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Nogueira de Carvalho e outro versus Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos

Um dos casos brasileiros mais conhecidos na Corte Interamericana de Direitos Humanos e o único em que o país não foi condenado pelo órgão internacional.

10/5/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

Para entender a Comissão e a Corte Interamericana de Direitos, precisamos entender, ainda que superficialmente, a OEA – Organização dos Estados Americanos. Fundada em 1948 com a assinatura da Carta da OEA1, a Organização possuí natureza jurídica de organização internacional e constituí um organismo regional dentro das Nações Unidas. Atualmente reúne 35 Estados americanos independentes e conta ainda com a União Europeia e outros 69 Estados como observadores permanentes2.

Entre os fundamentos da Organização estão a democracia; segurança; desenvolvimento e direitos humanos, este último resguardado pela CIDH – Comissão Interamericana de Direitos Humanos e CorteIDH – Corte Interamericana de Direitos Humanos, formando o SIDH – Sistema Interamericano de proteção dos direitos humanos, responsável pela promoção e proteção desses direitos no continente americano

A comissão (CIDH) é o principal órgão da OEA, autônomo e sediado em Washington, DC, serve ainda como órgão consultivo da Organização no que diz respeito à observância e defesa dos direitos humanos e exerce suas funções com base no “Sistema de Petição Individual; o monitoramento da situação dos direitos humanos nos Estados Membros, e a atenção a linhas temáticas prioritárias.”3

Já a CorteIDH – Corte Interamericana, é composta por sete juízes eleitos oriundos dos países membros da OEA e são eles os responsáveis por, através de sentenças e eventuais consultas, aplicar a Convenção Americana e tratados internacionais de direitos humanos.4

Dessa forma, é possível compreender melhor como se faz para nos socorrermos ao órgão internacional. As supostas vítimas ou peticionários apenas poderão apresentar casos à Comissão após esgotados os recursos internos de seu país, sendo vedada a apresentação diretamente à Corte, com exceção dos Estados membros da Comissão, que possuem tal prerrogativa.

Apresentado o caso à comissão, essa poderá admitir a petição e emitir um informe de admissibilidade ou inadmissibilidade; negociar uma solução amistosa entre as partes; emitir um informe sobre o mérito ou apresentar o caso perante a CorteIDH.

Entre os diversos casos analisados pela Comissão e julgados pela Corte envolvendo o estado brasileiro, um deles se destaca: Nogueira de Carvalho e outro versus Brasil.

Gilson Nogueira de Carvalho, advogado, defensor dos direitos humanos e coordenador do CDHMP – Centro de Direitos Humanos e Memória Popular, foi assassinado em 20/10/96, na cidade de Macaíba (RN), pouco mais de dois anos antes da República Federativa do Brasil reconhecer a competência contenciosa da Corte, o que foi feito em 10/12/98.

Gilson Nogueira de Carvalho se destacou por seu trabalho denunciando crimes cometidos pelo grupo de extermínio “meninos de ouro”, supostamente composto por policiais civis e outros funcionários públicos.

Internamente, o inquérito foi arquivado, sendo posteriormente reaberto e tendo apenas uma pessoa indiciada, mas a falta de condenação resultou em novo arquivamento. Com isso, o CDHMP – Centro de Direitos Humanos e Memória Popular, o Holocaust Human Rights Project e o Group of International Human Rights Law Students recorreram à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Mais tarde, a justiça global também ingressou no polo ativo.

As instituições mencionadas alegaram que o Estado brasileiro não havia cumprido com sua obrigação de garantir a Gilson Nogueira o direito à vida; de realizar uma investigação séria sobre sua morte; processar os responsáveis e promover os recursos judiciais adequados.5

A denúncia foi admitida pela Comissão após o estado brasileiro silenciar quando questionado acerca do esgotamento dos recursos na jurisdição interna:

o silêncio do Estado [sobre o esgotamento dos recursos internos] constitui no presente caso uma renúncia tácita à invocação dessa exigência”.6

Do mesmo modo, o Estado brasileiro também não se pronunciou quando a Comissão se colocou à disposição para uma solução amistosa, o que culminou no reconhecimento das violações alegadas pelos peticionários e em recomendações realizadas ao Estado pela CIDH.

Prorrogado o prazo para adoção das recomendações e apresentados três relatórios pelo Estado brasileiro informando, inclusive, a pendência de recursos nos tribunais superiores, o caso foi encaminhado à Corte em 13/1/15.

