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Jurisdição criminal universal alemã nos crimes contra a humanidade/guerra: E se outros países também tivessem?

Atualmente existem mais de cem casos sendo investigados pela via da jurisdição penal universal alemã, cuja mensagem é nítida: Accountability.

5/4/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

A Alemanha tem jurisdição penal universal para processar e julgar crimes contra a humanidade, crimes de guerra, de genocídio e agressão armada, dentre outros.

O que isso significa, quais as vantagens e como seria se outros países fizessem o mesmo?

Em outras palavras, o Estado alemão tem o dever de investigar, processar e julgar os recentes “crimes de guerra”, lato sensu, do presidente da Rússia Vladimir Putin, seus generais, oficiais e membros das forças armadas planejadores, executores e os omitentes das barbáries que são noticiadas diuturnamente.

É a chamada jurisdição penal universal “pura” instituída em 2002 na Alemanha via “Völkerstrafgesetzbuch - VStGB”1, Código Criminal Internacional, incorporando em suas normas penais grande parte dos arquétipos penais dos graves crimes contra a humanidade, de guerra e afins da competência do Tribunal Penal Internacional de Haia, estatuto de Roma.

Muitos se surpreendem com essa afirmação, mas ela é real, efetiva e uma característica ímpar do rule of law germânico, Rechtsstaat: na Alemanha, um crime ocorrido em outro estado soberano, não importa qual, envolvendo quem quer que seja, mesmo não tendo infrator ou vítima de nacionalidade alemã ou qualquer conexão com tal Estado, se o delito se qualificar como crime contra a humanidade, de guerra, de genocídio ou agressão armada segundo a lei alemã, VStGB, o Ministério Público Federal alemão, dentro da estrutura, deve instaurar uma investigação perante sua justiça Federal e, havendo provas, deve acusar e postular a punição dos infratores e pleitear ressarcimento às vítimas, sejam elas quem forem.

E sim, as investigações ocorrem e diversas condenações já foram proferidas por crimes contra a humanidade e de guerra pela justiça federal alemã. Tais crimes são considerados imprescritíveis. Não há subsidiariedade e nem dever de aguardar ação ou omissão do Tribunal Penal Internacional.

O exemplo clássico é recentíssimo, de 2022, e foi possível ante ao fenômeno migratório causado pela violência do regime sírio de Assad contra o movimento “primavera árabe”, um levante civil que iniciou em 2011 e foi contraposto por uma brutal retaliação do ditador. Opositores ou não, o regime de Assad perseguia, prendia, torturava e matava qualquer um tido por suspeito de aversão ao regime. Armas químicas foram covardemente utilizadas. Muitas vítimas do regime do ditador Assad fugiram e migraram aos milhares para países vizinhos. Misturados com os migrantes inocentes, alguns intrusos criminosos da Síria ingressaram na Alemanha como refugiados e acharam que nunca seriam descobertos ou processados por terem status de “asilado humanitário” e por se tratar de crimes ocorridos na Síria, uma nação soberana.

Mas em 13/1/22, o sírio Anwar Raslan, ex Oficial Sênior de inteligência do regime de Bashar al-Assad, foi condenado pela Corte Federal de Justiça ale de Koblenz à prisão perpétua por quatro mil crimes de tortura2, 27 homicídios e crimes sexuais3, todos perpetrados em Damasco, na condição de chefe da seção de interrogatórios e sob o domínio funcional do fato por Assad, autor mediato. A investigação contra Raslan começou em 2015 depois de ele registrar um “boletim de ocorrência” em uma delegacia de polícia de Berlim, para onde havia migrado. Ao assinar o documento policial, anotou junto ao seu nome a expressão “Coronel”. A partir daí, foi investigado, detido, processado e condenado à prisão perpétua. Foi um julgamento histórico e deve ser celebrado quais os realizados pelo Tribunal de Nuremberg e o de eichmann”, dentre outros.

Atualmente existem mais de cem casos sendo investigados pela via da jurisdição penal universal alemã, cuja mensagem é nítida: Accountability! Todo aquele que cometeu crimes contra a humanidade não deve encontrar jamais refúgio seguro em nenhum lugar.

