Migalhas de Peso

O STJ e o dilema da justa reparação moral

A impessoalidade que deveria vigorar na valoração do dano, fixado que estaria no evento em si e sua capacidade de ofensa à ordem ideal do ofendido, parece estar longe de ser considerada pela Corte.

9/5/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

Num cenário onde a reparação financeira por morte era considerada uma imoralidade pelo STF, sobreveio a Carta Magna de 1.988, quando a reparação do dano moral foi definitivamente consagrada em nosso direito.

A primeira consequência foi o enorme aumento da demanda tendo por base os mais variados casos, numa experiência capaz de levar ao delineamento das situações que seriam consideradas ofensivas a ponto de ensejar a reparação, bem como do valor que seria razoável para a compensação.

Esse novo tempo trouxe consigo principalmente o dilema da valoração da reparação moral, ausentes critérios e contornos legais capazes de dar a medida da justa reparação.

A princípio, tratando-se de matéria fática, essa questão acabaria solucionada nas instâncias locais que, todavia, não atingiram o objetivo de uniformizar a avaliação, mesmo nos casos mais frequentes, onde seria razoável que a reiteração pudesse conduzir a um tratamento homogêneo.

Um caso emblemático pode bem demonstrar o que se afirma quando, por volta do ano de 1.992, houve o famoso evento denominado “Massacre do Carandirú”, uma invasão policial no famoso presidio, quando foram a óbito 111 presidiários.

As famílias ingressaram em juízo visando a reparação decorrente da perda do ente familiar. Condições idênticas entre eles, situação absolutamente coincidente com relação ao fato e, não obstante, a valoração oscilou entre o equivalente a 8/30 de um salário mínimo, até um máximo de 500 salários mínimos, gerando enorme insatisfação, uma vez que restou absurdamente sem sentido que uma família pudesse ser aquinhoada com valores tão díspares entre si, sem qualquer justificativa capaz de trazer consolo à injustiça causada.

Nessa ocasião o STJ passou a atrair o julgamento de causas reparatórias por dano moral, superando o óbice da súmula 7 (impossibilidade de reexame de matéria fática) desde que se mostrassem irrisórias ou exageradas, numa iniciativa capaz, a princípio, de nivelar as desigualdades criadas no terreno fértil da enorme variedade gerada justamente pela indefinição causada pela falta de estabilidade.

Assim considerado, teríamos então que concluir ter a Corte um parâmetro, ao menos para os casos mais frequentes no foro, uma vez que para se concluir ser um determinado valor exagerado ou ínfimo, por certo que teria que haver um valor padrão, a partir do qual se poderia considerar  o referido excesso ou a modicidade.

Essa indagação despertou a curiosidade a ponto de ter ensejado uma pesquisa estatística em mais de 5 mil decisões do STJ, onde foram detectados os casos mais frequentes: morte, abalo de crédito, ofensa à honra, ofensa à liberdade e lesões corporais1. Verificou-se que, para esses casos que se repetiam diuturnamente nos tribunais, havia uma certa regularidade nos valores concedidos, conquanto ainda fosse possível verificar a existência de algumas poucas disparidades.

De todo modo, revelou-se altamente salutar que a jurisprudência, ao cabo de tantos anos, acabasse por definir as situações hábeis a configurar o dano ideal, ao mesmo tempo em que pudesse trazer alguns parâmetros capazes de animar os pleitos dentro de uma linha coerente e equânime.

Mas, ainda concluindo dessa forma, não há motivos suficientes para comemorar.

Perduram na Corte, a este tempo e mesmo decorrido um lapso tão significativo de décadas, as disparidades que se verificam não entre casos idênticos, mas entre outros que, conquanto graves, acabam sendo reparados por valores inferiores a outros, de menor quilate.

Recentemente atuando em um caso onde um senhor de 80 anos se dirigia ao estacionamento do supermercado carrefour, no qual este veio a quedar-se em um esgoto a céu aberto, debateu-se sob enorme desespero em meio às fedorentas fezes, acreditando que não sobreviveria, já que além de deixarem a tampa inadvertidamente aberta, não dispunham de um funcionário no local, capaz de dar atendimento ao pobre acidentado.

Ainda sob forte estado de angústia, veio a ser socorrido por um transeunte, não sem antes ter fraturado o braço e lesionado o quadril na tentativa desesperada de salvar-se. Ficou alí, sob forte dores e insuportável fedor por horas, até a chegada do amparo médico, certo que o laudo pericial constatou não apenas a fratura e as lesões, como também resultou sequela funcional no braço, além de dano estético.

Buscou reparação moral por conta de todo o dano sofrido, demonstrando, com base no método criado pelo próprio STJ, o bifásico, onde se localizaria a causa base, acrescendo a ela os incidentes motivadores do aumento, para a conclusão acerca do valor devido.

Mais frequente nos tribunais e com similaridade capaz de ser considerada básica, seria a queda no interior do supermercado, ao qual, comprovou o ofendido ser reiteradamente concedido o valor equivalente a pelo menos 20/30 salários mínimos. Acresceu a isso ter sido a queda não dentro da loja, mas em um esgoto, sob risco de morte, ter havido lesão de membros, sequela e dano estético. Ainda, deve ser considerado tratar-se de pessoa idosa, com 80 anos e, ainda, o caráter punitivo que ao final deve ser considerado, se verificado tratar-se de uma corporação de porte, para quem a condenação em valores irrisórios pode significar um incentivo ao descaso permanente.

