Migalhas de Peso

Dia nacional da conscientização sobre mudanças climáticas e a importância de uma jurisdição internacional mais efetiva

É necessário repensar todo o modelo econômico e político ocidental, eis que, inequivocamente, até os dias atuais nossas gerações têm colhido os frutos da implementação do modelo capitalista clássico, da época da revolução industrial.

22/3/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

“O ser humano mal reconhece os demônios de sua criação.”

  Albert Schweitzer

Com a celebração do Dia Nacional da Conscientização sobre mudanças climáticas em 16 de março, costuma-se dizer que a data “reacende” a discussão sobre a temática. Contudo, salienta-se que se trata de trabalho diário, por isso não há que se falar em “reacender” um tema absolutamente premente, que já tem causado efeitos de escassez, guerras e migração forçada. Igualmente, não há “celebração”, porquanto a data se origina exatamente dos problemas ambientais que a intervenção humana tem causado. Aliás, as nações vêm recebendo apenas o resultado de toda a exploração e modificação dos recursos naturais, e a continuidade de tais ações, por óbvio, tem produzido danos irreversíveis.

Nesse sentido, destaca-se o papel fundamental do Direito, principalmente quanto às políticas de cooperação internacional entre os Estados, cuja responsabilização demanda jurisdições obrigatórias, diversamente do costume de jurisdição voluntária. A soberania de um Estado na perspectiva ambiental jamais deveria se sobrepujar à matéria internacional. Considera-se o meio ambiente como um bem universal, assim entendido em todo o complexo da biosfera.      

Por outro lado, a conscientização sobre a importância da proteção ambiental é tema recente, sobretudo porque os efeitos das mudanças climáticas têm sido devastadores à sobrevivência das espécies. Relembra-se: a temática ambiental até pouco tempo considerava a necessidade da proteção da natureza estritamente sob o viés antropocêntrico, ou seja, como um pressuposto atrelado tão somente à sobrevivência humana. Constata-se alguma dificuldade em separar conceitos clássicos e contemporâneos do Direito Ambiental, o que se mostra forçoso até para uma melhor compreensão de como aplicá-lo. Com isso, como toda regra de direito, na subsunção das normas aos fatos, faz-se uma breve abordagem.

Como pontuam Birnie e Boyle1, da Universidade de Oxford, a maior dificuldade na distinção conceitual se mostra quanto ao Direito Internacional relacionado ao meio ambiente, e Direito Internacional relacionado ao desenvolvimento sustentável. Nesse ponto, tem-se que o Direito Ambiental Internacional, assim considerado como ciência pragmática, objetiva-se muito mais às leis, princípios, técnicas, instituições e procedimentos de proteção do meio ambiente. Por outro lado, o desenvolvimento sustentável é mais direcionado ao desenvolvimento econômico do que à proteção ambiental em si.

Assim, nem todas as problemáticas ambientais envolvem o desenvolvimento sustentável, e vice-versa2. Aliás, caso se pretenda, de fato, garantir a sobrevivência das espécies, em muitas políticas será preciso proteger o meio ambiente das práticas consideradas de “desenvolvimento sustentável”, que atendem precipuamente aos moldes de desenvolvimento econômico. Outrossim, por certo, algumas políticas devem priorizar o futuro ambiental, mesmo que isso implique em desconstruir o dito modelo “sustentável”.

O termo “meio ambiente” acaba por ser um conhecimento vago, possivelmente até amplo e ilimitado, pois poderia se prestar a qualquer concepção sobre o complexo que envolve o clima, a biosfera, os organismos vivos – animais e vegetais, o estudo diversificado – a ecologia, dentre outros aspectos. Já sob o enfoque jurídico, tem-se a Declaração da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, conhecida como a Declaração de Estocolmo sobre o Meio Ambiente, de 1972, do documento original The Declaration of the 1972 Stockholm Conference on the Human Environment (UNCHE).

