Migalhas de Peso

Prestação de contas dos gastos com a pandemia

O descumprimento do dever de prestação de contas, importará ao infrator a imposição de multas, responsabilização pela prática de atos de improbidade administrativa.

20/4/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

A Constituição Federal de 1988 adotou o modelo de Estado Democrático Social de Direito, que tem como principais características o império da lei; a garantia dos direitos fundamentais e o controle social dos atos públicos. O anunciado que reverbera essa escolha está em seu art. 37, que obriga todos os entes federados ao cumprimento dos princípios da “legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência”. O objetivo dessa ordem é manter os agentes públicos nos trilhos do inafastável interesse público e para salvaguardar o atingimento dessa vontade, obrigou os agentes públicos a realizarem periodicamente prestações de contas de todos os seus atos, com maior ênfase para os gastos públicos.

Esse dever de dar conhecimento dos atos é o que Frederich Mosher denominou de Accountability1, termo que a doutora Anna Maria Campos traduziu como os limites dos mecanismos de controle formal gerados no interior da burocracia2. A exigida prestação de contas, o que para Marçal Justen “é um instrumento de participação democrática na formação da vontade estatal”,3 deve ser ampla e transparente, pois é o procedimento pelo qual a sociedade exerce os controles sociais sobre a administrações públicas, diretas, indiretas ou fundacionais.

Para regular as finanças públicas e a fiscalização financeira da administração pública direta e indireta, a Constituição Federal exigiu a edição de lei complementar, a qual foi sancionada com o número 101, de 4/5/2000, nominada de “Lei de Responsabilidade Fiscal”, a qual possui um capítulo destinado especificamente para a “Transparência, Controle e Fiscalização”. Ao longo de seus vinte e um anos de existência, a LRF sofreu várias alterações, com relevo para a lei complementar 131, de 27/5/09, a Lei da Transparência, que fez incluir em seu texto o “incentivo à participação popular e realização de audiências públicas, durante os processos de elaboração e discussão dos planos, lei de diretrizes orçamentárias e orçamentos”, art. 48, §’1.º, I, e  a disponibilização “a qualquer pessoa física ou jurídica o acesso a informações referentes, quanto à despesa, todos os atos praticados pelas unidades gestoras no decorrer da execução da despesa, no momento de sua realização, com a disponibilização mínima dos dados referentes ao número do correspondente processo, ao bem fornecido ou ao serviço prestado, à pessoa física ou jurídica beneficiária do pagamento e, quando for o caso, ao procedimento licitatório realizado”; e quanto a receita, “o lançamento e o recebimento de toda a receita das unidades gestoras, inclusive referente a recursos extraordinários”, art. 48-A, I e II.

 A gestão fiscal responsável “pressupõe a ação planejada e transparente, em que se previnem riscos e corrigem desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas públicas, mediante o cumprimento de metas de resultados entre receitas e despesas e a obediência a limites e condições”, LRF, Art. 1.º, § 1.º Nota-se que os fundamentos da Lei de Responsabilidade Fiscal estão no planejamento, na transparência e no controle social, através da participação popular. O art. 70, parágrafo único da CF/88, com redação dada pela Emenda Constitucional 19/98 trata da obrigatoriedade de prestar contas por “qualquer pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiro, bens e valores públicos ou pelos quais a União responda, ou que, em nome desta, assuma obrigações de natureza pecuniária. O descumprimento desse dever de prestação de contas, importará ao infrator a imposição de multas, responsabilização pela prática de atos de improbidade administrativa.

Apesar da Constituição Federal assegurar que “todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade”, o texto constitucional, porém, ressalva a não divulgação das informações “cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado”, art. 5º, inciso XXXIII. Além de que “a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem”, inciso LX. Esse sigilo, porém, não pode ser decretado de forma arbitrária, em razão de seu caráter de excepcionalidade exige que seja devida e satisfatoriamente justificado aos motivos que assim o motiva, por expressa determinação o art. 21 da Lei de Introdução ao Direito Brasileiro, lei 13.655, de 20184.

