Lei nº 11.051/04 não impede que empresas em débito com o fisco distribuam dividendos
Andrea Feitosa*
Henrique Andrade**
Com efeito, o art. 32, caput, da Lei nº 4.357/64 (clique aqui) dispunha que “as pessoas jurídicas, enquanto estiverem em débito, não garantido, para com a União e suas autarquias de Previdência e Assistência Social, por falta de recolhimento de imposto, taxa ou contribuição, no prazo legal, não poderão: a) distribuir quaisquer bonificações a seus acionistas; b) dar ou atribuir participação de lucros a seus sócios ou quotistas, bem como a seus diretores e demais membros de órgãos dirigentes, fiscais ou consultivos”. A Lei nº 11.051/04, por sua vez, alterou o parágrafo único do preceito, estipulando um teto para a multa, que agora fica limitada a 50% do valor total do débito não-garantido da pessoa jurídica, em ambos os casos.
Revigorado em 2004, o anacrônico dispositivo foi alvo de imediata reação da comunidade jurídica, que se plasmou, basicamente, em sua não-recepção pela Constituição Federal de 1988, por contrariedade à liberdade de exercício de atividade econômica. Embora relevante esse fundamento, o presente texto pretende analisar a questão sob outro enfoque, debruçando-se sobre dois pontos desprestigiados nos debates iniciais e que, nada obstante, são cruciais para precisar o teor da vedação legal: o alcance dos termos “distribuir bonificações/participações nos lucros” e “débito não-garantido”.
O dispositivo em análise obstaculiza as empresas com débito não-garantido perante a Fazenda Nacional de distribuir bonificações a seus acionistas, dar ou atribuir participações de lucros aos sócios ou quotistas e diretores. Interpretando a questão, houve quem entendesse que a distribuição de lucros (dividendos) a acionistas ou quotistas estaria abarcada na vedação legal.
Ocorre que a legislação societária estabelece distinções entre a distribuição de dividendos e a atribuição de bonificações ou participações nos lucros. De fato, a primeira corresponde à remuneração paga aos sócios proporcionalmente pela sua participação no capital social, em virtude da apuração de lucro líquido na empresa; a segunda, a seu turno, constitui espécie de “gratificação” paga ao sócio, diretor ou mesmo terceiro contratado, em virtude do seu desempenho na condução da empresa, devendo ser contabilizada como despesa.
Essa distinção conceitual, aliás, foi observada por ocasião da elaboração do projeto originário da Lei nº 4.357/64, quando o então Presidente da República, Castello Branco, vetou o termo “dividendo” constante da alínea “a” do artigo 32, sob o fundamento de que restringir “a distribuição dos dividendos” afetaria a vida normal das empresas, as quais eram “núcleos propulsores do desenvolvimento da economia nacional”.
Destarte, o dispositivo não vedou que sociedade em débito perante a União distribua dividendos a seus acionistas ou quotistas, existindo óbice apenas em relação ao eventual pagamento de bonificações e participações nos lucros.
A segunda questão a merecer maior reflexão reside no significado da expressão “débito não-garantido”. Nesse ponto, vale ressaltar que o dispositivo legal foi editado anteriormente ao Código Tributário Nacional - CTN, devendo ser interpretado à luz deste e da Constituição Federal.
Analisando a questão, alguns tributaristas defenderam que, a teor do art. 32 da Lei nº 4.357/64 empresas devedoras só poderiam distribuir bonificações/participações nos lucros se os débitos estivessem acobertados por penhora, depósito ou fiança bancária, a teor do art. 9º, da Lei nº 6.830/80 (clique aqui). Essa interpretação, contudo, conflita com o CTN, por desamparar diversas situações legalmente reconhecidas nas quais não haveria pretensão do Fisco de cobrança do crédito, por se encontrar este com a exigibilidade suspensa.
Mencione-se, por exemplo, a hipótese de obtenção de liminar em mandado de segurança ou ação cautelar, situação em que a exigibilidade do crédito estaria suspensa por força do art. 151, do CTN, embora não garantido por depósito, penhora ou fiança. A suspensão da pretensão de cobrança deu-se não por garantia concreta do futuro pagamento, mas pela probabilidade de que o débito venha a ser declarado inexigível.
Decerto, a suspensão da exigibilidade do crédito inibe não apenas a cobrança em si, mas também a prática de quaisquer atos ou procedimentos, diretos ou indiretos, que externem a finalidade de coerção para o pagamento. Não por outra razão, existe direito à certidão positiva, com efeitos de negativa, quando o contribuinte possua débitos com o Fisco, mas que estejam com exigibilidade suspensa em virtude de quaisquer das hipóteses previstas no art. 151 do CTN.
Por conseguinte, o art. 32, da Lei nº 4.357/64 deve ser interpretado no sentido de que a distribuição de bonificações ou participações nos lucros a acionistas, cotistas ou administradores só é vedada quando a pessoa jurídica possua débito líquido, certo e, sobretudo, exigível.
Diante do exposto, as empresas que possuam débitos exigíveis referentes a tributos federais podem distribuir lucros (dividendos) a seus acionistas ou quotistas no caso de resultado positivo no exercício, como remuneração proporcional a sua participação societária; o art. 32, da Lei nº 4.537/64, só impõe restrições quanto ao pagamento ou distribuição de bonificações e participações nos lucros, que só podem ser realizadas se os débitos da empresa estiverem com exigibilidade suspensa, independentemente de estarem ou não garantidos por penhora, depósito ou fiança bancária.
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*Advogada e consultora da área tributária do escritório Martorelli e Gouveia Advogados
**Integrante da área tributária do escritório Martorelli e Gouveia Advogados
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