Até o evento considerado como o marco histórico sobre o tema, a Conferência de Estocolmo de 1972, reproduziu essa noção de meio ambiente como uma premissa dependente do homem. Contudo, as consequências catastróficas das mudanças climáticas vêm demandando, cada vez mais, que o meio ambiente seja privilegiado como um bem universal em si, e não condicionado à manutenção das gerações humanas. Aliás, muito pelo contrário, é a espécie humana que depende intrinsecamente dos recursos naturais e da saúde ambiental, e por isso há uma constante denúncia sobre a urgência da criação de mecanismos internacionais de jurisdição mais efetiva. Não se pode mais aguardar.

Por certo, a Declaração de Estocolmo é relativamente recente, mas iniciou o importante debate sobre a cooperação internacional ambiental entre os Estados. Com isso, denota-se a magnitude do Direito Internacional, notadamente para garantir a tutela da natureza per se, dada a essencialidade das políticas internacionais ambientais a fim de resguardar todas as espécies, não só a humana.     

Rememora-se que a Organização das Nações Unidas (ONU) convocou também a Conferência do Rio de Janeiro, realizada em 1992, conhecida como Rio-92. A Conferência envolveu Estados, terceiro setor e comunidades nas discussões sobre o meio ambiente. Da Conferência, sobreveio a conhecida Agenda-21, com o conceito de "desenvolvimento sustentável", sendo a Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB) a Convenção-Quadro sobre mudanças climáticas. Destaca-se que todas essas agendas ambientais estão, ainda, intimamente ligadas aos Direitos Humanos – normas precipuamente de caráter jus cogens, embora não haja uma norma específica de mesmo caráter no âmbito do meio ambiente em si.  A internacionalização dos Direitos Humanos, inclusive, trouxe a noção de que a conscientização ambiental tem íntima ligação com a própria existência humana, dada a característica de universalidade, indivisibilidade e inderrogabilidade desses direitos.

É necessário repensar todo o modelo econômico e político ocidental, eis que, inequivocamente, até os dias atuais nossas gerações têm colhido os frutos da implementação do modelo capitalista clássico, da época da revolução industrial. O poder econômico internacional não comporta mais a administração capitalista, de consumismo imoderado e desigualdade social, até porque a máxima da dignidade humana se constitui pela efetiva proteção do Direito Ambiental. Embora cada Estado seja detentor de sua respectiva soberania, tudo o que engloba a matéria ambiental deve ser analisado sob o prisma do poder internacional. O tema do meio ambiente transcende a mera perspectiva geopolítica. Os assuntos envolvem a poluição transfronteiriça, o avanço da energia nuclear, as guerras pela exploração territorial – como as que têm ocorrido na África e leste europeu – dentre tantos outros, que consequentemente denotam a inestimável relevância das normas internacionais, dado o prisma transgeracional.

Assim, o Tribunal Penal Internacional (TPI) possui, atualmente, competência para julgar crimes ambientais, mas verifica-se a premência de um sistema internacional focado no mapeamento ambiental e responsabilização dos Estados, para além de matéria penal. O objetivo é fazer cumprir as agendas ambientais internacionais. Já o axioma da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças do Clima (UNFCCC) veio como forma de compensação financeira aos países em desenvolvimento, pelos resultados alcançados na redução de emissões de gases de efeito estufa, mormente decorrentes do desmatamento, degradação florestal, exploração do solo para o agronegócio, indústrias e portos. Essas políticas evidenciam a dimensão da conservação de estoques de carbono florestal, que buscam o cultivo sustentável de florestas e demais meios, assim como o aumento de estoques de carbono florestal, indispensável à conversação da biosfera.

Se a dinâmica industrial ocidental continuar no ritmo atual, os efeitos a longo prazo serão irreversíveis. Não se trata de previsão alarmista, mas de consequência lógica, viabilizada por estudos científicos. Nesse sentido, o premiado pesquisador alemão Harald Welzer alerta justamente sobre as consequências inesperadas que ninguém havia calculado. Segundo o autor, as emissões de gás carbônico que a fome de energia das indústrias e das administrações dos países de desenvolvimento descontrolado produzem em níveis progressivamente maiores ameaçam os ritmos normais de desenvolvimento do clima terrestre3, o que, por óbvio, demanda a atuação de vários campos de pesquisa – notadamente o jurídico. O autor alerta também para a iminência de conflitos armados em decorrência da escassez de recursos naturais, tema evidentemente atual, com inúmeras implicações jurídicas no âmbito do Direito Internacional Público4:

