sendo penalizados pelo descompasso entre seus genitores/tutores.
É comum que os genitores – mesmo não desejando fazê-lo – acabem transferindo sentimentos e frustrações pessoais para os menores, o que não se pode permitir, sendo necessária a intervenção do Poder Judiciário com visos a afastar a reprovável prática de eventual alienação parental por conta da desqualificação perpetrada pelo outro genitor ou por sua família.
Desse modo, tendo em vista que os menores estão inseridos no seio da família e sabem – na medida do possível – da real conjuntura familiar, é inegável que eles devem ser ouvidos em juízo e, nesse sentido, devem ter a sua manifestação de vontade considerada para a definição de sua guarda (sem prejuízo da atuação da equipe multidisciplinar – psicológica e/ou social).
Ainda que a criança e o adolescente tenham o direito de opinar e se expressar (art. 16, II do ECA), muitas das vezes a sua oitiva, pelo magistrado, é inviabilizada por conta da realização de perícias psicológicas e sociais (que supostamente supririam essa oitiva). Ocorre que referida oitiva é necessária pois contribui com o convencimento do julgador ao constatar, de forma clara, qual a real dinâmica familiar daquele determinado caso sem a interlocução de terceiros (ainda que tais sessões sejam se primeira importância). A oitiva é autorizada, inclusive, na situação de guarda de família substituta, tutela e adoção, nos termos do art. 28, §1º do ECA.
Embora não tenha ampla aceitação na jurisprudência, é necessário que seja possibilidade – e determinada - a oitiva dos menores em casos discutindo sua guarda já que o empoderamento dos menores, notadamente, contribui com o melhor desfecho do feito e, consequentemente, respeita o seu melhor interesse. Nesse sentido, a doutrina já se manifestou no sentido de que “todos os meios devem ser usados para que possa o juiz optar pela solução que melhor atenda ao interesse da formação e educação do menor.”1
Ao promover a oitiva dos menores, o julgador empodera os menores em uma situação onde o seu próprio destino é definido. Isso não significa que apenas a sua vontade será considerada mas que sua manifestação será ponderada com o acervo probatório do caso (incluindo mas jamais se restringindo aos laudos técnicos e oitivas de testemunhas/depoimentos pessoais dos genitores/tutores). Muitas das vezes, os menores se sentem respeitados ao verbalizar a sua verdade e sua vontade em juízo já que eles estão inseridos naquele delicado momento familiar. Tanto é assim que a doutrina especializada admite a oitiva. Vejamos:
É verdade que há um esquema legal aparelhado, onde se depara o juiz com prelações quanto ao deferimento da guarda. Trata-se de esquema amplo, porém. Sua liberdade no agir e decidir é bem considerável. A par da dose humana de sensibilidade, para que se lhe desperte real interesse pelo destino do menor, há de se exercitar o juiz penetração psicológicos para separar o joio do trigo. (...)
O quando conjuntural onde pode atuar o juiz permite, principalmente, que ouça o menor, se já em fase de desenvolvimento psicológico capaz de propiciar coleta de informações espontâneas sobre o ambiente familiar. (...)
Mais do que em qualquer outro conflito de interesses, importa fazer justiça de caso concreto, considerados e sopesados os fatos sociais como eles se apresentam.
O intervencionismo cada vez mais eficiente do poder jurisdicional com a ampliação de assistência social, em favor do menor, bem como a necessidade de audiência deste, para que manifeste sua vontade, está sendo cada vez mais reivindicado pelos segmentos profissionais da sociedade.2
Nesse sentir, a doutrina também orienta sobre a forma pela qual os menores poderão ser ouvidos pelo julgador de modo a primar pela qualidade do julgamento de mérito e respeitar os interesses das crianças. Vejamos:
Existem também casos em que a presença do pai, da mãe ou de um parente podem prejudicar, intimidar o depoimento; então, nestes casos, em que pese a importância do pedido do contraditório, o juiz pode formular perguntas diretamente, sem a presença das partes, mas de preferência na presença discreta dos advogados, nada impedindo a gravação dos depoimentos, o que é um direito das partes assegurado pelo art. 417, caput. Deve-se, também, com razoabilidade, de algum modo permitir a formulação de perguntas pelas partes, por meio de seus advogados, ainda que não estejam no ambiente do depoimento: desta forma, garante-se a oitiva de uma maneira menos penosa à criança ou adolescente, apenas flexibilizando-se em certa medida o contraditório e a ampla defesa.3
Rafael e Rolf Madaleno também se posicionaram sobre o assunto da seguinte forma:
O art. 12 da Convenção sobre os Direitos da Criança, promulgado em território nacional pelo decreto 99.710/90, afirma que os Estados-Partes assegurarão à criança que estiver capacitada a formular seus próprios juízos o direito de expressar suas opiniões livremente sobre todos os assuntos relacionados a ela, levando-se devidamente em consideração essas opiniões, em função da idade e maturidade da criança. Sem dúvida a consulta à vontade dos filhos é uma fonte relevante para os julgadores decidirem as questões que envolvem a disputa de guarda.4
A crítica de parte da jurisprudência sobre tal possibilidade consiste na possibilidade de que seja gerado um conflito de lealdade entre os genitores e o menor pois, naquela situação, o infante seria ‘exposto’ e teria de se manifestar de forma desfavorável à um de seus genitores/tutores. O TJ/RS, inclusive, já se manifestou nesse sentido:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. REGULAMENTAÇÃO DE VISITAS. PEDIDO DE OITIVA DOS MENORES DE IDADE EM AUDIÊNCIA. INDEFERIMENTO. MELHOR INTERESSE DOS INFANTES. Diante da apuração da situação vivenciada pelos envolvidos com estudo psicossocial, não há fundamento para a submissão dos menores de idade à situação que possa gerar conflito de lealdade em relação aos seus genitores: Negaram provimento ao recurso. (TJ-RS - AI: 70062734777 RS, Relator: Alzir Felippe Schmitz, Data de Julgamento: 09/04/15, Oitava Câmara Cível, Data de Publicação: 16/04/15)
Infelizmente, muitas das decisões que versam sobre o indeferimento da oitiva de menores em juízo são inviabilizadas5 de reforma por conta do entendimento da jurisprudência de alguns tribunais no sentido de que decisões envolvendo provas não6 são passíveis de agravo de instrumento (por violação ao rol do art. 1.015 do CPC), embora o tema 988 do STJ tenha firmado entendimento pela taxatividade mitigada em casos de urgência.
