Em 2017 a gravação clandestina de diálogo entre Michel Temer e Joesley Batista estremeceu o país. Na sequência de sua divulgação a OAB postulou o impeachment de Temer, reacendendo o debate sobre a quebra da cadeia de custódia, o flagrante armado e a validade dessa espécie de procedimento. Afinal, a captação de diálogo feita por um dos interlocutores sem o conhecimento do outro e sem prévia autorização judicial continua sendo prova admissível tanto para a acusação quanto para a defesa em processos criminais? E em outros âmbitos do Direito, como o cível ou eleitoral?
Este debate tem relevância na medida em que lei 13.964/2019 trouxe ao mundo jurídico o art. 8º-A, §4º, o qual assim dispõe: “A captação ambiental feita por um dos interlocutores sem o prévio conhecimento da autoridade policial ou do MP poderá ser utilizada, em matéria de defesa, quando demonstrada a integridade da gravação".
Até então, pelo menos no âmbito criminal, era admitida a gravação ambiental feita por um dos interlocutores sem o conhecimento do outro, tanto pela acusação quanto pela defesa, pouco importando se a gravação ambiental foi na presença do interlocutor ou por telefone. Essa interpretação havia sido sedimentada pelo STF (questão de ordem no RExt 583.937): “É lícita a prova consistente em gravação ambiental realizada por um dos interlocutores sem conhecimento do outro” (tema 237).
Contudo, a partir da seara eleitoral e preponderantemente desde a edição da lei 13.964/19 tem-se verificado que o entendimento jurisprudencial antes consolidado parece estar em vias de ser reconsiderado ou, pelo menos, reinterpretado.
Embora assemelhem-se, a gravação ambiental clandestina aqui citada não se confunde com os “grampos”, a interceptação telefônica ou os casos em que um terceiro, alheio à conversação, dissimuladamente capta um diálogo sem autorização judicial. Nestes casos o entendimento assentado há significativo tempo pelos tribunais superiores é na direção da ilicitude da prova.
A despeito das gravações ambientais clandestinas frequentemente serem empregadas como meios de obtenção de prova na busca pela elucidação de crimes e ilícitos cíveis e administrativos, e apesar do julgamento do tema pelo STF, a redação do art. 8º-A, §4º, da lei 9.296/96, vem suscitando debates sobre os novos parâmetros da admissibilidade da gravação ambiental clandestina como prova de acusação.
Não é de hoje que a gravação ambiental clandestina é criticada sob a ótica da privacidade, da proteção à vida privada, do combate ao flagrante preparado e da preservação da cadeia de custódia. Todavia, com a novel legislação, a controvérsia ganhou um novo nível porque gramaticalmente o novo dispositivo autoriza o uso da captação ambiental clandestina apenas “em matéria de defesa", vedando-se, ainda que implicitamente, a sua utilização pela acusação.
Embora esse argumento ainda não tenha sido enfrentado pelo STJ ou pelo STF, o TSE tem oscilado na interpretação do tema, reconhecendo tanto a licitude quanto a ilicitude em razão das peculiaridades da seara eleitoral. De 2008 a 2014 o TSE entendia pela ilicitude da gravação ambiental obtida por um dos interlocutores sem que houvesse anuência ou autorização judicial. Em 2015 passou a admitir esse tipo de gravação apenas "quando registrar fatos ocorridos em espaços públicos ou não sujeitos à expectativa de privacidade" (REspe 637-61), e em 2019 sua utilização foi ampliada, fixando-se a regra da licitude das gravações ambientais clandestinas (REspe 408-98/SC).
Em um refluxo interpretativo, o TSE entendeu pela ilicitude de gravação ambiental clandestina produzida antes da vigência do art. 8º-A, §4º, da lei 9.296/96 (AgRG no AI 293-64.2016.6.16.0095). No julgamento, o ministro Alexandre de Morais menciona que a "lacuna legal na regulamentação de gravações ambientais "foi suprida pelo advento do art. 8º-A da lei 9.296/96, cuja incidência impõe-se a todos os processos em curso, por se tratar de norma protetiva de direitos fundamentais (privacidade, vida privada)”, interpretação não acompanhada pelo ministro Luís Roberto Barroso, para quem o dispositivo direciona-se às ações penais e não teria impacto nas ações cíveis-eleitorais. Portanto, este é o debate posto.
Mesmo no âmbito eleitoral o entendimento não está consolidado, porquanto o STF reconheceu a repercussão geral do tema 979 no RE 1.040.515, que trata admissibilidade de gravação ambiental clandestina em ação de impugnação de mandato eletivo. Apesar de não mencionar o art. 8º-A, §4º, da lei 9.296/96, o ministro Dias Toffoli proferiu voto afirmando a ilicitude da gravação ambiental clandestina a partir das eleições de 2022, salvo nos casos em que a captação ocorrer em local público sem controle de acesso. Este julgamento está suspenso em razão do pedido de vistas do Ministro Gilmar Mendes.
Sobre o tema, a 7ª Câmara Criminal do TJ/RJ trancou ação penal contra um ex-prefeito de Japeri/RJ por considerar que agravação ambiental realizada clandestinamente por particular, sem autorização judicial, em ambiente no qual havia expectativa de privacidade entre os interlocutores, viola o direito fundamental à intimidade e representa prova ilícita. Essa mesma interpretação tem sido defendida por juristas como Lenio Luiz Streck, Marcelo Augusto Rodrigues de Lemos e Igor Suassuna de Vasconcelos, para quem a resposta dada pela nova legislação impõe a impossibilidade de uso da gravação clandestina para incriminar outrem. Caso contrário, o trecho “em matéria de defesa” constante no dispositivo legal não teria sido propositalmente inserido.
Importante deixar claro que é acertada a interpretação restritiva dada ao dispositivo, porquanto em uma hermenêutica sistemática de todo o art. 8º da lei de interceptações telefônicas, nota-se que, em regra, a captação ambiental está condicionada à reserva de jurisdição, tendo o legislador editado o aludido dispositivo como uma hipótese de exceção: o emprego da prova para defesa.
De todo modo, a questão deve ser muito em breve dirimida pelo Poder Judiciário, que deverá adotar a interpretação mais adequada e assegurar que a validade da prova obtida em captação ambiental clandestina seja admitida apenas quando puder ser aproveitada em matéria de defesa, jamais pela acusação.