Egressos de uma ditadura militar, que mediou 1964 a 1985, somos agora um povo que vive sob a égide de uma Constituição que contempla, na sua mais alta extensão, as liberdades públicas, notadamente a liberdade de expressão.
Todavia, a liberdade expressão, como de resto todos os direitos fundamentais, não é um direito absoluto, como já teve ocasião de averbar o STF em diversos julgados, podendo ceder passo, em cada caso, quando conflitante com quaisquer um daqueles.
Corolário dos princípios da liberdade de expressão e democrático, o art. 53, caput, da CF prevê que os deputados e senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos. É a chamada imunidade parlamentar material ou inviolabilidade.
Embora esse preceito constitucional sugira o contrário ao utilizar a expressão “quaisquer”, o entendimento majoritário das doutrinas e jurisprudência é no sentido de que a imunidade material não é tão abrangente assim.
Com efeito, de acordo com a jurisprudência prevalecente no excelso Pretório, a imunidade material pode ser absoluta, quando a manifestação do parlamentar ocorre no recinto da sua casa legislativa, ou relativa, quando, fora dos muros do parlamento, ela tem de ser no exercício do mandato ou em razão dele.
A imunidade material absoluta começou a ser delineada no STF a partir do voto do ministro Carlos Britto, como redator para o acórdão, no inquérito 1958, Tribunal Pleno, em 29/10/03. Sua Exa advogou a tese de que quando a manifestação do parlamentar ocorre na sua respectiva casa legislativa, a imunidade é plena, independente de se foi no exercício do mandato popular ou em função dele.
Essa posição voltou a ser referendada no julgamento do AgR RE 576.074 – RJ, j. 26/4/11, 1ª turma, dentre outros acórdãos da Suprema Corte.
Alguns estudiosos da matéria divergem da imunidade material absoluta, pois, para eles, seria uma carta em branco para o parlamentar extrapolar os limites do seu mandato popular. Assim, esperam que o STF venha revisitar o assunto, para assentar que a imunidade material só deve ocorrer quando a manifestação for no exercício do mandato ou em razão dele.
Nesse diapasão, vale trazer à baila a ementa do acórdão do STF, no RE 443.953 ED, julgamento em 19/6/17, relator ministro Roberto Barroso, verbis:
“EMENTA: DIREITO CIVIL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO RECEBIDOS COMO AGRAVO INTERNO NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. IMUNIDADE PARLAMENTAR. PRECEDENTE. 1. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é no sentido de que a imunidade parlamentar material incide de forma absoluta quanto às declarações proferidas no recinto do Parlamento e os atos praticados em local distinto escapam à proteção absoluta da imunidade somente quando guardem pertinência com o desempenho das funções do mandato parlamentar. 2. Esta Corte entende que , embora indesejáveis, as ofensas pessoais proferidas no âmbito da discussão política, respeitados os limites trazidos pela própria Constituição, não são passíveis
de reprimenda judicial. Imunidade que se caracteriza como proteção adicional à liberdade de expressão , visando assegurar a fluência do debate público e , em última análise , a própria democracia.3. Embargos de declaração recebidos como agravo interno a que se nega provimento.(os grifos são nossos)
Pelo que se extrai do texto dessa ementa, as manifestações proferidas no recinto da casa legislativa do parlamentar são acobertadas, de forma absoluta, pela imunidade material , sendo certo que, se fora do recinto do parlamento, depende, para a sua incidência , delas serem feitas no exercício das funções parlamentares ou em razão delas. Ademais, neste último caso, devem ser observados os limites da Constituição.
Nesse particular, ouçamos o magistério de abalizada doutrina:
“Com efeito, este só não compreende as opiniões proferidas aliunde e noutra qualidade que não a de representante da nação, na de simples cidadão, pois está sujeito à responsabilidade por suas palavras e atos ofensivos ao direito alheio ou à ordem pública e por eles pode ser processado por quem quer que seja, Deputado, Senador, ou não. Não há que atender então, a privilégio ou imunidade, desde que o ato não seja praticado no caráter de representante, mas no de simples particular. “(Direito Constitucional, Raul Machado Horta, 5ª edição, ed Del Rey, pág. 564)
Verifica-se, assim, que, para incidência da imunidade material, é preciso que haja um nexo, um elo, um liame entre a manifestação do parlamentar e o exercício do mandato popular, observados os limites da Constituição.
De outro lado, é importante assinalar que a avaliação, pelo intérprete e aplicador do direito, sobre se a manifestação se dá no exercício das funções parlamentares ou em razão delas, e nos limites constitucionais, demanda a análise das peculiaridades do caso concreto, atentos aos princípios instrumentais da proporcionalidade e razoabilidade. Efetivamente, tal tarefa reclama cautela e prudência do profissional do direito, pois, em muitos casos, a análise de tais requisitos pode acontecer diante de situações revestidas ou impregnadas de ambiguidades.