Se por um lado há erros na política externa do governo alemão, grande dependência de commodities energéticos da Rússia, sua justiça penal no exercício da jurisdição universal demonstra caminhar para um aperfeiçoamento institucional alicerçado na independência, imparcialidade, isenção política e compromisso com o futuro da humanidade para nunca mais permitir repetição de imperdoáveis crimes contra a humanidade no passado ou omissão diante de seu cometimento moderno.

Em contraste, perto de completar um mês do vigente e covarde ataque russo na Ucrânia, especificamente em 16/3/22, a federação russa foi expulsa do conselho da Europa, o qual tem em sua estrutura a instância jurisdicional do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, considerada a mais avançada no resguardo dos direitos humanos. O Kremlin havia denunciado o tratado para dele sair, certamente para se eximir da responsabilidade imediata e externa de responder por violações aos direitos humanos dos ucranianos e de seus próprios cidadãos russos presos pelos protestos contra a guerra, mas o Conseil de l'Europe aplicou a expulsão já no dia seguinte. Uma medida salutar, mas que pode ter colocado em xeque o acesso de cerca dos 144 milhões de cidadãos russos e de milhões de cidadãos ucranianos à Corte Europeia de Direitos Humanos.

Enquanto podem transitar e se abrigar em países parceiros, Bielorrússia, etc, e contar com as limitações de atuação da OTAN, Putin e seus asseclas militares e mercenários russos têm a certeza da impunidade dos crimes que estão cometendo. Se aventuram a disparar mísseis contra civis em Lviv, Ucrânia, a cerca de 40 milhas da fronteira da Polônia. Mas não ousarão pisar em território alemão, país que inclusive quebrou sua histórica neutralidade no que tange ao investimento em estrutura bélica e inseriu em seu orçamento estatal rubrica para ampliar exponencialmente sua capacidade de defesa militar.

Se atacarem a Alemanha, não há motivo para isso, o art. 5º da OTAN permitiria uma retaliação fulminante por todos seus membros contra a Rússia. Pouquíssimo provável. Mas amanhã ou depois a agressão à Ucrânia desescalará e criminosos militares russos, veja bem a distinção, aqui não se fala de qualquer cidadão russo, mas dos criminosos de Putin!!, se quiserem contar com leniência de refúgio e asilo humanitário não o terão na Alemanha. Terão, quiçá, no Brasil de hoje e de janeiro de 2023 em diante caso o pêndulo político estacione na polarização atual, venha quem vier.

O que resta claro é que uma nação que foi palco de tantas atrocidades antes, durante e depois da segunda guerra, olhou para o retrovisor da civilidade e decidiu nunca mais percorrer o mesmo caminho, daí porque implementou medidas de estado para inviabilizar ao máximo retrocessos ou impunidade em tema de direitos humanos, tanto para prevenir como para reparar a barbárie histórica.

A eficácia da jurisdição penal universal da Alemanha no caso do “coronel” sírio Anwar Raslan e sua perspectiva de acionamento agora em razão dos crimes contra a humanidade cometidos por Putin permitem refletir sobre alguns pontos:

a. jurisdição penal universal não flerta com garantias fundamentais dos acusados: houve um devido processo legal, rígido e democrático, com ampla atuação de advogado de defesa, com provas produzidas por ambos os polos da ação penal; foram ouvidas dezenas de testemunhas; o resumo das acusações, provas e fases do julgamento demonstra a qualidade dos atos4;

b. a forma rápida com que a investigação e ação penal tramitou no caso do “coronel” sírio Anwar Raslan, se comparado com a tradicional lentidão do TPI de Haia, demanda uma reflexão acerca da pertinência e eficácia da centralização da competência em um único órgão para processar e julgar crimes contra a humanidade; o objetivo do presente artigo é repensar uma jurisdição penal universal também em outros países civilizados como parte do mecanismo de tutela dos direitos humanos;  