Agora que os recursos restantes claramente estão se esgotando, pelo menos em muitas regiões da África, da Ásia, da Europa Oriental, da América do Sul, do Ártico e das Ilhas do Pacífico, surge o problema de que cada vez mais pessoas encontrarão cada vez menores bases de segurança para a sua sobrevivência. Está ao alcance de todos a constatação de que conflitos armados surgirão entre estes povos, para que eles possam se nutrir do cultivo das próprias terras e das de seus vizinhos ou porque queiram beber das fontes de água que progressivamente se esgotam em seus territórios ou nos territórios próximos; de forma semelhante, também se tornou visível para todos que as pessoas, dentro de um futuro previsível, não mais tenham mecanismos práticos de contenção dos refugiados de guerra e do meio ambiente, ao mesmo tempo que não se possam mais separar deles, porque cada vez mais novas guerras provocadas dela decadência ambiental surgirão e os povos fugirão para escapar às consequências da violência. 

Com isso, evidentemente se pretende apresentar critérios além de meramente técnicos – parte-se da premissa de que o âmbito jurídico do meio ambiente se liga exatamente às futuras medidas geopolíticas ambientais.

Vale dizer, é o que ocorre quando se conclui que os poderes sobre o meio ambiente e a violência se inter-relacionam, como bem pontua Welzer5: 

Em muitos outros contextos de violência presente ou futura – no caso das guerras civis, de conflitos permanentes, do terror, da imigração ilegal, das disputas fronteiriças, das agitações e revoltas – predomina uma ligação com as modificações climáticas e os conflitos ambientais de caráter apenas indireto, especialmente no sentido de que o aquecimento da temperatura provoca efeitos desiguais ao redor do globo, dependendo da densidade demográfica, da situação geográfica e das condições de vida, porque afeta as diversas sociedades de forma altamente diferenciada.

Tal relação se consubstancia na forma como a desigualdade social se instala de acordo com o poder econômico de um Estado e sobre os recursos naturais, falando-se também em um contexto global. Tudo isto é sinal de uma assimetria que vem governando a história mundial há mais de duzentos e cinquenta anos, mas que hoje em dia se agrava progressivamente em razão do aquecimento global6.

Por isso mesmo a importância de se ter um meio jurídico sólido capaz de militar por todas as espécies – até porque a espécie humana é a única que manipula ativamente os meios naturais para obter tão somente proveito próprio. Nesse viés, cumpre mencionar o caso paradigmático do professor norte-americano Christopher D. Stone, intitulado: Should trees have Standing? Toward legal rights for natural objects – na tradução “As árvores deveriam ter um estatuto jurídico? Sobre a criação de direitos legais para os objetos naturais” – livro publicado em 1974.

O caso foi parar na Corte Americana, onde o professor Stone defendeu a atribuição de direitos legais às florestas, oceanos, rios e a todos os objetos “naturais”, até mesmo ao meio ambiente em um panorama geral7. A argumentação de Stone tem respaldo, pois consiste em apelar para o puro raciocínio, ritual na literatura ecologista, segundo o qual é chegado o tempo dos direitos da natureza. Em suma, trata-se de sugerir que o “impensável” tornou-se a evidência de hoje8:

Resta definir, evidentemente, o requisito para se dizer que um ser é “portador de direitos legais”. Segundo Stone, é preciso primeiramente que esse ser possa intentar ações jurídicas em seu proveito; em segundo lugar, que em um eventual processo a Corte possa levar em conta a ideia de um dano ou de um prejuízo realizado contra esse mesmo ser (e não, por exemplo, contra seu proprietário); finalmente, em terceiro lugar, que a eventual reparação o beneficie diretamente.

Evidencia-se tese análoga retomada na França por juristas que partem igualmente do princípio de que é preciso repensar a tradição do humanismo moderno, que considera somente a humanidade com personalidade jurídica. De um ponto de vista pragmático, a tese de Stone é coerente. Permite, de facto, intentar processos contra os grandes poluidores – mesmo na ausência de um interesse direto9.

