Se você leitor caiu de paraquedas nesse maio de 2022 duas questões precisam ser esclarecidas. A primeira é que o país se encontra atualmente em uma crise plúrima, sendo certo que não há uma resposta fácil para resolver todos os problemas que o Brasil sofre. A segunda, aquela que interpretaremos no ensaio em questão, refere-se ao problema da ausência de abrangência territorial suficiente por parte da Defensoria Pública, esta que, segundo dados recentes, ainda está longe de cumprir o mandamento constitucional.
Pleonasmos à parte, comecemos do início.
A defensoria pública é, segundo a Constituição, em redação dada pela própria EC 40/14, uma:
“[…] instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5º desta Constituição Federal.” (CR, art. 134)
Esse caráter institucional e à parte dos três poderes confere à defensoria uma autonomia (essa que foi garantida apenas em 2004 com a EC 45 – apelidada como a emenda da “Reforma do Judiciário” a despeito de tal emenda ter trazido diversas mudanças em outros aspectos da Constituição da República) necessária para a atuação livre e desimpedida em prol dos assistidos. Aliás, em termos doutrinários, o Brasil encontra-se no patamar mais avançado em termos de teoria dos modelos de assistência jurídica, consubstanciando um modelo de assistência aos necessitados chamado em terras alienígenas de “salaried staff model”, mas em uma versão ainda melhorada – uma vez que além de serem os defensores agentes do Estado que recebem subsídios de forma mensal (assemelhada a salário), tais agentes pertencem a uma instituição autônoma, e não meramente a um órgão do Estado.
Feita essa brevíssima digressão acerca da defensoria pública como instituição, vamos agora tentar entender melhor os fatos e dados que circundam o tema. Para a parte seguinte do texto contamos com os dados obtidos na pesquisa nacional da defensoria pública realizada em 2021.1
A Defensoria não é instituição antiga em terrae brasilis, sendo certo que a pioneira foi a do Estado do Rio de Janeiro, criada em 1954, e, portanto, com menos de 100 anos de existência. Nem se fale então da Defensoria Pública do Amapá, que, por exemplo, apenas foi instalada no ano de 2019, dando contornos do verdadeiro disparate que as autoridades fazem quando o assunto é assistência ao hipossuficiente, considerando-se que a Defensoria passou a ser mandamento constitucional já no texto original da Constituição da República, esta que foi promulgada em outubro de 1988.
A Defensoria também sofre quando comparada aos seus conterrâneos do sistema judicial. Com efeito, entre as três instituições proeminentes do sistema judicial a defensoria também é a que conta com menor quadro de membros (6.861), sendo correspondente a pouco mais da metade dos membros do MP (12.915) e a pouco mais de um terço dos membros do Judiciário (17.975).
Não se quer aqui dizer que não houve uma melhora nos quadros da Defensoria, o que seria uma inverdade, mas tão somente pontuar que dados interpretados de forma isolada são um verdadeiro prato cheio para a desinformação. Então não se esquece aqui que a Defensoria mais que dobrou de tamanho desde 2003, quando contava com 3.190 membros, até 2020, quando possuía 6.861 integrantes. A grande questão é: o que significa esse número? Como podemos interpretá-lo no contexto brasileiro?
Tudo indica que o caminho para responder passa pela Emenda Constitucional 80/14. Vejamos, in verbis, como ficou a redação do art. 98 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias após a referida emenda:
“Art. 98. O número de defensores públicos na unidade jurisdicional será proporcional à efetiva demanda pelo serviço da Defensoria Pública e à respectiva população.
§ 1º No prazo de oito anos, a União, os Estados e o Distrito Federal deverão contar com defensores públicos em todas as unidades jurisdicionais, observado o disposto no caput deste artigo.
§ 2º Durante o decurso do prazo previsto no § 1º deste artigo, a lotação dos defensores públicos ocorrerá, prioritariamente, atendendo as regiões com maiores índices de exclusão social e adensamento populacional."
