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Efeitos do decreto que desobriga o uso de máscaras

É importante frisar que não há unanimidade dentre os cientistas em relação ao acerto da decisão de dispensar a obrigatoriedade do uso de máscaras em locais fechados.

21/3/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

Alguns estados da federação publicaram decretos desobrigando o uso de máscaras em locais fechados. Quais os efeitos práticos dessa decisão no âmbito das relações sociais?

Para o Estado, obviamente, deixa de ser possível exigir o uso de máscaras por falta de supedâneo legal. Ante tal situação resta ao Estado esclarecer os agentes públicos, em especial aqueles que compõem a força de segurança pública, munindo-os de informações acerca de como deverão agir quando instados a resolver possíveis conflitos entre particulares.

Em relação aos particulares, de agora em diante o uso será opcional. Embora pareça óbvio, é importante frisar que o uso não está proibido, apenas foi desobrigado. Logo, quem quiser continuar utilizando máscaras em qualquer lugar tem essa prerrogativa.

Já no que toca à relação entre os particulares e entes privados, tais como escolas, comércio e locais de trabalho, passa a prevalecer a autonomia privada. Assim, um comércio, uma escola, ou uma empresa pode optar por continuar exigindo o uso de máscaras de seus clientes ou funcionários, respeitando-se os critérios definidos em eventuais regulamentos próprios, como a Assembleia Geral, nos condomínios, conselhos ou outros órgãos deliberativos em outros estabelecimentos.

Alguma confusão tem sido feita entre o princípio da legalidade, segundo o qual “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de Lei” (art. 5º, II, CF), e a autonomia da vontade, princípio retor das relações entre particulares.

O ordenamento jurídico brasileiro é dividido em 2 grandes troncos ou ramos: o público e o privado. Cada qual apresenta princípios próprios, com uma zona de intersecção. A principal distinção entre ambos reside justamente no âmbito de aplicação do princípio da legalidade. No direito público, a Administração deve fazer apenas o que encontra algum amparo no direito, explícita ou implicitamente. No direito privado, ao revés, ninguém é obrigado a nada senão em virtude de lei.

Essa última regra, contudo, deve ser interpretada de acordo com os princípios que regem o ordenamento jurídico, especialmente a distinção entre ambos os ramos citados. Quando dizemos que ninguém pode ser obrigado a fazer algo senão em virtude de lei, norma que atua o princípio da dignidade da pessoa humana e consubstancia um direito fundamental oposto especialmente contra o Estado, resta implícito que nenhum ente privado pode ser proibido de estabelecer suas próprias regras sem uma vedação estatal legítima.

A ausência de interferência estatal no ambiente privado prestigia  os princípios da autonomia da vontade e do pacta sunt servanda (os pactos devem ser cumpridos). Em outras palavras, nesse espaço de liberdade privada também podem existir leis, mas são as Leis criadas pelos particulares. A principal delas é justamente o contrato, um acordo mútuo, que obriga ambas as partes, sem a existência de uma Lei específica.

Os estabelecimentos comerciais privados se encontram dessa forma protegidos pelos princípios da propriedade privada (art. 170, II, CF) e da livre iniciativa (art. 170, caput, CF). Tal direito, contudo, pode ser limitado pela função social da propriedade (art. 170, II, CF), e da defesa do consumidor (art. 170, V, CF).

Em complemento, o artigo 421 do Código Civil assegura que a liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato. No entanto, a tão festejada Declaração de Direitos de Liberdade Econômica introduzida pela lei 13.874/19, incluiu o parágrafo único no art. 421 a fim de garantir que nas relações contratuais privadas prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual.

A propósito, a referida Lei, que estabeleceu normas de proteção à livre iniciativa e ao livre exercício de atividade econômica, é enfática ao declarar seu âmbito de aplicação “na interpretação do direito civil, empresarial, econômico, urbanístico e do trabalho nas relações jurídicas que se encontrem no seu âmbito de aplicação e na ordenação pública, inclusive sobre exercício das profissões, comércio, juntas comerciais, registros públicos, trânsito, transporte e proteção ao meio ambiente” (lei 13.874/19, art. 1º, §1º).

