Migalhas de Peso

Mudanças paradigmáticas na responsabilidade civil: análise e controvérsias sobre o tema

O direito, reconhecidamente dinâmico, deve se movimentar conforme as mudanças históricas e sociais de seu tempo e é nesse sentido que o instituto da responsabilidade civil deve se adaptar aos novos rumos.

18/4/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

O instituto da responsabilidade civil passou por grandes transformações ao longo dos anos. Primeiramente, ela era caracterizada como coletiva e punitiva, havendo uma predominância de vinganças privadas àqueles que praticavam o dano e também a seu grupo familiar, o qual pertencia. Posteriormente, ela passou a ser individual, mas ainda assim era vista como punição ao agente, tendo a sua máxime na Lei das XII Tábuas, a qual se determinava "olho por olho, dente por dente"1.

No entanto, com o decorrer do tempo, percebeu-se que a forma punitiva da responsabilidade não era suficiente para compensar a vítima dos males causados, e apenas com a "Lex Aquilia"2 é que se originou uma maior preocupação com ela. Assim, a responsabilidade deixa de ser vista como punição, e passa a ter um viés compensatório, fundada na culpa do agente (responsabilidade subjetiva).

Em decorrência das transformações no direito civil e da evolução da sociedade, também originado do terceiro movimento interpretativo do direito civil (constitucionalização do direito, decorrente da crise do direito do Século XX), o instituto da responsabilidade passa a ser interpretado tendo como fundamento a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III CF). Nesse sentido, e conforme o eixo do personalismo ético, delimitado por Kant3, a preocupação cada vez maior passa a ser com a vítima e a compensação de seu dano sofrido.

Com a evolução das tecnologias e complexidade do mundo contemporâneo, o instituto da responsabilidade civil passou por mudanças também em seu próprio conceito e elementos, decorrentes de novos valores que não mais exclusivamente o individualista e patrimonialista que marcaram o Século XVIII e XIX das codificações na Europa, e que posteriormente delimitou os fundamentos do CC/1916. Antes, enquanto como regra havia a necessidade de se ter um dano, ou um ato ilícito para que se tivesse a responsabilidade civil, e apenas excepcionalmente teria a presunção de culpa (como por exemplo, na previsão do Decreto das Estradas de Ferro - Decreto 2.691/12), hoje já se pode atribuir responsabilidade àquele que praticou uma conduta, sem ter necessariamente conduzido a um dano. É o que a doutrina denomina de responsabilidade objetiva, e expressamente prevista no art. 927, parágrafo único CC.

Conceitua-se, portanto, a responsabilidade civil o instituto que delimita as consequências patrimoniais e extrapatrimoniais àquele que causou um dano a alguém (art. 186 e 927 CC), ou que, decorrente de atividade de risco qualificado pode assim ocasionar (art. 927, parágrafo único CC). Nesse sentido, possui como finalidade precípua compensar a vítima dos males que sofreu ou suportou.

Tendo em vista os elementos tradicionais da responsabilidade subjetiva (conduta do agente; dano sofrido; nexo de causalidade entre a conduta e o dano; e a culpa), pode-se afirmar que as excludentes de ilicitude se relacionam com o rompimento do nexo de causalidade. No caso da responsabilidade subjetiva, as excludentes comuns são o caso fortuito ou força maior; o fato de terceiro; a culpa exclusiva da vítima. Já na responsabilidade objetiva, deve-se diferenciar entre aquela de risco integral ou sem risco integral. Enquanto no primeiro caso não se admite o reconhecimento de excludente de responsabilidade pelo agente, como em situações de dano ambiental4 ou do comodatário em mora (art. 583, CC); no segundo caso já se admitem as possibilidades de se alegar culpa exclusiva da vítima ou caso fortuito/força maior.

No entanto, ainda se deve fazer uma classificação quanto ao caso fortuito/força maior no que se relaciona ao "fortuito interno" ou "fortuito externo". Estes termos foram reconhecidos originariamente pela doutrina e posteriormente pela jurisprudência em alguns casos emblemáticos. Relacionam-se com a ideia de que aquele que lucra com alguma atividade, deve ter o ônus decorrente dela também (ubi emolumentum ibi onus).

 Assim, o caso fortuito interno seria aquele ocasionado por um evento imprevisível, mas inerente à atividade negocial do agente, e por esse motivo, não seria motivo para romper o nexo de causalidade da conduta e o dano5. Pode-se exemplificar no caso reconhecido pelo STJ, o qual reconheceu que os bancos são responsáveis, independentemente de culpa, por fraudes e furtos ocorridos em contas de seus clientes (Súmula 479 STJ). O motivo para tanto é a inerência da segurança nas atividades bancárias. Assim como entendeu que lanchonete tem o dever de indenizar o consumidor que sofreu roubo armado em fila do drive-thru6.