Em 1962, com a publicação do livro “Primavera silenciosa”, a bióloga Rachel Carson desencadeou um debate importante nos Estados Unidos sobre o uso de pesticidas químicos, a responsabilidade da ciência nos efeitos a longo prazo e os limites do progresso tecnológico. O livro de Carson deu partida a uma série de eventos que posteriormente resultaram na proibição da produção doméstica do pesticida DDT10 e na criação de um movimento popular que exigia a proteção do meio ambiente por meio de regras estaduais e federais.

Relembra-se: àquela época, a indústria química pós guerra fria era uma das principais beneficiárias da tecnologia pós-guerra e do ideário da prosperidade norte-americana. A autora bem pontuou que o DDT alterou dramaticamente o equilíbrio natural – e até social. Carson já alertava sobre os perigos do uso de DDT e outros pesticidas agrícolas de longa ação residual. Seus estudos demonstraram que essas substâncias químicas são altamente danosas à saúde de toda a biota.

Para a autora, a poluição do meio ambiente pelo uso exagerado de produtos químicos tóxicos era o ato supremo da hubris humana, fruto da ignorância e da cobiça, de modo que a ciência e a tecnologia se tornaram servas da indústria química – tudo em busca de lucros e expansão do mercado econômico.

É evidente, ainda, que nas relações dos Estados com as pessoas, o instituto da responsabilidade internacional também opera, notadamente quanto aos direitos humanos. Os Estados são os principais obrigados para com o Direito Internacional e, por isso, podem e devem ser responsabilizados por violações aos direitos consectários11. Nas finalidades da responsabilidade internacional, tradicionalmente, traduz-se uma ideia de justiça segundo a qual os Estados estão vinculados apenas ao cumprimento do que assumem – entende-se como uma jurisdição voluntária – o que não pode ser admitido quanto às políticas de diminuição dos efeitos das mudanças climáticas.

A própria Declaração sobre o meio ambiente, de 1992, consigna que a preservação ambiental é tão importante quanto o desenvolvimento econômico, até porque não existe avanço se não há sustentabilidade ambiental para tanto. Noutro avanço jurídico, embora de natureza distinta, é a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima, de 1992, que foi complementada pelo Protocolo de Kyoto, em 2005. Ainda, faz-se necessário o fomento das Organizações Não Governamentais, a exemplo do conhecido Geenpeace, que intervêm ativamente em campo e produzem pesquisas científicas indispensáveis, compondo a sociedade internacional com os Estados e Organizações Intergovernamentais.

Sem adentrar nos aspectos técnico-jurídicos de cada documento que configura a jurisdição internacional dos Estados, sabendo-se do meio ambiente como bem jurídico universal, é crucial conceber um sistema internacional sólido e efetivo, para muito além das fronteiras territoriais: “as gerações futuras provavelmente não perdoarão nossa falta de preocupação prudente com a integridade do mundo natural que sustenta toda a vida”12, pontua Carson. “A partir deste alicerce, não se deve pesquisar o que dá solidez às sociedades, mas aquilo que as leva à ruína”, afirma Welzer.

_________

BIRNIE, Patricia; BOYLE, Alan. International Law and The Environment. Second Edition. Published in the United States by Oxford University Press Inc., New York, 2002.

2 BIRNIE, Patricia; BOYLE, Alan. 2002, p. 3.

WELZER, Harald. Guerras Climáticas: Por que mataremos e seremos mortos no século XXI. Tradução: William Lagos. São Paulo: Geração Editorial, 2010. p. 13.

4 Ibid., p. 14.

5 WELZER, 2010, p. 15.

6 Ibid., p. 15.

7 FERRY, Luc. A nova ordem ecológica: A árvore, o animal e o homem. São Paulo: Bertrand Brasil, 2009. p. 21.

8 Ibid., p. 22.

9 Ibid., p. 23.

10 Dicloro-Difenil-Tricloroetano.

11 MAZZUOLI, Valério de O. Curso de Direitos Humanos. 8ª ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense; Método, 2021.p. 34.

12 CARSON, Rachel. Primavera silenciosa. São Paulo: Gaia, 2011. p. 28.

Priscila Maia
Colaboradora do escritório Popp Advogados Associados.

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