Também o Código de Defesa do Consumidor não oferece óbice algum à exigência de máscaras, pelo contrário. A proteção da vida e da saúde é elevada inclusive a princípio a ser observado tanto como direito do consumidor (art. 6º, I, do Código de Defesa do Consumidor - CDC), como objetivo da Política Nacional de Relações de Consumo (art. 4º do CDC).

Deveras, quando um cliente vai a uma padaria, a uma loja, ou qualquer local privado, ao contratar um serviço ou adquirir um bem ele está firmando um contrato. Não há nada que impeça o estabelecimento de determinar como regra que o cliente utilize máscaras para acesso e uso de seu espaço físico. Em relação a uma empresa, o próprio contrato de trabalho já prevê regras próprias para o acesso e permanência no local onde o empregado irá exercer a sua atividade.

Nesse sentido, para ilustrar, inexiste em regra legislação específica que determine qual a vestimenta que uma pessoa precisa estar trajando para utilizar um transporte viário, seja ele municipal ou interestadual. Mas a empresa de transporte pode exigir que os passageiros não entrem no ônibus sem camisa ou com roupa de banho, aplicando uma regra sua, que estará de acordo com os costumes do lugar (art. 7º e 39, II,  do CDC). Ou ainda, é muito comum em padarias e bares de regiões praianas avisos proibindo o acesso de clientes em traje de banho. É possível que em alguns municípios existam legislações específicas regulamentando isso, mas ainda que não exista uma Lei que ampare tal exigência, é compreensível e razoável a proibição em respeito aos demais clientes.

A propósito, além da regra geral prevista no art. 39, II do CDC, há que se destacar a previsão contida no item XIV do mesmo artigo, introduzida pela lei 13.425/17, que veda ao estabelecimento comercial  o ingresso em estabelecimentos comerciais ou de serviços de um número maior de consumidores que o fixado pela autoridade administrativa como máximo. Ou seja, em sentido contrário, há que se entender que os estabelecimentos comerciais dispõem de autonomia para definir critérios de ingresso em seu estabelecimento, desde que não afrontem preceitos constitucionais, as vedações contidas no Código Civil e especialmente no Código de Defesa do Consumidor, e estejam de acordo com a boa-fé, usos e costumes e a proteção da vida e da saúde.  

Algo que precisa ser observado por parte dos estabelecimentos que quiserem requerer o uso de máscaras, é a necessidade de informar a clientela de forma inequívoca a respeito dessa exigência. Preferencialmente, afixando a informação de forma clara na entrada do estabelecimento (art. 6º, III e 30 do CDC).

O que não pode acontecer, em atendimento às normas já mencionadas, é haver no mesmo estabelecimento a distinção de pessoas, obrigando-se apenas alguns a utilizar, por circunstâncias que não guardem correlação com a permissão ou proibição. Ou só poderão entrar as pessoas que estiverem usando máscaras ou ninguém será obrigado a usá-las para acessar o local, salvo situações excepcionalíssimas. Havendo proibições arbitrárias e injustificadas, o estabelecimento poderá incorrer em vedações previstas na legislação citada, além de outras previstas em Lei federal, estadual ou municipal esparsa, respondendo pelas penalidades cominadas, além de indenizarem os prejuízos sofridos pela vítima.

Convém, contudo, ponderar que a Lei desobrigou o cidadão a usar a máscara, muitas pessoas poderão deixar de portar esse item. Assim, resolvendo-se pela manutenção da exigência, é de bom alvitre (apenas, recomendável, não obrigatório) que os estabelecimentos forneçam o item a fim de não impedir a entrada de clientes. O consumidor poderá entrar, desde que utilize a máscara. Se ele não quiser se submeter a tal regra, tem a liberdade de procurar outro local que não possua este requisito para o acesso.

Cumpre frisar que não faltam fundamentos razoáveis para a adoção dessa escolha por parte de instituições privadas, indo ao encontro dos princípios da proteção da saúde e da própria função social da propriedade e do contrato.  

Por exemplo, se no quadro de funcionários houver pessoas que fazem parte do grupo de risco, a preocupação humanitária de per se já impõe a adoção da manutenção do uso de máscaras no local. Ainda, para aqueles que se guiam por questões administrativas, podemos exemplificar a necessidade tomando como paradigma a situação fictícia enfrentada por um pequeno comércio que possua apenas três funcionários. Se dois funcionários ficarem doentes, o negócio tornar-se-á inviável.