c. a desnecessidade da burocrática extradição contribuiu decisivamente para a celeridade do julgamento em questão; processo de extradição se rege por acordo bilateral, com regras salutares, mas lentas e que premiam muitas vezes criminosos violentos, ex. Cesare Battisti; por vezes a extradição esbarra na exigência da dupla criminalidade, o que não é problema para a jurisdição penal universal da Alemanha, que pode julgar fato praticado em território cujo país do local do fato sequer o considere como crime5;

d. a não subsidiariedade em relação à atuação do TPI foi outro fator marcante, pois a justiça Alemã não necessita aguardar qualquer conduta de tal Corte Internacional ou do país do local dos fatos; a estrutura do TPI e seu funcionamento observam o princípio da complementariedade, ou seja, competência do TPI é subsidiária e restringe-se às hipóteses nas quais a Justiça repressiva interna não se mostre capaz de cumprir sua missão (o país do local dos fatos falhou na apuração); e como regra geral, em termos de jurisdição, os países tendem a respeitar a soberania alheia; no caso da Alemanha, não há subsidiariedade e nem afronta à soberania alheia pelo exercício de sua jurisdição penal universal;

e. a tripartite função de uma condenação penal apregoada no Brasil, prevenção geral, prevenção especial e ressocialização, seria absolutamente disfuncional para tutela de crimes graves contra a humanidade; os louváveis, mas, tímidos progressos do Brasil em temas de direitos humanos6 mostram certo nível de conscientização do papel central que a tutela e garantia desses direitos devem ocupar no sistema normativo brasileiro para contrapor a vigente negligência nesse campo, mas nem de longe colocam os direitos humanos de fato e de direito no epicentro da jurisdição; recentíssimo programa lançado pelo Conselho Nacional de Justiça7 intitulado Pacto Nacional do Judiciário pelos Direitos Humanos conclamou membros do poder Judiciário a observar os tratados internacionais de direitos humanos em vigor no país e o uso da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos; a premissa é veja-se os casos em que o Brasil já foi condenado pela Corte IDH, nada tendo a ver com a tutela de direitos humanos nos casos de crimes contra a humanidade ou de guerra; há uma lacuna imensa que, associada à tempestade política perfeita, torna o Brasil um paraíso para acolher criminosos de guerra;

f. a rapidez, criatividade, ousadia e dinâmica tecnológica dos métodos de guerra são capazes de rapidamente infligir grande destruição e mortes em territórios invadidos ou atacados, com todas as consequências nefastas daí advindas; infelizmente, o aparato atual de proteção dos direitos humanos não assegura prevenção de atos de guerra e de atrocidades, e a persecução criminal dos fatos, seus autores e reparações às vítimas tendem a ser utópicas, lentas e muito mais simbólicas do que efetivas; mas o cenário atual permite cogitar se já não é o caso de o Brasil e outros países adotarem um sistema de jurisdição penal universal para processar e julgar crimes contra a humanidade, crimes de guerra, de genocídio e agressão armada; a ideia pode não fazer a mínima diferença nos planos do líder/presidente que resolve guerrear em desconformidade com as normas internacionais, mas tende a minar e a impulsionar peças-chave e subalternos a descumprirem ordens superiores e a não darem sequência as atrocidades devido à restrição de circulação em países em que poderiam livremente se refugiar depois dos fatos com a certeza da impunidade criminal ou lentidão do sistema; com tantos embargos e restrições econômicas impostas, torna-se propícia a saída da Rússia. E para onde irão os renitentes criminosos de Putin?

A jurisdição criminal universal, nos moldes da Alemanha, evoca incontáveis dificuldades, que vão desde uma compreensão e conscientização dos seus benefícios e realização de uma reforma estrutural e adaptações, sob pena inatingir a desejada efetividade. No Brasil, a reinante cultura jurídica da subsidiariedade frente ao TPI e frente aos demais mecanismos de tutela de direitos humanos demandaria inicialmente alteração infraconstitucional marcante para internalizar os tipos penais previstos no Estatuto de Roma e delegar ao poder Judiciário interno a competência para o processo. A compreensão partiria do pressuposto “primeiro aqui; depois, se for o caso, lá no TPI”. Seriam necessários critérios para evitar bis in idem, expandir acordos de cooperação, criar um “standard” probatório para evitar o inadmissível “hearsay testimony” aceito no TPI e outras medidas, o que já constitui objeto da dogmática penal internacional.

