Migalhas de Peso

O ‘fato do príncipe’ como motivação para a rescisão do contrato de trabalho

A aplicação da teoria do “fato do príncipe” para justificar demissões durante o período de restrições da pandemia do Covid-19 começa a enfrentar a objeção dos tribunais.

14/4/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

No início da pandemia do covid-19, uma crise econômica se instalou com a adoção de medidas de restrição à circulação de pessoas e ao funcionamento de estabelecimentos comerciais em todo o Brasil. Muitos foram os negócios que sucumbiram a esse momento, e inúmeros foram os trabalhadores e empresários que foram prejudicados, sem poder exercer suas atividades, ou até perdendo o emprego.

Naquele momento, o Governo Federal se posicionou contra a adoção de medidas restritivas, e chegou a apontar que caberia aos governadores e prefeitos custearem os encargos trabalhistas decorrentes das demissões de empresas que faliram. Ou seja, alegou que, para estes casos, se aplicaria a teoria do ‘fato do príncipe’, associada ao direito do trabalho e ao direito administrativo. Segundo essa ideia, o ato realizado pelo Estado de forma legítima viria a causar impactos nos contratos já firmados pela administração pública, ou em atividades das empresas.

Notadamente no direito do trabalho, o art. 486 da CLT prevê que qualquer ato do Estado que venha a afetar a atividade da empresa, como promulgação de lei que impeça o funcionamento, que acabe com determinada atuação, ou qualquer outro cenário semelhante, o torna responsável pelo pagamento da indenização decorrente das demissões que ocorrerão, conforme:

Art. 486 — No caso de paralisação temporária ou definitiva do trabalho, motivada por ato de autoridade municipal, estadual ou federal, ou pela promulgação de lei ou resolução que impossibilite a continuação da atividade, prevalecerá o pagamento da indenização, que ficará a cargo do governo responsável.
§ 1º — Sempre que o empregador invocar em sua defesa o preceito do presente artigo, o tribunal do trabalho competente notificará a pessoa de direito público apontada como responsável pela paralisação do trabalho, para que, no prazo de 30 (trinta) dias, alegue o que entender devido, passando a figurar no processo como chamada à autoria.

§ 2º — Sempre que a parte interessada, firmada em documento hábil, invocar defesa baseada na disposição deste artigo e indicar qual o juiz competente, será ouvida a parte contrária, para, dentro de 3 (três) dias, falar sobre essa alegação.
§ 3º — Verificada qual a autoridade responsável, a Junta de Conciliação ou Juiz dar-se-á por incompetente, remetendo os autos ao Juiz Privativo da Fazenda, perante o qual correrá o feito nos termos previstos no processo comum.

Art. 486 da CLT

Com isto, percebemos que a legislação trabalhista prevê que se a empresa deixar de funcionar por ato do Estado, ela não deveria ser responsabilizada pelo pagamento desta indenização, que, na prática, é o pagamento da multa de 40% do FGTS, por se tratar de uma demissão sem justa causa. Este cenário é exatamente o de aplicação do ‘fato do príncipe’, ou; no latim, factum principis, que é uma espécie de força maior.

A aplicação deste conceito pressupõe que a situação era imprevisível, que onera excessivamente a empresa, ao ponto dela deixar de exercer sua atividade. A diferença aqui para a força maior é que, no fato do príncipe, a situação decorreu de uma ação estatal, onde a empresa encerra ou paralisa suas atividades por determinação da autoridade pública.

A teoria do fato do príncipe se aplica porque o Estado não deve, ou não deveria, causar prejuízos aos seus administrados, mesmo que, para isso, alegue suposto interesse coletivo. E, uma vez que tenha causado prejuízos, tem a obrigação de indenizar.

É fato que, com a quarentena horizontal que foi aplicada no auge da pandemia, se impondo a todos, a economia brasileira não girou, e estamos sentindo agora as consequências. E uma vez não girando, deixou de existir receita para muitas empresas, que acabaram sucumbindo. Vários foram os casos de fechamentos de empresas e postos de trabalho, com a postergação do pagamento das verbas trabalhistas, ou, até, do não pagamento. Muitos acreditam que, por conta disso, o ‘fato do príncipe’ se aplicaria indiscriminadamente.

Entendemos que o ‘fato do príncipe’ só deve ser aplicado no cenário em que, efetivamente, a ordem do Estado impactou negativamente as operações da empresa, ao ponto de forçá-la a fechar em definitivo. Muitas empresas que já apresentavam dificuldades operacionais podem ter se aproveitado do momento para aplicar o ‘fato do príncipe’, para se livrarem de custear o aviso prévio e a multa de 40% do FGTS.

Se aplicarmos este conceito ao cenário em que uma empresa tenha que fechar em definitivo por ter deixado de faturar, em virtude da quarentena aplicada em diversos estados brasileiros por conta da pandemia do covid-19, como deveria ter ficado a situação do empregado?

A princípio, a doutrina e jurisprudência entendem que não seria devida a indenização do aviso prévio, em virtude da ocorrência de evento imprevisível. Contudo, as demais verbas rescisórias seriam devidas, e deveriam ser pagas pelo empregador.

Mas em se tratando da indenização de 40% do FGTS, há uma divisão evidente. Dois são os posicionamentos: I. aquele que entende que como a indenização adicional do fundo sobre o FGTS decorre de fato de força maior, seria devido pela metade, 20%, e paga pelo empregador; e II. aquele que aponta que o Estado é o responsável pelo adimplemento da totalidade desta indenização, 40%, aplicando totalmente o art. 486 da CLT.

Observamos que algumas empresas, no momento de fechamento do comércio, encerraram suas atividades em definitivo e aplicaram o conceito do ‘fato do príncipe’ nas rescisões de contratos de trabalho que estão realizando. Com isto, atribuíram ao Estado responsável pela ordem de fechamento das atividades a responsabilidade pelo pagamento da multa de 40% do FGTS.

As primeiras reclamações trabalhistas com essa temática estão, aos poucos, chegando a um desfecho, e boa parte dos tribunais regionais tem afastado o conceito de “fato do príncipe” para as demissões que ocorreram naquele período. Assim, os empregados que sofreram com tais afirmações devem buscar seus direitos o quanto antes, para evitar a prescrição.

Evilasio Tenorio
Advogado com mais de uma década de atuação. Atuação especializada em Direito Civil, Societário, da Saúde e Empresarial. Consultor. Ex-Assessor e Superintendente Jurídico Substituto na Perpart.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Leia mais

Migalhas Quentes

Mantida justa causa de empregado que fraudou benefício-viagem da TAM

13/4/2022
Migalhas Quentes

Como fazer currículo para advogado; Veja modelo

13/4/2022
Migalhas Quentes

Grávida que se afastou do trabalho na pandemia reverte justa causa

13/4/2022

Artigos Mais Lidos

ITBI na integralização de bens imóveis e sua importância para o planejamento patrimonial

19/11/2024

Cláusulas restritivas nas doações de imóveis

19/11/2024

Quais cuidados devo observar ao comprar um negócio?

19/11/2024

Estabilidade dos servidores públicos: O que é e vai ou não acabar?

19/11/2024

A relativização do princípio da legalidade tributária na temática da sub-rogação no Funrural – ADIn 4395

19/11/2024