Pois bem. Calculou a vítima que receberia ao menos 100 salários mínimos, tendo como base 20/30 salários do caso base, acrescidos de todos esses itens considerados como de relevo para a contabilização do dano.

A reparação concedida foi de apenas o equivalente a 10 salários mínimos, depois de interposto recursos de apelação, embargos declaratórios, recurso especial, agravo de decisão denegatória de recurso especial, agravo interno e embargos declaratórios, nenhum capaz de sensibilizar o Judiciário para a enorme injustiça cometida, apesar da demonstração feita.

Agravou-se o estado ao verificar o pobre ofendido, mercê do noticiário jornalístico, que em seguida o cantor Chico Buarque teria sido ressarcido por danos morais na quantia de R$ 100 mil, simplesmente por ter sido chamado de ladrão nas redes sociais2

Em seguida, soube que “a editora gráfica universal terá que pagar R$ 150 mil de indenização por dano moral à Xuxa Meneghel. O motivo foi ter publicado na folha universal que a apresentadora é “satanista” e que teria vendido sua alma para o demônio por US$ 100 milhões.”3

Não foi apenas isso. Noticiou-se que “Carolina Ferraz está de alma lavada. A terceira turma do STJ determinou que uma revista de celebridades tem de pagar R$ 240 mil de indenização por danos morais à atriz. (..) A empresa foi processada por Carolina - que viveu a Alexia da novela "Avenida Brasil" - por promover uma campanha publicitária da publicação anunciando o fim de seu casamento com Murilo Benício”.4

Ou seja, a impessoalidade que deveria vigorar na valoração do dano, fixado que estaria no evento em si e sua capacidade de ofensa à ordem ideal do ofendido, parece estar longe de ser considerada pela Corte, com generosas fixações em casos de repercussão jornalística, retratadas em situações infinitamente inferiores.

Mas não apenas isso.

O valor concedido ao nosso acidentado, com sequelas, dano estético e trauma psicológico foi igual ao outorgado em outros casos infinitamente menores (10 salários mínimos):

Assinatura indesejada de revistas 

(REsp 1102787/PR, Rel. Ministro SIDNEI BENETI, TERCEIRA TURMA, julgado em 16/03/2010, DJe 29/03/10)

Protesto indevido

(AgInt no REsp 1956622/TO, Rel. Ministra ASSUSETE MAGALHÃES, SEGUNDA TURMA, julgado em 28/03/2022, DJe 30/03/22)

(AgInt no AREsp 1815618/AL, Rel. Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, QUARTA TURMA, julgado em 29/11/2021, DJe 01/12/21)

(AgInt no AREsp 1875896/SP, Rel. Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 29/11/2021, DJe 01/12/21)

(AgInt no AREsp 1522541/MS, Rel. Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA,

QUARTA TURMA, julgado em 23/11/21, DJe 02/03/22)

Suspensão do direito de dirigir

(AgInt no AREsp 1888107/TO, Rel. Ministro FRANCISCO FALCÃO, SEGUNDA

TURMA, julgado em 14/03/22, DJe 17/03/2022)

Atraso na entrega de obra

(AgInt no AREsp 1976685/RJ, Rel. Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, QUARTA TURMA, julgado em 14/03/2022, DJe 18/03/22)

(AgInt no AREsp 1844245/RJ, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 07/12/2021, DJe 17/02/22)

(AgInt no REsp 1941932/SP, Rel. Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA,

QUARTA TURMA, julgado em 22/11/2021, DJe 26/11/21)

Acidente porta de trem

Mão lesionada por ficar presa na porta de trem por minutos (sem sequela e sem dano estético)

(AgInt no AREsp 1901957/RJ, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 14/03/2022, DJe 29/03/22)

Falta de cobertura por plano de saúde, como liminar deferida

(AgInt no AREsp 1907547/PE, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 14/02/2022, DJe 24/02/22)

(AgInt no REsp 1951056/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 13/12/2021, DJe 15/12/21)

(AgInt no AREsp 1926019/MG, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE,

TERCEIRA TURMA, julgado em 29/11/21, DJe 02/12/21)

Descumprimento de pacote turístico

(AgInt nos EDcl no AREsp 1827754/DF, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA

TURMA, julgado em 04/10/21, DJe 08/11/21)

Em resumo, ainda não atingiu a nossa C.Corte a justiça esperada pelo jurisdicionado na fixação da verba reparatória do dano moral, sendo o momento de refletir de modo importante a respeito dessas disparidades capazes de causar sérias injustiças.

___________

1 Esse estudo resultou na obra de minha autoria, O Valor da Reparação Moral , Placido Editora, 5ª ed. 2.020.

2 https://www.band.uol.com.br/noticias/stj-mantem-indenizacao-de-r-100-mila-chico-buarque-apos-ser-chamado-de-ladrao-16509606. Acesso em 4.5.22.

https://www.migalhas.com.br/quentes/165947/igreja-universal-indenizaraxuxa-em-r--150-mil-por-danos-morais. Acesso em 4.5.22.

4 https://www.purepeople.com.br/noticia/carolina-ferraz-ganha-r-240-mil-deindenizacao-em-processo-contra-revista_a358/1. Acesso em 4.5.22.

Mirna Cianci
Procuradora do Estado de São Paulo. Doutora e mestre em Direito Processual Civil. Professora. Sócia no escritório Cianci Quartieri Advogados.

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