Portanto, além da preocupação humanitária, fundada no cuidado com a preservação da saúde coletiva, existem questões de ordem prática que também dão azo a essa escolha por parte do administrador. Essas razões servem de exemplo a afastar qualquer tentativa de imputar ao estabelecimento uma prática considerada abusiva ou

Importante dizer que em ambientes privados partilhados por muitas pessoas, tais como condomínios, clubes, escolas privadas, bem como locais de trabalho em geral, é muito recomendável que haja uma deliberação coletiva a respeito da decisão pela manutenção ou não do uso de máscaras. Assim, realizando-se uma assembleia com os interessados, no caso de condôminos, associados e pais de alunos, a instituição estará resguardada por um documento que dará supedâneo à exigência. Em se tratando de locais de trabalho, é indicado que o empregador ouça o sindicato, a CIPA e/ou o órgão de classe que representa a maioria de seus funcionários. 

E se, por exemplo, mesmo após a assembleia um pai se negar a mandar seu filho com máscara para a escola? Entendemos que a escola poderia fornecer o item e requerer ao aluno o uso, em respeito ao acordo de cuidado sanitário firmado por pais e professores. A instituição tem o direito de impor um regramento ao corpo estudantil, sobremaneira, se houve uma deliberação conjunta e a maioria dos pais pactuou tal medida. Vivemos em uma sociedade democrática, os consensos coletivos devem ser respeitados.

No âmbito de clubes e condomínios cabe deliberar, já na assembleia convocada com a finalidade de debater a manutenção do uso ou não das máscaras, a respeito da imposição de multa àqueles que se negarem a cumprir a determinação consensuada. Sem a previsão de alguma sanção, o mero acordo acerca da necessidade do uso de máscaras no local poderá ser ineficiente.

Destaque-se ainda que não se deve falar em violação ao direito de ir vir no caso de um estabelecimento ou instituição exigir o uso de máscara para acesso ao seu espaço físico, pois não existem direitos fundamentais absolutos. Mesmo em locais públicos, tais como hospitais ou órgãos públicos existem critérios de acesso determinados por regras interna corporis. Ou seja, não estão previstos em uma lei específica, nem por isso deixam de limitar o direito de ir e vir dos cidadãos naquele determinado ambiente.

Como visto, segundo o ordenamento jurídico brasileiro é plenamente possível estabelecer limitações em relação ao acesso a espaços privados, desde que mediante regramento estabelecido de forma clara. Tal situação ocorre diuturnamente das mais variadas formas, clubes exigem carteira de associado para ingresso em suas dependências; condomínios só permitem o acesso de pessoas autorizadas por moradores; escolas só podem ser frequentadas por alunos matriculados; em shopping centers, por exemplo, não se pode sentar no chão ou andar de skate nas áreas comuns, dentre tantos outros exemplos da vida cotidiana aos quais todos os cidadãos se submetem.

Finalmente, é importante frisar que não há unanimidade dentre os cientistas em relação ao acerto da decisão de dispensar a obrigatoriedade do uso de máscaras em locais fechados. A Áustria havia abolido o uso de máscaras em locais fechados no início de março, contudo, em um curto espaço de tempo o país entrou em estado de alerta em relação às internações por Covid. O país irá retomar a obrigatoriedade a partir de 23 de março.

Assim, cabe a todos parcimônia e bom senso, principalmente, nas relações entre entes privados e os cidadãos. Tanto por parte dos estabelecimentos ou locais de trabalho que não pode surpreender as pessoas que ali frequentam com a exigência de inopino, sem prévio aviso; quanto as pessoas sujeitas às exigências que precisam se guiar pela civilidade ao lidar com uma limitação que é totalmente razoável e compreensível.

Adriana Cecilio Marco dos Santos
Advogada. Especialista em Direito Constitucional. Mestre em Direito. Professora de Direito Constitucional. Fundadora do Grupo de Estudos Democratismo.

Leonardo David Quintiliano
Doutor pela Universidade de São Paulo. Mestre pela Universidade de Lisboa. Advogado. Professor de Direito.

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