A OMS – Organização Mundial da Saúde – no dia 11/3/20, elevou o estado da contaminação à pandemia de covid-19, doença causada pelo novo coronavírus, Sars-Cov-2,205 exigindo das autoridades sanitárias nacionais e locais a edição de orientações, como a necessidade de distanciamento social, o uso de máscaras, higienização correta das mãos, dentre outras. Para o enfrentamento dessa brutal pandemia, o Governo Federal editou a lei complementar 173/20, implantando o programa de suporte a Estados e municípios por perdas de arrecadação e recursos, que prevê em seu art. 2.º que “de 1º/3 a 31/12/20, a União ficará impedida de executar as garantias das dívidas decorrentes dos contratos de refinanciamento de dívidas celebrados com os Estados e com o Distrito Federal com base na lei 9.496, de 11/9/97, e dos contratos de abertura de crédito firmados com os Estados ao amparo da medida provisória 2.192-70, de 24/8/01, as garantias das dívidas decorrentes dos contratos de refinanciamento celebrados com os Municípios com base na medida provisória 2.185-35, de 24/8/01, e o parcelamento dos débitos previdenciários de que trata a lei 13.485, de 2/10/17”.

Em seu § 1º, determina que no “caso, no período, o Estado, o Distrito Federal ou o município suspenda o pagamento das dívidas de que trata o caput, os valores não pagos” deverão “ser aplicados preferencialmente em ações de enfrentamento da calamidade pública decorrente da pandemia da covid-19”. No seu parágrafo quinto, determinou que os “Estados, o Distrito Federal e os Municípios, deverão demonstrar e dar publicidade à aplicação dos recursos de que trata o inciso II do § 1º deste art., evidenciando a correlação entre as ações desenvolvidas e os recursos não pagos à União, sem prejuízo da supervisão dos órgãos de controle competentes”.

Para a exigida prestação de contas dos gastos com o combate do coronavírus, além da obrigatoriedade que compete aos municípios de informar periodicamente aos tribunais de contas todas as ações adotadas e aos seus efeitos reflexos, indicando as despesas e respectivas fontes de custeio, devem, também, comprovar a aprovação pela Assembleia Legislativa do Estado, de seus decretos de Calamidade Pública. A decisão proferida na medida cautelar pelo ministro Alexandre de Moraes do STF, que afastou a exigência de demonstração de adequação e compensação orçamentárias, prevista na Lei de Responsabilidade Fiscal, LC 101/00,6 se aplica exclusivamente, para a criação ou expansão de programas públicos destinados ao enfrentamento da crise gerada pela covid-19, e incidem somente durante a vigência do decreto de calamidade de cada ente federativo, podendo se estender, no máximo, até 31/12/20.

Essas flexibilizações legais motivadas pela situação de emergência, exigem a adoção rigorosa do princípio da transparência, da mesma forma que a concessão de qualquer benefício pelo poder público, auxílio financeiro aos mais necessitados, ou isenção fiscal a pessoas jurídicas em dificuldades, etc. o inflexível acautelamento dos já citados princípios norteadores da administração pública.

A covid-19 gerou e continua gerando medo pelo seu potencial de contaminação e mutações, com novas variantes que a todo momento são identificadas. O medo provocado pela covid 19 não é apenas no âmbito sanitário, mas também para a segurança jurídica, posto que o aumento mundial da demanda por insumos e serviços de saúde, num cenário de limitação da capacidade de atendimento das estruturas públicas e privadas de saúde, continuam levando as autoridades sanitárias a decidirem por compras pelo preço que encontram e a utilizarem de procedimentos que poderão, no futuro, ser questionados pelos tribunais de contas e outras instituições de controle.