 Também demandaria um impulso mais no campo da mutação Constitucional do que de alteração de texto da CF propriamente dito, pois o arcabouço normativo já existe no art. 1º, III, 4º, II, VI, IX, e na inteireza do art. 5º, seus incisos e parágrafos, bastando, portanto, a conformação e reposicionamento hierárquico que uma norma com tal teor ocuparia no sistema jurídico, pois, ao menos virtualmente, a jurisdição penal universal estaria lado a lado com a competência que a CF outorga ao TPI para crimes de guerra e contra a humanidade nos moldes do estatuto de Roma.

Não obstante, considerada a notória falta de velocidade e efetividade do TPI, e, de outro lado, a evidente celeridade demonstrada na jurisdição penal universal germânica, a urgência de se conferir maior proteção aos direitos humanos, o que tem por itinerário certo o processo justo e a condenação de autores de crime de guerra/contra a humanidade, aciona a interpretação “pro homine” do texto da Constituição Federal brasileira e das leis fundamentais de outras nações civilizadas e impõe uma hermenêutica que, primeiro, vislumbre na jurisdição penal universal uma providência que vem ao encontro da melhor proteção dos direitos humanos, e que, em segundo lugar, compatibilize e permita a coexistência do “mecanismo central/originário de jurisdição penal universal”, via TPI, com o mecanismo que chamarei didaticamente de “sistema ambivalente de jurisdição penal universal interno”, não subsidiário, independente e não subordinado à dupla criminalização.

 Um “sistema ambivalente de jurisdição penal universal interno” traria um constrangimento positivo e crítico à lentidão do TPI, reascenderia a centralidade que cada vez mais os direitos humanos devem ter e requalificaria a crescente responsabilidade internacional dos países civilizados em se estruturar para persecução, punição e imposição de reparações aos autores crimes de guerra e contra a humanidade, sem o que a expressão “justiça” será mero arremedo caricato.

O case de sucesso do “sistema ambivalente de jurisdição penal universal interno” para crimes de guerra e crimes contra a humanidade na experiência alemã merece ser estudado, investigado e deve ser alvo de consideração como uma meta a ser implantada pelos países que se pretendem ver chamados de Estado Democrático de Direito.

O cenário global atual torna imperativo entender que o sistema de jurisdição penal universal interna alcançou o status de pilar inafastável de qualquer Estado Democrático de Direito, devendo ser replicado.

_________________________

1 https://www.gesetze-im-internet.de/vstgb/

2 Disponível em: https://olgko.justiz.rlp.de/de/startseite/detail/news/News/detail/lebenslange-haft-ua-wegen-verbrechens-gegen-die-menschlichkeit-und-wegen-mordes-urteil-gegen-ein-1/; vide também https://www.justiceinitiative.org/litigation/federal-prosecutors-office-v-anwar-r . Consulta em 28/03/2022.

4 https://www.hrw.org/feature/2022/01/06/seeking-justice-for-syria/how-an-alleged-intelligence-officer-was-put-on-trial-in-germany

5 Seção 5 a 7 do “Stravsgesetzbuch”.

6 Pacto São José Costa Rica, Convenção contra o Genocídio – 1949, Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos – 1966, Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes   1984, Convenção Americana sobre Direitos Humanos – 1969, Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura – 1985, Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher – 1994, etc..

7 https://www.cnj.jus.br/pacto-traca-caminhos-para-magistratura-na-area-de-direitos-humanos/

Wilson Knoner Campos
Advogado Criminalista. Mestrando em Criminology e Criminal Justice na Royal Holloway, University of London. Presidente da Comissão de Direitos Humanos do IASC. Sócio da Bertol Advogados.

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