Por outro lado, o caso fortuito externo se relacionaria a um evento imprevisível que não se relacionaria com a atividade exercida. Poderia se exemplificar, no caso, eventos naturais e que, por força da natureza, não mantêm vínculo algum com a conduta e o dano. Ou em casos de responsabilidade de lojas por furtos ocorridos em seu estacionamento disponibilizado por comodidade aos usuários7. Ou no caso em que se afastou a responsabilidade da concessionária de transporte ferroviário em detrimento de vítima que sofreu assédio sexual praticado por outro usuário no interior de trem8.

No entanto, decorrente dessa classificação do caso fortuito, surgem algumas controvérsias relativas aos eventos relacionados por fato de terceiro, em que um terceiro estranho a relação é que ocasiona o dano. Um exemplo seria o caso de roubo em ônibus de transporte: seria a empresa concessionária responsável pelos danos causados às vítimas do evento? Enéas de Matos9, em seu parecer sobre o tema, admite que seria possível e recomendável que essas empresas respondessem pelos danos causados, sob a justificativa de se considerar o evento como "fortuito interno", já que se espera a segurança decorrente dessas atividades, principalmente quando nem mesmo se pode classificar como um evento "imprevisível", já que os assaltos em grandes cidades já se tornaram algo bem comum. No entanto, o STJ parece vir numa tendência oposta, ao caracterizar o evento como "fortuito externo", sem relação alguma com a atividade10.

Em suma, as delimitações relativas ao fortuito interno e externo ainda são muito dúbias e padecem de um critério objetivo para sua delimitação a fim de excluir a responsabilidade, principalmente quando se trata de matérias relativas ao fato de terceiro. Além dessas controvérsias, ainda se insere uma outra delimitação temática. A questão da prescrição de pretensões indenizatórias, a depender do regime contratual ou extracontratual.

Assim, o CC/02 ao mesmo tempo que delimita expressamente que a ação indenizatória de responsabilidade civil prescreve em 3 anos, não diferencia qual dos dois regimes possui esse tempo prescricional. Por isso, o STJ de forma relativamente recente determinou que esse prazo deve ser estipulado apenas para os casos de responsabilidade extracontratual. Para a responsabilidade contratual, o regime a ser seguido seria o prazo geral do CC/02 de 10 anos11. Esse prazo contratual determinado de 10 anos, apesar de ter sido estipulado contrariamente a uma parcela doutrinária (Anderson Schreiber12, por exemplo), faz jus às frequentes transformações contratuais e preserva a noção de que geralmente os contratos empresariais possuem um prazo de duração muito maior do que 3 anos, o que seria injustificável trazer um prazo curto para a ação indenizatória.

A diferenciação entre a responsabilidade contratual e extracontratual ainda possui outras repercussões práticas e se encontram em convergência com o Código de Defesa do Consumidor (CDC), principalmente no que se refere aos contratos de adesão e cláusulas de não indenizar que são postas, muitas vezes, pelos fornecedores, a estabelecer uma nova excludente de responsabilidade.

No entanto, enquanto para os contratos empresariais, ela pode ser válida, em prol de uma maior autonomia da vontade das partes, nas relações consumeristas elas devem ser vistas com parcimônia. Isso porque prevalece que o CDC é caracterizado por situações entre agentes não paritárias, constituindo o consumidor como parte vulnerável da relação jurídica. Por esse motivo, há um maior dirigismo contratual por parte do Estado e, com isso, maior controle pelo Poder Judiciário.

Nesse sentido, o STF, por exemplo, já admitiu que nos contratos de transporte são inoperantes as cláusulas de não indenizar (Súmula 161 STF). Outros casos também surgem e vem se reconhecendo que, em prol do reconhecimento da eficácia transversal dos direitos fundamentais, deve-se inadmitir tais cláusulas, por serem abusivas ao consumidor (art. 25, CDC) – diferentemente do que ocorre em contratos empresariais.

Delimitadas tais questões, não há que se negar que as crescentes mudanças tecnológicas e complexidade do mundo contemporâneo trouxe diversos novos paradigmas para o instituto da responsabilidade civil. A personalização do direito civil, a multiplicação de normas jurídicas com o desenvolvimento de microssistemas, a ressistematização do direito civil e mudanças nas formas metodológicas de interpretar o direito civil foram algumas das grandes transformações originadas da pós modernidade;

O instituto da responsabilidade civil, sucumbindo a essas mudanças, trouxe diversas outras questões e novos danos, e um deles foi o dano moral. Muito se discutiu sobre isso, porque admitir que a dor e o sofrimento pudessem ser valorados seria algo reconhecidamente subjetivo. Nesse sentido, com base na proteção da dignidade da pessoa humana, admite-se o dano moral como reflexo de uma conduta danosa em quaisquer dos direitos de personalidade do indivíduo.