Por tudo isso, a grande preocupação dos bons e maus gestores públicos na atualidade é a correta prestação de contas desses gastos emergenciais para o combate a covid 19. Esse temor procede, pois são nesses cenários que a corrupção prolifera em níveis do próprio vírus da covid-19, o que está colocando em situação de alerta todas as instituições de controle. Para o articulista Ahmed Sameer El Khatib, responsável pelo capítulo “apndemia Fiscal: Uma análise entre corrupção pública, evasão fiscal e covid-19“, da “Revista Tribunais de Contas, a pandemia e o Futuro do Controle do Instituto Rui Barbosa do Brasil, as crises humanitárias e econômicas criam a tempestade perfeita para que a corrupção prospere, devido ao enorme influxo de ajuda financeira e à necessidade de aquisição emergencial e desembolso de fundos para mitigar a crise – com supervisão mínima. Provas de crises anteriores, bem como a atual pandemia de covid-19 indicaram que a corrupção reduz a quantidade e a qualidade da ajuda ou pacotes de estímulo que chegam aos beneficiários visados, o que pode prolongar a crise e afetar o crescimento7.

Nesse desiderato acautelatório dos interesses públicos, a Controladoria-Geral da União, CGU, está monitorando a aplicação dos recursos federais repassados a estados e municípios para combater a covid-19. Esse monitoramento tem o objetivo de identificar possíveis irregularidades, sendo que, segundo informações colhidas no site da CGU, “desde abril de 2020, já realizou 76 operações especiais, em conjunto com a Polícia Federal, PF, Ministérios Públicos e outros órgãos parceiro. O montante analisado nas contratações e licitações é de R$ 4,1 bilhões. O prejuízo efetivo, que constou nas apurações, é de R$ 56,4 milhões e o prejuízo potencial, que decorre dos desdobramentos das investigações, é de R$ 140,5 milhões”8.

Esse cenário de gastos elevados no combate a pandemia do coronavirus está mudando a forma de fiscalização pelos órgãos competentes, com a conjugação de esforços e compartilhamento de informações, o que exige de todos os gestores da saúde pública a atenção redobrada quanto a correta e transparente aplicação desses recursos, assim como a precisa e responsável execução dos programas financiados. As prestações de contas deverão ser bem detalhadas, com justificativas plausíveis dos gastos que não obedeceram aos processos licitatórios. Por tudo isso, o acompanhamento jurídico especializado, mormente em direito sanitário, é de suma importância para o assessoramento correto, com o objetivo de evitar que caiam na “malha fina” da Controladoria-Geral da União, Tribunais de Contas, Ministérios Públicos e Polícias Federal e Civil.

____________________________________

1 CAMPOS, A. M. Accountability: Quando poderemos traduzi-la para o português? Revista de Administração Pública. v. 24, n. 2, pp. 30-50, fev./abr. 1990.

2 Disponível em file:///C:/Users/Marcelo%20Celestino/Downloads/Campos_1990_Accountability--quando-poderem_14377.pdf, acessado em 20-12-21

3 Justen Filho, Marçal – Comentários {a Lei de Licitações e Contratos Administrativos? Lei 14.1332021, São Paulo : Thomson Reuters Brasil, 2012, p[ag.125

4 “A decisão que, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, decretar a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa deverá indicar de modo expresso suas consequências jurídicas e administrativas”.

5 Disponível em https://www.unasus.gov.br/noticia/organizacao-mundial-de-saude-declara-pandemia-de-coronavirus, acessado em 19-12-21

6 Disponível em https://www.conjur.com.br/dl/adi-6357-alexandre-lei-responsabilidade.pdf, acessado em 20-12-21

7 Disponível em https://irbcontas.org.br/wp-content/uploads/2021/11/os-tribunais-de-contas_a-pandemia-e-o-futuro-do-controle-final.pdf,acessado em 19-12-21

8 Disponível em https://www.gov.br/cgu/pt-br/coronavirus/cgu-monitora-aplicacao-dos-recursos-federais-repassados-a-estados-e-municipios, acessado em 18-12-21.

Marcelo Celestino
Promotor de Justiça de Goiás aposentado e Advogado sócio do escritorio Celestino, Borges e Urani Advogados Associados.

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