Um ponto chave para entender o motivo pelo qual o caso em questão ganhou notoriedade é o fato de a violação ao direito à vida de Gilson Nogueira não ter sido objeto de análise pela Corte. Como mencionado anteriormente, o Brasil só reconheceu a competência contenciosa da Corte em 10/12/98, fazendo com que o assassinato em si, ocorrido em 1996, apesar de compreendido na petição dos seus representantes de Gilson, não fosse examinado pela CorteIDH, limitando-se a eventuais violações dos arts. 8 e 25 da convenção americana sobre direitos humanos, “garantias judiciais” e “proteção judicial”, respectivamente.

Perante a Corte, o Estado brasileiro apresentou duas exceções, a primeira delas aborda eventual Incompetência para conhecer o caso, enquanto a segunda, o não esgotamento dos recursos na jurisdição interna. Quanto a incompetência da Corte, a alegação segue no sentido de que, apesar do direito à vida não estar sendo diretamente analisado, os pedidos realizados na demanda acarretariam uma condenação indireta por este fato.

Já quanto ao não esgotamentos das vias internas, o Estado reiterou a existência de recursos pendentes no STJ e no STF, além de ressaltar que o pedido feito à Corte para condenação ao pagamento de uma indenização pecuniária, nunca havia sido realizado em âmbito nacional.

Feito isso, a Corte se considerou competente para conhecer as supostas violações aos arts. 8º e 25 e, mesmo não podendo julgar a violação ao direito à vida de Gilson, ainda estaria apta para examinar as “ações e omissões relacionadas com violações contínuas ou permanentes, que têm início antes da data de reconhecimento da competência da Corte”7, afastando a primeira exceção.

A segunda exceção foi desconsiderada, entendendo que a carência de manifestação estatal sobre o tema, ainda durante o procedimento de admissibilidade na Comissão Interamericana, incidiu em admissão tácita da inexistência de recursos.

Posto isso, a Comissão realizou a valoração das provas apresentadas e concluiu que Gilson Nogueira de Carvalho foi, de fato, assassinado em uma emboscada no dia 20/10/96; reafirmou a importância dos trabalhos desenvolvidos por defensores dos direitos humanos, ressaltou que concerne ao Estado o estabelecimento de condições que possibilite o trabalho desses profissionais e destacou a necessidade de apoiá-los.

Porém, não cabe ao órgão internacional substituir a jurisdição local e por este motivo se ateve unicamente aos direitos consagrados nos arts. 8 e 25 da Convenção Americana. Considerando que houve abertura de inquérito policial; foram levantadas diversas hipóteses sobre a autoria do crime e realizadas investigações, a Corte entendeu que não foram violados os direitos à proteção e às garantias judiciais, arquivando o expediente por unanimidade em 28/11/2006.

A sensação de injustiça pelo fato do assassinato de Gilson estar intimamente ligado a um grupo de extermínio e mesmo assim não gerar qualquer condenação no plano nacional fez com que diversas pessoas, envolvidas ou não no caso, depositassem sua esperança de justiça no órgão internacional.

A ausência de qualquer condenação, agora pela CIDH, trouxe novamente a sensação de iniquidade. No entanto, devemos considerar a limitação do órgão no que concerne a investigação de um fato ocorrido antes mesmo do reconhecimento de sua competência contenciosa e admitir que a obrigação primordial de se realizar de uma apuração capaz de apontar com precisão o ocorrido e a responsabilização dos envolvidos é sempre do Estado Nacional.

_____________________________________________

1 http://www.oas.org/dil/port/tratados_A-41_Carta_da_Organiza%C3%A7%C3%A3o_dos_Estados_Americanos.htm

2 https://www.oas.org/pt/sobre/quem_somos.asp

3 https://www.oas.org/pt/cidh/jsForm/?File=/pt/cidh/mandato/que.asp

4 https://www.oas.org/es/cidh/docs/folleto/CIDHFolleto_port.pdf

5 https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_161_por.pdf - Página 3 - §5º

6 https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_161_por.pdf - Página 4 - §9º

7 https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_161_por.pdf - Página 11 - § 45.

Marcelo Grassatto de Almeida
Advogado com experiência e atuação em Direito Civil, Constitucional, Administrativo e Consumidor além de interesse e estudos voltados para áreas relativas ao Direito Internacional, Direito Internacional Humanitário e Relações Internacionais.

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