É pitoresco anotar que o ex ministro Celso de Mello, embora adepto da tese da imunidade material absoluta, asseverou, em voto lapidar, que as lesões a direitos fundamentais, mesmo que a pretexto de serem políticas e interna corporis, não podem ser afastadas da apreciação do poder Judiciário, senão vejamos:
“É antiga, porém ainda revestida de inegável atualidade, a advertência de RUI BARBOSA, para quem “A violação de garantias individuais perpetradas à sombra de funções políticas não é imune à ação dos tribunais”
É por esse motivo que a questão deixa de ser política, quando há um direito subjetivo ou um princípio constitucional a ser amparado, tal como decidiu a Suprema Corte dos Estados Unidos da América no caso Baker v. Carr(...)
É imperioso assinalar, portanto, em face da alta missão de que se acha investido o STF, que os desvios jurídico-constitucionais eventualmente praticados pelas Casas Legislativas, mesmo quando surgidos no contexto de processos políticos, não se mostram imunes à fiscalização judicial desta Suprema Corte, como se a autoridade e a força normativa da Constituição e das leis da República pudessem, absurdamente, ser neutralizadas por estatutos meramente regimentais ou pelo suposto caráter "interna corporis” do ato transgressor de direitos e garantias assegurados pela própria Lei Fundamental do Estado. (Trecho de seu voto proferido no INq 2134, relator ministro Joaquim Barbosa, Tribunal Pleno, julgado em 23/3/06)
Ademais, não é ocioso afirmar que o transgressor, em hipótese tais, imune que seja ao controle judicial de suas manifestações, pode fazer reinar uma indesejável sensação de impunidade, sendo certo que a punição no Conselho de Ética das Casas Legislativas não supre a tutela judicial, seja porque as punições nele podem ser mais brandas, seja porque elas ocorrem em ambientes sujeitos à interferências políticas, partidárias e corporativismos.
Nessa esteira, podemos citar dois casos atuais e paradigmáticos, envolvendo deputados Federais. Não cabe aqui, frise-se, aprofundar o debate jurídico travados nesses dois casos. Nos limitaremos a subsumí-los aos lindes da imunidade parlamentar material, na forma do quanto exposto acima.
O primeiro deles é o caso do deputado Daniel Silveira, que proferiu, em redes sociais, ofensas ao STF e a alguns dos seus membros, resultando na sua condenação à pena privativa de liberdade, multa e perdas dos direitos políticos.
A Suprema Corte rejeitou um dos argumentos centrais da defesa consistente na invocação da proteção do citado art. 53, caput, da CF/88.
Com efeito, não se pode cogitar na espécie de incidência desse preceito constitucional, a uma porque a ofensa não foi proferida no recinto do Congresso Nacional e, a duas, porque ao proferir as ofensas não estava no exercício do mandato nem o fez em razão dele. A três porque a sua conduta fugiu dos limites da Constituição, esbarrando também na lei de segurança nacional.
Efetivamente, o exercício do mandato parlamentar não pode se prestar a ofender o livre exercício dos poderes da república e o Estado Democrático de Direito.
Mesmo que se entendesse que o deputado estava no exercício do mandato popular, ou estava agindo em função dele, ainda assim a sua conduta teria extrapolado os limites da Constituição, sejeitando-o à reprimenda judicial, o que ocorreu na hipótese.
Não se pode nessa hipótese, por outro lado, descartar a possibilidade dos ministros ofendidos, notadamente o ministro Alexandre de Moraes, ingressarem com as ações próprias contra o Deputado, tais como as de injúria , ameaça e indenizatória, sem prejuízo da denúncia sob comento.
O outro caso é o do deputado Federal Eduardo Bolsonaro, que, fazendo menção, em rede social, em tom jocoso e injurioso, à situação da jornalista Miriam Leitão, que teria sido, no período da ditadura militar, posta nua e grávida numa sala escura do aparelho do Estado, juntamente com uma cobra.
Essa postura, sobre não ter sido praticada no recinto do Congresso Nacional, não pode ter ligação alguma com o respectivo mandato do deputado, nem tampouco respeita os limites da Constituição.
Deveras, não coaduna com o exercício do mandato, nem com ele tem relação, essa manifestação, que, a par do mandato eletivo não se prestar a esse fim, ultrapassa os limites da Constituição, seja porque viola o seu art. 5º, III, seja porque maltrata o princípio da dignidade da pessoa humana. (art 1º, III, da CF/88).
Nesse particular, ouçamos a doutrina:
“O ser humano não pode ser exposto, máxime contra a sua vontade, à mera curiosidade de terceiros, para satisfazer instintos primários, nem pode ser apresentado como instrumento de divertimento alheio, com vistas a preencher o tempo de ócio de certo público. Em casos assim, não haverá exercício legítimo da liberdade de expressão” (Curso de Direito Constitucional, Gilmar Ferreira Mendes e outros, ed Saraiva, 2007, pág. 365).
Nesse caso, o Conselho de Ética da Câmara já recebeu uma representação contra o deputado, com pedido de cassação do seu mandato, sem embargo da possibilidade de uma ação de injúria que pode ser aforada pela jornalista.