De qualquer sorte, embora se defenda que as decisões envolvendo provas - favoráveis ou não - sejam passíveis da interposição de agravo de instrumento pela utilidade e urgência da análise, é possível insistir na oitiva dos menores/adolescentes também em sede de recurso de apelação ou contrarrazões com visos ao melhor interesse da criança e, além disso, ao empoderamento do menor em contribuir com a decisão de seu próprio destino. Saliente-se que parte da jurisprudência vem aceitando a possibilidade da oitiva dos menores, de forma excepcional, em segunda instância7.
O que não se pode permitir, no entanto, é que o direito do menor/adolescente ser ouvido se transforme na obrigação de falar pois, notadamente, a criança e o adolescente podem ser prejudicados em determinadas situações por conta, justamente, da possibilidade da influência de seus genitores. Nesse sentido, inclusive, já se manifestou Glícia Brazil:
O direito de ser escutada não pode ser confundido com o dever de falar, gerado pela coação moral. A doutrina psicológica comunga na mesma esteira de pensamento da doutrina jurídica, quando diz que o juiz deve assumir a sua decisão comunicando à criança diretamente ou deixando ao encargo da equipe técnica do juízo.8
Notadamente, a oitiva dos menores em juízo deve ser admitida em prol do seu melhor interesse e, além disso, em favor da real situação daquela determinada família, onde os menores são os mais afetados, seja em sua rotina, seja na fixação de sua base de moradia pois embora a guarda possa ser compartilhada ou unilateral, sua modificação não viola e tampouco obstaculiza o exercício do poder familiar dos genitores.
De qualquer sorte, conclui-se que as crianças podem e devem ser ouvidas em juízo desde que em ambiente acolhedor, na presença do julgador e, além disso, sem prejudicar a necessária oitiva dos menores (e de suas famílias) pela competente equipe multidisciplinar, incluindo e não restringindo, os profissionais do setor de psicologia e do setor de assistência social.
1 MOURA, Mario Aguiar. Família e sucessões: relações de parentesco. Organização: Yussef Said Cahali, Francisco José Cahali. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.
2 MOURA, Mario Aguiar. Família e sucessões: relações de parentesco. Organização: Yussef Said Cahali, Francisco José Cahali. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.
3 FERREIRA, William Santos. Princípios fundamentais da prova cível. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014.
4 MADALENO, Rafael. Guarda compartilhada: física e jurídica. Rafael Madaleno, Rolf Madaleno. 2. Ed. Rev atual e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016.