Atualmente ainda o STJ admite não apenas o dano moral às pessoas físicas, mas também às pessoas jurídicas de direito privado em seu aspecto objetivo (honra objetiva, decorrente de violação à imagem perante à sociedade, por exemplo) – Súmula 227 STJ – assim como às pessoas jurídicas de direito público, quando relacionados à violação da honra ou da imagem, quando a credibilidade institucional for agredida, conforme STJ13.

Em suma, a responsabilidade civil sofreu e ainda vem sofrendo diversas transformações, principalmente com as novas tecnologias e globalização do mundo atual. Novos danos surgem com a finalidade de se ter uma maior tutela à vítima, e por isso, irrompem institutos como o dano moral in re ipsa, já admitido pelo STJ em diversos casos, a fim de se estabelecer um dano moral presumido14; ou então o dano existencial, conforme Teresa Ancona Lopez15; a teoria da responsabilidade por perda de uma chance16; a teoria do desvio produtivo do consumidor17, ocasionando responsabilidade pelo fornecedor. Há ainda uma maior flexibilização do nexo de causalidade, com a admissão, por exemplo, da responsabilidade alternativa em alguns casos.

Nesse sentido, novos problemas clamam por soluções diversas e com isso, delimitam-se valores e propostas em decorrência de um sistema aberto e flexível que deve ser o direito civil. Vivencia-se uma transformação metodológica do direito, em que se trazem novos paradigmas que não mais condizem com o sistema fechado, característico das codificações do Século XVIII, conforme bem delimitou Claus Wilheim Canaris18.

Por isso, o direito, reconhecidamente dinâmico, deve se movimentar conforme as mudanças históricas e sociais de seu tempo e é nesse sentido que o instituto da responsabilidade civil deve se adaptar aos novos rumos, trazendo novas questões e controvérsias em consonância com os recentes paradigmas da pós modernidade e de um sistema que preza pela maior interpretação dialética em detrimento da silogística formal19.

__________

1 Cf. ALMEIDA, José Luiz Gavião. Novos rumos da responsabilidade civil por ato ilícito, in: Almeida, José Luiz Gavião (org.), Temas atuais de Responsabilidade Civil. v. 1, São Paulo: Atlas, 2007, p. 59-60.

Lex Aquilia de damno iniuria dato, do final do século III a.C.

3 Cf. KANT, Immanuel. Fundamentos da metafísica dos costumes. Trad. de Clélia Aparecida Martins. Editora Universitária São Francisco, 2013.

4 STJ, RESp n. 1612887/PR, 3a Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi,  j. 28/04/2020, Dje 07/05/2020.

ALVIM, Agostinho. Da inexecução das obrigações. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 1980, p. 314.

6 STJ, RESp n. 1450434/SP, 4a Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 18/09/2018, Dje: 09/11/2018.

7 STJ, ERESp n. 1431606, 2ª seção, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, j. 27/03/2019.

8 STJ, RESo n. 1748295/SP, 4° Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 13/12/2019, Dje: 13/02/2019.

9 MATOS, Eneas de Oliveira. Responsabilidade civil do transportador por ato de terceiro. In: NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. (Org.). Responsabilidade civil: doutrinas essenciais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, v. 02, p. 1211-1228.

10STJ, RESp n. 435.865/RJ, Rel. Min. Barros Monteiro, j. 09/10/2002, Dj. 12/05/2003.

11 STJ, Corte Especial, EREsp n. 1.281.594-SP, Rel. Min. Benedito Gonçalves, j. 15/05/2019.  

12 SCHREIBER, Anderson; DE OLIVEIRA, Rafael Mansur O entendimento do STJ sobre a prescrição trienal da responsabilidade contratual. In: Conjur, abr., 2019. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-abr-21/opiniao-prescricao-trienal-responsabilidade-contratual. Acesso em: 4, abr., 2022.

3 STJ, RESp n. 1722423/RJ, Rel. Min. Herman Benjamin, 2a Turma, j. 24/11/2020, Dje 18/12/2020. 

14 STJ, RESp n. 1.059.663, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. em 02/12/2008.

15 LOPEZ, Teresa. Dano existencial. Revista de direito privado, v. 15, n. 57, p. 287-302, jan.-mar., 2014.

16 STJ, 4ª Turma, EDcl no AgRg no Ag 1196957/DF, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, j. em 10/04/2012; STJ, RESp n. 821.004/MG, Rel. Min. Sidnei Beneti, 3° Turma, j. 19/08/2010; STJ, 3° Turma, RESp n. 1.254.141-PR, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 4/12/2012.  

17 STJ, 3a Turma, REsp n. 1737412/SE, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 05/02/2019.

18 Pensamento sistemático do direito e conceito de sistema na ciência do direito – Tradução de A. Menezes Cordeiro, 3ª ed., Portugal, Fundação Calouste Gulbenkian, 2002.

19 AMARAL, Francisco. Direito Civil – Introdução. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 111-113.

Natasha Cardoso
Mestranda em Direito Civil (USP). Pós-graduada em Direito Empresarial (FGV). Bacharela em Direito (USP). Advogada em São Paulo.

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