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O STF pode anular o decreto do presidente que concedeu o perdão ao deputado Daniel Silveira?

O presidente Jair Bolsonaro concedeu o perdão ao réu, por intermédio do decreto de indulto individual, ou graça. O decreto foi publicado antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória.

22/4/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

“A moral é o cerne da pátria. A corrupção é o cupim da República. República, suja pela corrupção impune, é tomada nas mãos de demagogos que a pretexto de salvá-la a tiranizam.”1
Ulisses Guimarães

 

No dia 20 de abril, o STF condenou o deputado Federal Daniel Silveira no âmbito da AP 1.044. A condenação restou estabelecida nos seguintes termos:

“a oito anos e nove meses de reclusão, em regime inicial fechado, pelos crimes de incitação à abolição violenta do Estado Democrático de Direito (art. 23, inciso IV, combinado com o arT. 18 da Lei 7.170/1983) e coação no curso do processo (art. 344 do CP). Entre os efeitos da condenação, determinou a suspensão dos direitos políticos e a perda do mandato parlamentar. A condenação abrange, ainda, 35 dias-multa no valor de cinco salários mínimos, corrigidos monetariamente na data do pagamento (R$ 212 mil, em valores atuais).”2

Em 21 de abril, o presidente Jair Bolsonaro concedeu o perdão ao réu, por intermédio do decreto de indulto individual, ou graça. Graça é um benefício individual e indulto é coletivo. O decreto foi publicado antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória.

Vejamos alguns detalhes importantes e controvertidos:

1) O decreto poderia ser exarado antes da sentença penal condenatória transitar em julgado?

Entendemos que sim.

Considerando que a decisão do plenário do STF não poderia mais sofrer nenhuma alteração em sua substância, visto que, o único recurso de caráter infringente cabível em face de uma decisão do pleno seria embargos infringentes, mas o regimento interno do STF estabelece que o recurso só pode ser interposto, caso a decisão tenha contado com quatro votos divergentes3. Houve apenas um voto divergente, do ministro Kássio Nunes.

Afora os embargos de divergência, só é possível opor embargos de declaração. Que, como sabemos, não possuem caráter infringente.

Por que isso importa? Porque o decreto não retira a condição de condenado do réu, mas sim, perdoa a sua pena. Se a pena não poderia mais ser modificada, sob um ponto de vista pragmático, não haveria motivos para aguardar o trânsito em julgado.

É nesse sentido também o entendimento da doutrina:

2. Voltamos, agora, para alguns aspectos sobre a incidência da graça ou do indulto. Pressupôem sentensa condenat6ria irrecorrível, podendo, entretanto, ser concedidos sem o trânsito em julgado da sentença, como ocorre quando só a defesa pleiteia reforma. Entendem alguns que, afora essas hipóteses, podem ser concedidos antes da condenação definitiva.
(...) Doutrinariamente, entretanto, o entendimento pende para a possibilidade de o indulto ou a graça incidirem, apenas, em havendo o trânsito em julgado da sentença, ou a impossibilidade de reformá-la para pior.4 (grifo nosso)

Assim, o primeiro ponto de divergência foi enfrentado.

2) O Presidente pode interferir diretamente em uma decisão do STF dessa forma?

O art. 84, inc. XII, da CF/88,5 e o art. 734, do CPC brasileiro6, assegura ao presidente da República a prerrogativa de conceder indulto e comutar penas. A decisão do Chefe do Poder Executivo é discricionária. O mérito da escolha das motivações é de caráter personalíssimo. Não são um objeto sindicável pelo Poder Judiciário em razão da separação dos Poderes.

A decisão do Presidente está precisamente dentro do escopo de competência do chefe do poder Executivo. Ele foi eleito para tomar decisões como essa. Trata-se de um ato político por excelência. Ele atua como chefe de Estado personificando a figura do próprio Estado brasileiro. A decisão não se dá como ato administrativo de chefia de governo, qualificado em vinculado e discricionário. A decisão de chefe de Estado possui um caráter sui generis, quase como se a conduta remontasse à irresponsabilidade do Rei, em tempos idos. Destacamos o “quase”, pois, o estado democrático de Direito não permite ações, sejam quais forem e de quem for, que violem o império das leis.

O tema acerca da sindicabilidade do ato político do chefe do poder Executivo Federal já foi debatido pelo STF no bojo da ADIn 5874, na qual os Ministros já estabeleceram limites para a atuação da Corte em face de atos políticos desse jaez:

O ato político é de amplíssima discricionariedade e, portanto, imune ao controle jurisdicional. A impugnação judicial do ato só está autorizada se estiver presente clara ofensa às regras constitucionais, o que não ficou demonstrado na espécie. Não há base constitucional para qualquer intervenção do Poder Judiciário que direta, ou indiretamente, importe juízo de mérito sobre a ocorrência ou não de conveniência ou oportunidade porque o único juiz constitucional dessa matéria é o Presidente da República” (Ministro Ricardo Lewandowisk)

O tribunal não pode fixar requisitos, haja vista que, ao Poder Judiciário, também se impõe o império da Constituição Federal. Se o Supremo fixar condições para o decreto analisado, estará fixando, também, para todos os subsequentes e, portanto, estará legislando”. (Ministro Alexandre de Moraes)

Importante destacar que o instituto do indulto ou graça, advém da antiguidade e sempre teve como objetivo corrigir falhas e ilegalidades praticadas pelo Poder Judiciário. Por óbvio, em respeito ao Estado democrático de direito, discricionariedade não se confunde com arbitrariedade e os fundamentos da decisão precisam estar de acordo com a finalidade do instituto e com o texto constitucional.

Adriana Cecilio Marco dos Santos
Advogada. Especialista em Direito Constitucional. Mestre em Direito. Professora de Direito Constitucional. Fundadora do Grupo de Estudos Democratismo.

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