5 AÇÃO INDENIZATÓRIA POR ABANDONO AFETIVO C.C. PEDIDOS DE MODIFICAÇÃO DE GUARDA E DANOS MORAIS. INDEFERIMENTO DO PEDIDO DE OITIVA DO MENOR PELO juízo. RECURSO NÃO CONHECIDO. Ação indenizatória por abandono afetivo c.c. pedidos de modificação de guarda e danos morais. Insurgência contra decisão saneadora, que indeferiu o pedido de oitiva do menor pelo juízo. Indeferimento da produção de prova. Matéria não prevista no artigo 1.015 do CPC. Rol de taxatividade mitigada, conforme tese firmada pelo C. STJ, pela sistemática dos recursos repetitivos. Inexistência de urgência que importe na inutilidade do julgamento da questão em apelação. Recurso não conhecido. (TJ-SP - AI: 21080202220218260000 SP 2108020-22.2021.8.26.0000, Relator: J.B. Paula Lima, Data de Julgamento: 17/05/2021, 10ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 17/05/21)
6 GUARDA. INDEFERIMENTO DO PEDIDO PARA REALIZAÇÃO DE NOVO ESTUDO PSICOSSOCIAL E DE OITIVA DO MENOR PELO juízo. RECURSO NÃO CONHECIDO. Guarda. Insurgência contra decisão que indeferiu pedido de realização de novo estudo psicossocial e de oitiva do menor pelo juízo. Matérias não previstas no artigo 1.015 do CPC. Rol de taxatividade mitigada, conforme tese firmada pelo C. STJ, pela sistemática dos recursos repetitivos. Inexistência de urgência que importe na inutilidade do julgamento da questão em apelação. Trata-se de indeferimento de produção de provas, que não enseja interposição de recurso. Recurso impróprio à análise da pretensão do agravante. Recurso não conhecido. (TJ-SP - AI: 20786838520218260000 SP 2078683-85.2021.8.26.0000, Relator: J.B. Paula Lima, Data de Julgamento: 22/04/2021, 10ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 22/04/2021)
7 ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. ELEMENTOS DE PROVA CONTUNDENTES. INEXISTÊNCIA. AUSÊNCIA DO PERIGO DA DEMORA E DE PROVAS INEQUÍVICAS DA VEROSSIMILHANÇA DAS ALEGAÇÕES. PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO INTEGRAL DO MENOR. OITIVA DA CRIANÇA. RECOMENDAÇÃO. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. 1. A inversão da guarda de uma criança deve ser determinada a partir da presença de elementos de convencimento amplamente evidenciadores do acerto da medida, sob pena de gerar consequências desgastantes e indesejadas em prejuízo do menor. Por esse motivo, não se recomenda, em regra geral, a modificação liminar da guarda, salvo quando presentes indícios graves e anormais de que a situação reclama urgente providência. 2. Ausente prova contundente que municie o julgador da segurança necessária acerca da veracidade de um fato e das suas consequências jurídicas, revela-se impossível a antecipação dos efeitos da tutela, por ausente a prova inequívoca das alegações, referida no ??caput?? do art. 273 do CPC . 3. O princípio da proteção integral (art. 227 da CF/88 e art. 1º do ECA ) dispensa aos interesses das crianças e adolescentes atenção especial e prioritária, de molde que é recomendável a oitiva da criança de dez anos cuja guarda seja disputada em juízo, haja vista a necessidade de sopesar sua vontade e evitar situações de convivência forçada, desde que, para tanto, o magistrado considere a presença de discernimento bastante por parte do menor no momento de manifestar sua opinião. 4.Agravo de instrumento conhecido e desprovido. (TJ-DF - Agravo de Instrumento AGI 20140020291546 DF 0029699-79.2014.8.07.0000 (TJ-DF) – Publicação: 27/01/2015 – Relator: Hector Valverde Santanna – 6ª Turma Cível.)
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE DESTITUIÇÃO DO PODER FAMILIAR PROPOSTA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO. NÚCLEO FAMILIAR ACOMPANHADO PELO CONSELHO TUTELAR DESDE 2014. AVÓ PATERNA QUE PASSOU A EXERCER A GUARDA DE FATO DO NETO EM 2014. Devolução da guarda do menor à genitora em 2017. Genitora que não atende satisfatoriamente os deveres de alimentação, higiene e de manutenção da incolumidade física e psíquica do filho (atualmente com doze anos de idade). Acolhimento institucional do adolescente em março/2017. Sentença de procedência. Recurso da requerida. Impossibilidade de apreciação do apelo. Sentença proferida sem a oitiva do adolescente. Providência obrigatória. Inteligência dos artigos 19, 28, § 2º, 100 e 101, §5º, do Estatuto da Criança e do Adolescente. Conversão do julgamento em diligência. Exegese do artigo 938, § 3º, do código de processo civil. Observância dos princípios do melhor interesse do adolescente e celeridade processual. Fixação do prazo de trinta dias para oitiva do adolescente. (TJSC; AC 0900213-33.2017.8.24.0004; Araranguá; Sexta Câmara de Direito Civil; Relª Desª Denise Volpato; DJSC 03/05/2019; Pag. 362)
DIVÓRCIO LITIGIOSO C.C. GUARDA E REGULAMENTAÇÃO DE VISITAS. Cumprimento de sentença. Imposição de multa pelo descumprimento do acordo de visitas. Afastamento. Deliberações relativas aos filhos que não ficam estanques com a homologação do acordo e não formam coisa julgada material. Resistência da genitora em cumprir acordo homologado diante da recusa das menores, que parece justificado. Questões trazidas à baila devem ser bem analisadas pelo juízo a quo, com contraditório e oitiva das menores naquela sede. Recurso provido para esse fim. (TJSP; AI 2185412-09.2019.8.26.0000; Ac. 13801768; São Paulo; Décima Câmara de Direito Privado; Rel. Des. Coelho Mendes; Julg. 28/07/2020; DJESP 04/08/2020; Pág. 1800)
8 BRAZIL, Glícia Barbosa de Mattos. Escuta de criança e adolescente e prova da verdade judicial. In Famílias e Sucessões: polêmicas, tendências e inovações. Coordenado por Rodrigo da Cunha Pereira e Maria Berenice Dias, Belo Horizonte: IBDFAM, 2018, p. 517.