Do quanto visto acima descobrimos duas chaves interpretativas que devem ser usadas para resolver a celeuma: a efetiva proporção entre o número de defensores públicos para suprir a demanda jurisdicional dos hipossuficientes; e o preenchimento da presença defensoral em todas as unidades jurisdicionais do território brasileiro. Analisemos esses dois elementos nos parágrafos abaixo.
Quanto ao primeiro, o da proporção entre o número de defensores e a demanda jurisdicional dos hipossuficientes, verifica-se que não há o atendimento do quanto exposto na EC 80/14. Com efeito, seja pela mera comparação dos números de integrantes das carreiras do sistema judicial (como já feito acima) seja em advindo da expressão matemática entre número de potenciais assistidos e número de defensores públicos, a resposta é a de que a proporção é insuficiente.
No que se refere à abrangência da Defensoria em todas as unidades jurisdicionais (i.e. comarcas e subseções Judiciárias) valemo-nos do mapa extraído da pesquisa já referida acima. Senão vejamos:
Fonte: Pesquisa Nacional da Defensoria Pública (2021). Dados sobre a estruturação geográfica das comarcas obtidos junto aos Tribunais de Justic¸a dos Estados e Distrito Federal. Dados sobre as comarcas atendidas pela Defensoria Pu'blica obtidos junto aos Defensores Públicos Gerais de cada Estado e Distrito Federal. Informações atualizadas até 10/03/2021. Cartografia: Eduardo Dutenkefer.2
Do mapa acima vê-se que, há menos de mês para o esgotamento do prazo de implementação da Emenda Constitucional 80/14, a situação no país acerca da abrangência territorial da Defensoria Pública ainda é precária. Será que ainda dá tempo de reverter essa situação, ou seria só caso de reconhecer a derrota?
Pois bem, do quanto visto acima claramente percebe-se que não será possível colmatar oito anos de atraso nos próximos vinte e poucos dias. No entanto acredito que possa ser viável extrair algum ensinamento e possível caminho para resolver o problema levantado.
Vale, nesse ponto, explorarmos um vocábulo do tupi antigo3, como forma de, talvez, entendermos de modo diferente a situação narrada. Refiro-me aqui ao verbo de múltiplos significados “gûatá”, que dentre suas muitas definições significa, a depender do contexto, tanto “caminhar, andar”, quanto “faltar, não atingir”. Ora, realmente ainda precisamos muito andar no caminho de perfazer o mandamento da Emenda Constitucional 80/14, uma vez que, como demonstrado acima, estamos ainda anos-luz (com o perdão da piada pronta) de cumpri-la. De outro lado, podemos dizer também que estamos em falta com ela, isso porque não será possível sua completude no prazo estabelecido originariamente (oito anos).
Quero, no entanto, e como propus uma viável solução, acabar esse breve texto apontando um último significado da palavra gûatá (sim, eles não acabaram), qual seja, o de “passear”. Talvez a solução para o problema do desdém com a instituição Defensoria seja justamente a falta de passeio, passeio esse pelas ruas de nossas cidades e pelas áreas rurais de nosso Brasil, pois é nesse “passear” que se vê os problemas sofridos pela população de rua e por demais grupos hipossuficientes da sociedade, só então decifrando a real necessidade de uma Defensoria que seja, de fato, para todos.
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1 Incentiva-se aqui o leitor a entrar no link e verificar por si os dados obtidos da pesquisa. Ressalta-se que existem diversas funcionalidades interessantes no site indicado, com possibilidade de uso de mapas interativos, bem como outras ferramentas disponíveis. Disponivel aqui.
2 Mapa pode ser acessado em https://pesquisanacionaldefensoria.com.br/cartografia-da-defensoria-publica-no-brasil-2021/
3 Todos os significados extraídos das palavras de Tupi Antigo são encontrados na obra de Eduardo de Almeida Navarro chamada Dicionário de Tupi Antigo, que conta com um prefácio do magistral Ariano Suassuna. 1ª ed. São Paulo: Global, 2013.