Migalhas de Peso

Humor ácido, tapa na cara e suas nuances cíveis e constitucionais

A liberdade de expressão é ampla, entretanto deve ser exercida dentro dos padrões morais, legais e constitucionais, sob pena de violar direito alheio e causar danos irreversíveis.

31/3/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

No presente período histórico, contemporâneo, de grandes mudanças nos meios de comunicação, entre elas o surgimento da rede mundial de computadores, a forma de manifestar do humor também vem sofrendo substanciosas alterações: no modo como ele se materializa e como é difundido no meio social.

É inegável que o processo de globalização, mais expressivo depois da chegada da internet às grandes massas, fez com que qualquer fenômeno cultural local se espalhe rapidamente pelo mundo, ganhando proporções inimagináveis, atingindo um quantitativo humano nunca antes pensado por comediantes como Charles Spencer, mais conhecido como Charles Chaplin, que nasceu em Londres no ano de 1889.

Em meio a todas essas mudanças, encontra-se também a discussão acerca do conteúdo humorístico inadequado, visto que esse através dos veículos de comunicação atingem todas as faixas etárias, das crianças aos idosos, sem qualquer controle estatal, podendo fomentar comportamentos indesejáveis.

Há quem diga que humor tem limites e há quem afirme que, com limites, o humor não tem graça; tais assertivas, que induzem a discussão, nunca fizeram tanto sentido como nos dias atuais. Nunca se viu tantos sites, perfis em redes sociais, programas de televisão, etc., apresentando humor ácido, embaraçoso, com conteúdo repugnante, imoral, preconceituoso, discriminatório, contrário aos preceitos religiosos, seja em razão do gênero, da raça, da etnia, da opção sexual ou da opção política. Hoje tudo é motivo de piada, do assunto sério ao banal, tudo vira “meme”. Ninguém parece se importar com os efeitos que esse conteúdo pode causar na vida do outro, o quão humilhada e desprezada a pessoa possa se sentir, é o famoso “perco o amigo, mas não perco a piada”.

Mas qual a solução? A liberdade de expressão não é absoluta? Limitar o conteúdo não implicaria em uma forma de censura? A liberdade de expressão foi tratada pela primeira vez na Constituição Política do Império do Brasil, sendo elemento de destaque em nossa Constituição Federal atual de 1988, promulgada no final de um período de extrema repressão política, a ditadura militar.

Tal preceito constitucional, previsto no título Dos Direitos e Garantias Fundamentais, assegura que “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença” (art. 5º inciso IX da CF/88), o que possibilita que o conteúdo humorístico seja qualquer um.

Entretanto, é certo que a liberdade de expressão não é absoluta, possuindo restrições impostas pelo constituinte originário, tanto que “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”, bem como “é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem” (art. 5º incisos IV e V da CF/88) e “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação” (art. 5º inciso X da CF/88).

Além dessas, expressamente previstas, existem as restrições que resultam da colisão com outros direitos ou valores constitucionalmente protegidos e também previstos em normas das mais diversas naturezas, que estão abaixo da constituição.

O Código Civil afirma que “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito” (art. 186). Logo, qualquer manifestação ou comentário que viole direitos pode ser considerada ilícita, sujeita as sanções cabíveis, tanto em âmbito penal, civil e administrativo.

Valendo-se da liberdade de expressão, qualquer cidadão devidamente identificado pode dizer e fazer o que quiser desde que, posteriormente, arque com as consequências de seus atos, previstas no sistema jurídico, composto pela constituição e normas hierarquicamente inferiores. Fazer rir com piadas sobre homossexuais, sobre condição relacionada ao gênero, sobre características individuais, chacota com grupos étnicos, ironia a determinadas classes sociais, entre outros comportamentos, pode configurar ilegalidade, sujeitando seu autor as sanções cabíveis, entre elas, a reparação dos danos causados (responsabilidade civil).

Assim, o Poder Judiciário, valendo-se dos critérios de interpretação constitucional e infraconstitucional dos princípios e regras, no caso concreto, poderá determinar de forma definitiva se o conteúdo resguardado pela liberdade de expressão viola ou não direito de terceiro, previsto na própria Carta Constitucional ou outras normas, impondo, assim, as medidas coercitivas para reparação dos danos causados.

Enquanto o conflito de interesses não é apreciado pela instância devida, a sociedade organizada discute o tema com grande entusiasmo, tentando criar um limite moral para a atuação dos humoristas e para a disseminação de conteúdo ácido. Trata-se de uma equação difícil de ser resolvida, mas que faz parte do processo evolutivo da sociedade. Começar a refletir e ter consciência sobre como o comentário ácido pode afetar a vida das pessoas, já é um bom começo.

A liberdade de expressão é ampla, entretanto deve ser exercida dentro dos padrões morais, legais e constitucionais, sob pena de violar direito alheio e causar danos irreversíveis.

Clodoaldo Moreira dos Santos Júnior
Advogado, pós-doutor em Direito Constitucional na Itália. Professor universitário. Sócio fundador escritório SME Advocacia. Presidente da Comissão Especial de Direito Civil da OAB/GO. Membro consultor da Comissão de Estudos Direito Constitucional da OAB Nacional e árbitro da CAMES.

Tiago Magalhães Costa
Advogado especialista em Direito Civil e Processual Civil. Professor universitário. Sócio fundador do escritório SME Advocacia. Vice-presidente da Comissão Especial de Direito Civil da OAB/GO e vice-presidente da Comissão de Direito Constitucional da OAB/GO.

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